Valtown - Capitulo 2
O pastor
Quatro e meia da manhã já é hora de acordar. David levantou de sua cama assim que o galo cantou. O sol ainda não havia nascido enquanto o jovem fazia seu ritual matinal. Sua mãe não havia acordado ainda para lhe preparar uma refeição decente, pois ficou até tarde da noite ajudando seu marido com a correspondência. Notícias e informações vindas do restante do reino dificilmente chegavam aos interiores dos ranchos, então era importante aproveitar a oportunidade.
Por isso, David apenas bebeu o que sobrava do estoque de sua bebida favorita, hidromel de cacto, e comeu pães secos do dia anterior. Após o café, o pastor vestiu suas vestimentas usuais, além de pegar seu novo chapéu e seu tradicional lenço laranja. Fazia pouco tempo desde que completara os 18 anos e sentia que estava na hora de assumir as devidas responsabilidades para se tornar um homem. Ao passar pela sala em busca de suas ferramentas de trabalho, deu de cara com seu pai estatelado no sofá.
Seu pai compartilhava da mesma pele escura e dos cabelos encaracolados do filho, ainda que agora os fios mal cresciam. Porém, tinha um porte bem diferente. Ao contrário do filho, de dimensões franzinas, o patriarca era corpulento e com enormes braços, além de contar com um charmoso bigode. As características de um grande caubói, pelo menos daqueles que já estão em uma idade mais elevada. Adam Bridger, quando mais jovem, havia sido um grande protetor de rebanhos, conhecido por ser forte como um touro. Agora, esse legado ficou em David, que era apenas o pastor de seu rancho.
Antes de sair, o primogênito dos Bridgers retirou alguns merréis do pote da família, para não ir de bolso vazio caso algo aconteça. Pegou suas armas e saiu da casa.
O edifício principal do Rancho Beam não era muito luxuoso. Possuía poucos cômodos além do quarto do casal Bridger e dos que abrigavam David e seus outros irmãos. Não passava muito de uma choupana de madeira, remendada em vários lugares e com cômodos acoplados ao longo do tempo. A visão de sua casa foi a última antes do aspirante à caubói montar em seu cavalo e tomar o caminho em direção ao rebanho.
…
Durante o caminho até o pasto, era possível dar uma rápida observada nas demais partes da fazenda. Primeiro passou pela pequena represa à direita. Mais à frente, após fazer uma curva na estrada de terra, encontrou o pomar e a horta. Pelo visto, tudo estava em ordem. Nada tão exuberante como nos enormes terrenos dos grandes donos de terras, mas ainda dariam o sustento mais do que necessário para a família.
Após alguns minutos, finalmente chegou ao pasto. O local possuía de dois a três alqueires de extensão e abrigava trezentas ovelhas. Os animais já estavam acordados e ruminando a pastagem. Por serem animais indefesos, os caprinos costumam dormir pouco e ficar bem alertas aos perigos. Nesta manhã, algo parecia agitar os bichos. Quando David chegou, percebeu certa movimentação enquanto amarrava seu cavalo. Bob também não parava de latir.
Bob era o recém-chegado cão da família Bridger, tendo aparecido na porteira do Rancho Beam ainda bem pequeno, logo após o idoso cão pastor do lugar falecer. Nesta manhã, o cachorrinho estava em seu local de trabalho habitual como Guardião do Gado. Apesar do latido, o canino não tomou outra atitude efetiva. Pelo visto, ainda não conseguia proteger muito bem o rebanho de predadores. Além disso, sua aparência não contribuía muito para um visual ameaçador. Tinha orelhas grandes, um corpo rechonchudo e pernas atarracadas. Pelo menos o papel de mensageiro estava fazendo bem.
— O que foi garoto? Tem algo mexendo com nossas queridinhas? — disse o primogênito dos Bridger acariciando o cachorro.
Bob, porém, não deu muita bola para a demonstração de carinho e partiu correndo para o epicentro da movimentação entre as ovelhas. Provavelmente quer me mostrar o que está havendo pensou David, já seguindo rapidamente o Guardião.
