Valtown - Capítulo 4
Acordo firmado
A lua estava brilhando o suficiente naquela noite para iluminar todo o ambiente ao ar livre. Mesmo assim, foi necessário acender uma fogueira. Ficar sozinho e sem fogo no frio era pedir para ter uma hipotermia, além de que as chamas espantavam a grande maioria dos coiotes. Se alguns chegassem mais perto, ele mesmo cuidaria deles.
William ficou ao lado da fogueira, ao pé do Monte Norway. Esquentou alguns petiscos enquanto aguardava a chegada dos demais. Não quis entrar na caverna por precaução. Enfrentar coiotes era uma coisa, lidar com aquele bicho lá dentro era outra completamente diferente.
Seu braço, ou melhor, o que era para ser seu membro, estava dolorido. Como quase sempre. O andarilho sabia que era psicológico. O braço sempre estava do mesmo jeito, mas sempre o incomodava.
Depois de esquentar o alimento que tinha, sentou para comer. Um homem corpulento precisa de uma refeição para se manter. Güdwin soltou os escudos do corpo e os colocou no chão. Enquanto comia, imaginou qual dos demais chegaria primeiro. Torcia para que não fosse a garota, pois ela falaria o tempo inteiro até a reunião começar.
Pensou na noite importante que iriam ter. Além do planejamento e da reunião dos membros, havia a possibilidade de um apoio inesperado à causa. Seria uma data histórica no futuro, quando a situação já estiver resolvida e o povo livre. Sem as amarras do dinheiro e dos governantes. Mas, por enquanto, o foco precisava estar nos meios.
O primeiro a chegar foi Tyr. William viu o companheiro à distância, antes mesmo do grandalhão estar perto da fogueira. Os vários metros do pé até a ponta do chifre do taumono não o tornavam um grande exemplo de discrição. Com suas pesadas passadas, aproximou-se da fogueira cumprimentando o líder:
— Boa noite, Güdwin. Lua bonita hoje. A conversa vai ser aqui?
— Noite. Não, a reunião vai ser lá dentro. Estou esperando o restante do pessoal. – completou em meio a bocadas em sua refeição.
Tyr concordou com um aceno de cabeça. Por sorte, na opinião de William, ele era um dos mais calados. Conseguiria terminar de comer.
Ofereceu um pouco para o colega, que recusou. William havia se esquecido que os taumonos são essencialmente vegetarianos. Talvez comer animais que se parecem tanto com você mesmo não seja agradável.
Os demais foram chegando com alguns minutos de diferença um para o outro. O primeiro foi Odin, que apareceu montado em seu fiel companheiro El Cuervo. O homem estava com sua tradicional máscara com bico e sua capa preta. Logo após, Thor. William percebeu sua presença por conta do barulho das esporas de suas botas de cano fino. O moço de cabelos grisalhos portava sua tradicional luva na mão direita. Incrivelmente, todos eles também perguntaram se a conversa seria ali, ao relento e perto do crepitar das chamas.
A calmaria cessou quando Loki chegou.
— Oooii! – gritou a menina, ainda a alguns metros de distância do pé do Norway – Eu espero que a reunião ainda não tenha começado. Acabei me atrasando.
O sossego acabou.
A garota magricela se aproximou com um olhar de desdenho e surpresa. William ia responder, mas os lábios de Loki foram mais rápidos, e previsíveis.
— A reunião vai ser aqui?
Pela quarta vez, ele respondeu:
— Não, eu estava apenas esperando vocês chegarem e aproveitei para comer enquanto isso. A reunião vai ser dentro da caverna, no pé do monte. Inclusive, preciso que me ajudem a tirar um intruso que se apossou de lá.
William se levantou e rumou em direção à entrada da caverna. O barulho do monstro gigantesco lá dentro ficou mais alto. Ele pareceu estar acordado. Os demais vieram atrás, com alguns pensamentos de Loki ao vento.
— Caraca, chefe. O que o senhor arrumou aí para gente? – perguntou a recém-chegada.
— É um dragão-serpente. Deve ter entrado na caverna aproveitando que a deixei por um tempo. Acho que nossos recursos ainda estão lá, já que estão em uma outra sessão do monte.
— Dragão-serpente? Sinto muito, mas vão ter que cuidar disso sozinhos. Acabei de lembrar que ainda não comi. Ah, lembrei de outra coisa. Vi umas carruagens suspeitas vindo nesta direção. Parecia coisa da capital, e aparentava ser um carro de cristais. Você sabe o que é? Acho que eu e mais alguém podíamos ir lá e…
— Silêncio, menina! O bicho está vindo – gritou William. Já estava com os escudos prontos e observou seus colegas se prepararem para a batalha.
Neste momento, os rugidos do dragão machucavam os ouvidos e um vento veloz deixava a entrada da gigantesca boca da caverna. Apesar dos estrondos, todos os quatro guerrilheiros conseguiram ouvir uma outra frase:
— Deixe comigo.