Quando chegaram perto do acontecimento, entenderam a situação. Uma ovelha estava sendo atacada por um animal e, por isso, as outras estavam agitadas e faziam barulho, já que por natureza não possuem muitos meios de se defender. Bob não se atrevia a lutar com o bicho, mas não parava de indicar para o dono através de latidos que o animal estava lá. David percebeu que era hora de agir.
O predador estava em cima da pobre ovelhinha, que era uma das mais jovens do pasto. Era do tipo que os Bridgers costumavam chamar de Lagratos, pois pareciam tanto com um rato quanto com um lagarto, mas do tamanho de um cachorro médio. Tinham caudas escamosas e compridas, pernas fortes, focinho comprido e orelhas grandes. E este estava tentando morder o ovino indefeso. Nada que David não conseguisse lidar. Retirou seu revólver Colt do coldre com um saque rápido e acertou a ponta da cauda do Lagrato, que estava em movimento nas costas do caprino. A dor repentina e o barulho da arma foram suficientes para afugentar o animal, que saiu correndo sem rumo.
— Bom trabalho cabra bom! Esses lagratos estão cada vez mais comuns aqui na Sertânia. Em breve você vai conseguir cuidar deles sozinhos — falou David se referindo a Bob, que havia voltado de sua pequena perseguição ao invasor enquanto este fugia.
David deu um breve sorriso ao lembrar de seu disparo. Não tinha tanta prática com armas de fogo, as quais seu pai dizia serem para “homens”. Teve acesso a essa por agora, ao completar os dezoito, quando seu pai a entregou como símbolo de amadurecimento necessário. As memórias das várias horas treinando com fundas e estilingues na infância ainda estão guardadas em sua mente. Além disso, tinha sua besta de longo alcance.
Relembrou que conseguiu atingir apenas a cauda do bicho, o que provavelmente não o deixaria debilitado ou perto da morte. O pensamento o aliviou. Não gostava de matar de maneira frívola. David sabia que, se quisesse matar algo com um tiro, precisaria ser um ótimo atirador, mas para derrotar alguém com um tiro sem matá-lo, precisaria ser melhor ainda.
Pensou na vida que seu pai levava quando na ativa. Além dos fora-da-lei que frequentemente atacavam os territórios e rebanhos protegidos pelos caubóis, existem os predadores naturais e desafios que qualquer terreno possui. O velho Bridger já lhe disse que precisou proteger seus patrões de duendes quando foram à cidade, salvá-los dos asquerosos Mhoulses durante o caminho e, ao chegarem à fazenda, teve que tirar uma vaca de dentro da boca de um dragão-serpente. Tudo no mesmo dia.
O meu velho não é pau que se quebre pensou David, sorrindo enquanto apascentava as ovelhas com Bob ao seu lado. Agora era sua vez de se tornar o protetor. O interior já era esquecido demais para seus próprios habitantes não cuidarem dele. O menino Bridger há muito já pensara que era culpa do rei e da capital, mas hoje esse sentimento estava mais para um conformismo. Serei um caubói porque é o que precisamos.
Era o que David dizia, mas, na verdade, achava a história de ser um homem forte e protetor muito bonita. Ao olhar para seu rebanho, que no momento pastava tranquilamente, percebeu o quanto a paz ali podia ser boa, mesmo sendo tão difícil de ser mantida. Avistou uma pequena colina, em frente a uma formação rochosa elevada, de onde podia avistar o rebanho de maneira completa e se dirigiu a ela. Seu companheiro canino o acompanhou. David sentou-se no chão e apoiou as costas em uma rocha fendida enquanto Bob deitou no solo árido. O dia, como quase todos os outros, estava ensolarado e seco, e provavelmente não precisariam sair do lugar por agora.
O velho Bridger não gostava que os pastores ficassem muito tempo parados no mesmo lugar, pois dizia que era uma premissa da preguiça. O rapaz lembrou das falas do pai, mas achou que ficar ali por alguns instantes não era nada demais. Afinal, seu companheiro estava ao seu lado e não o deixaria cair no sono. Pegou sua arma e começou a rodá-la como passatempo. Poucos minutos depois, David e Bob estavam cochilando.