Thor pronunciou apenas essas duas palavras enquanto deu alguns passos à frente dos demais. Não fez questão de tirar o sobretudo ou abaixar as golas. Continuou andando e levantou a mão direita. Puxou a luva em direção ao antebraço para ajustá-la melhor à sua mão. Depois de soltar o equipamento, o talismã incrustado no centro da luva, no dorso da mão do usuário, começou a brilhar. Em segundos, a mão estava em volta de uma energia amarela pulsante.
Então, o dragão-serpente apareceu.
A criatura era gigantesca. Vários segundos foram necessários só para tirar todo o comprimento de seu corpo do covil. As escamas eram do tamanho de tijolos e produziam um barulho aterrador ao se encontrarem com o chão durante o rastejar do monstro. Não havia garras ou membros, todo o movimento do corpo era feito pela contração do ventre. O dragão se levantou e abriu a boca, lotada de dentes como estacas e com duas presas do tamanho de homens. O veneno respingava delas, pronto para tirar a vida de qualquer um que o tocasse.
O réptil levantou o máximo que pôde do próprio corpo e colocou-se em uma posição parecida com uma cobra prestes a dar o bote. A cabeça, a dezenas de metros de altura, soltou um rugido audível a quilômetros de distância. Os olhos fendados se abaixaram e os cinco guerrilheiros abaixo se tornaram os alvos. Estava na hora de lanchar.
Diacho, é muito maior do que eu esperava. Porém, não é um dragão maduro. Thor vai precisar de ajuda caso queira não morrer envenenado.
William focou em seu companheiro, alguns metros à sua frente. A energia ao redor de sua luva ainda brilhava, amarelada, e o rapaz de cabelos brancos não havia retrocedido um passo sequer. Thor se agachou, em um movimento desesperador para seus colegas, que pensaram que ele estava louco, mas comum para o forasteiro. Güdwin entendeu a situação.
O maldito Dandy não é louco de tentar isso.
No segundo seguinte, a besta deu o bote. E não foi o dragão.
Pegando impulso com sua posição, Thor saltou em direção à cabeça da fera. O bicho, por um momento estático, pareceu não entender a situação. Logo após, abaixou a cabeça e se lançou, com a boca aberta e as presas a postos, rumo ao seu desafiante. Thor subiu dezenas de metros, ultrapassando a abertura nada convidativa da boca do dragão-serpente. Ao chegar na altura do focinho, a magia de transformação começou a ser canalizada. A mão esquerda daquele que chamavam de Thor se dirigiu a seu coração, encostando a ponta dos dedos, todos separados uns dos outros, em seu peito. Do tórax, a mão se moveu para o braço direito, aquele com a luva, e apertou o antebraço. Instantaneamente, a luz amarela emanada da luva sumiu.
No segundo seguinte, um fulgor azul surgiu, forte e vibrante. Ao seu redor, descargas elétricas e centelhas começaram a brotar. Correntes elétricas saltavam da luva na mão de Thor, que brilhava no tom anil. A energia revolvia-se e inundou a mão do combatente, emitindo um som de eletricidade e formando raios advindos do braço de Thor. Do ponto de vista dos guerrilheiros abaixo, era como se eles estivessem olhando para o próprio relámpago. Então, o relâmpago encostou no dragão.
O grito da fera ecoou na montanha e reverberou, o que forçou todos a taparem os ouvidos. O barulho da descarga no corpo do dragão-serpente demonstrou a força do golpe, que iluminou o ambiente muito mais do que a lua cheia conseguiria. Aproveitando da boca agora fechada do animal, Thor, enquanto caia, passou sua mão eletrizada por toda a extensão corporal do dragão, que agora contorcia violentamente. Sua carne começou a fumegar e algumas escamas caíram, tudo isso enquanto os raios perpassavam seu corpo. O sofrimento acabou quando Thor pousou no chão.
Ao olhar pra cima, todos viram os olhos, antes fendados, agora negros e sem vida. O veneno que os ameaçava agora estava quase todo evaporado e várias escamas e partes à mostra da serpente fumegavam, completamente esturricadas. Restou para o cadáver reptiliano desabar na base do Norway e levantar areia o suficiente para sufocar alguns narizes e arder alguns olhos. O intruso estava neutralizado.
Thor andou devagar de volta para seus companheiros. Todos eles com os olhos abertos e a boca escancarada. Com exceção de Loki, que emitiu um sorriso de orelha a orelha.
— Impressionante. Acho que nosso lorde vai adorar saber que seus investimentos vão para boas mãos.
Güdwin olhou para trás, para onde os recém-chegados estavam. O estrondo e estardalhaço que Thor fez contra o dragão-serpente impediu qualquer percepção da chegada da comitiva do reino. Como a menina havia falado, era realmente uma carruagem da capital. O pessoal era formado por alguns poucos guardas e diversos homens e mulheres com vestimentas típicas da capital, daqueles que necessitavam mostrar ter um poder financeiro superior.
O estilo que Güdwin odiava.
— Então, onde vamos fazer negócios? – perguntou o líder almofadinha.
…
A reunião ocorreu em um dos compartimentos da grande caverna do Norway. Felizmente, o monstro não havia adentrado essa parte da formação rochosa. O local, do tamanho de um pequeno salão, era rochoso e mal iluminado. Modestamente contava apenas com algumas armas, cadeiras, mesas e um quadro. Não era muito, mas coube a comitiva e os cinco guerrilheiros.
A carruagem realmente era um carro de cristais, do qual os almofadinhas tiraram um grande baú. O indivíduo que parecia presidir o grupo colocou seus óculos e abriu um pergaminho. Suas vestes, diferentes das vestimentas dos demais, eram negras.
— Lorde Vessex tem o prazer de emprestar parte de suas economias guardadas no Banco Baú de Minas para os cinco guerrilheiros. O lorde compartilha do desejo de promover um governo mais igualitário e voltado para a população. Por isso…
Güdwin parou de prestar atenção. Estava sentado um pouco ao lado, em uma cadeira. Sua mente não se prendia a discursos de autoridades, principalmente quando essas estavam intrinsecamente conectadas ao dinheiro. Olhou para os companheiros. Todos pareciam pouco interessados na fala dissimulada e legitimadora do homem. A exceção era Loki. A menina mantinha os olhos vidrados no baú carregado de finanças.
— Olha só – Güdwin interrompeu o monólogo do visitante e se levantou – Não estamos interessados nesse seu discurso legitimador. Não tente nos enganar com esse papo furado de que o dinheiro salva. Tudo isso estará acabado quando terminarmos. O que queremos saber é se seu mestre irá ou não nos ajudar. Estamos dispostos a utilizar qualquer meio pela causa.
A pequena fala foi o suficiente para animar os outros guerrilheiros, que olharam com admiração para seu líder. Aquele era um homem que trazia o verdadeiro sentido de liberdade para eles. Para atingir essa liberdade, o dinheiro era um mero instrumento.
O comissário recolheu o pergaminho e fechou o rosto. Retirou os óculos e os guardou novamente.
— Caro senhor Güdwin, acho que não está entendendo. Diferente do que o senhor pensa, o dinheiro não é um obstáculo a ser batido. Para aqueles que nasceram sem títulos ou posses, ele dá a oportunidade de conseguir poder. Os merréis são uma benção para aqueles que se esforçam para conquistá-los. Foi pensando nesses ideais que lorde Vessex viu uma oportunidade em vocês.
O homem rumou em direção ao baú.
— E então? O dinheiro vai ser nosso ou não? – perguntou Loki.
— Com certeza. O dinheiro é de vocês. Porém, temos algumas exigências…
— Não vá pensando que somos seus capangas. Aqui dinheiro não dá liderança. No máximo, somos sócios – exclamou El Cuervo. Ao final de sua fala, Odin grasnou como se concordasse com a fala.
— Sim, sim, claro. Mas concordam que todos precisam ceder em acordos, não? Queremos que nos informem, regularmente, como está o processo da empreitada de vocês. Detalhes específicos mesmo. E, é claro, exigimos a garantia de que vão adentrar o reino com os propósitos já estabelecidos.
Os olhares se dirigiram a Güdwin. O revolucionário entendeu a posição que estava. Em sua mente, a hierarquia e a autoridade nunca foram conceitos estabelecidos, mas sabia que um grupo coeso precisava de um líder. Essa posição era inerente a ele neste momento.
— O país nunca mais será o mesmo depois que invadirmos – disse finalmente. Firme e direto. Falou com o olhar vidrado no comissário e com o punho direito fechado.
— Bom, muito bom. Podem pegar o dinheiro e usar como melhor entenderem. Estamos ansiosos pelo caminho rumo à liberdade que isso vai trazer. Com os cumprimentos de George Vessex – o homem da capital se curvou como forma de despedida. – Agora, se me derem licença, eu e meus companheiros retornaremos para Valtown.
A comitiva recolheu seus participantes para a carruagem e deixou a caverna. Nenhum dos anfitriões os acompanhou até a saída.
Loki foi a primeira a abrir o baú.
— Gente, quanta grana! O que vamos fazer com tudo isso? – disse a garota.
Os demais se aproximaram. O baú era grande o bastante para caber um anão deitado e tinha mais de um metro de altura.
— Eu já vi um destes antes. É o típico baú do Banco Baú de Minas usado para levar cristais. Porém, esse aqui parece ser diferente – mencionou Thor.
O objeto estava abarrotado de moedas. Vários barões, pilas e merréis. Muitos. Ocupavam o interior do compartimento até quase a sua boca. Surpreendentemente, não havia nenhum cristal em meio às moedas. Güdwin passou a mão pelo dinheiro. Era mais do que tinha visto há muito tempo. Talvez, mais do que vira em sua vida toda. Ergueu a mão cheia de pilas, deixando escapar algumas por entre os dedos..
— Loki – chamou o grandalhão.
— Pois não, fi de égua.
— Conhece alguém que consiga nos ajudar por essa quantia aqui?
— Ah, eu conheço. E se conheço! Aqueles dois são perfeitos pro trabalho.