…
David sonhou alguma coisa sobre um tatu falante, anões e muito hidromel de cacto. Estava no meio de uma empolgante excursão à capital quando acordou com um barulho alto de algo caindo. Demorou alguns segundos para lembrar onde estava e que caíra no sono. Olhou para o lado e o Guardião do Gado estava desaparecido. Afinal, o que havia sido aquele barulho? O garoto se levantou batendo a poeira da roupa e pegando a arma que estava no chão. Ao olhar para frente, percebeu o que fez aquele barulho.
Um gigante.
Um enorme Jotun estava levando algumas ovelhas por debaixo de seu braço. Tinha deixado cair uma no chão, mas a pegou novamente. O ladrão de proporções absurdas devia ter uns seis metros de altura, possuía pele morena e mechas longas bem emaranhadas no cabelo. Sua roupa estava esfarrapada e tinha aspecto tribal. Depois de alguns passos lentos e quase sísmicos, o gigante se virou para David. Estranhamente, fazia uma cara meio sem graça, como se tivesse percebido que foi pego com a boca na botija.
— Largue essas ovelhas agora. Ou te deixo chumbado até parecer queijo. — disse David firmemente. Nunca havia enfrentado nada tão perigoso ou que chegasse à metade do tamanho daquele filho de Anaque. Mas não deixaria sua função de caubói de lado.
— Lamento. Mas um gigante também precisa comer. — Com essa declaração, largou os caprinos e partiu para cima de David.
O rapaz não era de sentir muito medo, mas um ser daquele tamanho vindo em sua direção com más intenções não era a melhor das visões. O gigante, ainda que estivesse desarmado, possuía braços enormes e qualquer soco que atingisse David traria bons danos à sua saúde. Não era hora de ter misericórdia. Precisava parar o avanço do fora-da-lei.
David usou rapidamente seu Colt, mirando e atirando nos membros do inimigo. Porém, não houve nenhum sinal de que esses tiros deram dano, e David sabia que não os errou. Partiu, então, para apelação. Desviou de um primeiro golpe da mão do gigante, que veio de cima para baixo com o intuito de esmagá-lo. Rolando para o lado, conseguiu um instante para mirar bem no torso da criatura, onde o dano poderia matar o gigante ou, ao menos, pará-lo.
Porém, não foi o que aconteceu. Desta vez David conseguiu ver o motivo porque seus outros disparos não obtiveram êxito. A bala cilíndrica saiu do cano de seu revólver rapidamente, mas, ao tocar no couro duro do gigante, paravam o seu trajeto. Essa parou próxima ao coração do sujeito, só que muito superficialmente para fazer qualquer dano. Ao olhar bem, David conseguiu ver que todas as suas balas atingiram o gigante, mas estavam presas à sua pele como se fossem um espinho qualquer.
Mas que diabos.
Esse instante de devaneio foi o suficiente para o gigante acertar um golpe. O safanão veio de punho fechado, acertando em cheio a lateral do tronco de David. O menino Bridger foi arremessado a alguns metros de distância, caindo contra a poeira seca e sentindo seu corpo formigar de dor. Sem tempo para avaliar os danos que sofreu, David se levantou e voltou a fitar o adversário. O gigante, agora em frente a colina em que o garoto dormiu, observou a grande pedra que havia servido como encosto.
Diacho.
A rocha foi arrancada de seu local pelo inimigo enorme sem muito esforço . Em suas mãos, parecia uma pedra de tamanho normal. Infelizmente, esta estava indo rapidamente na direção de David. Durante o segundo em que o gigante arremessou o rochedo, o caubói se lembrou de um fato. Havia uma saliência, uma profunda fenda no pedregulho, que poderia lhe servir.
Retirou a besta de suas costas, realizando um saque dos mais velozes até para ele. Sentiu como era bom atirar com algo que tivesse experiência. Armou-a com uma das flechas que levava e tentou fazer algo que se aproximasse ao ato de mirar. Com um disparo rápido, diria que o tiro foi meio no susto. Afinal, realmente foi. A flecha zarpou zunindo e se encravou na rocha. No momento em que a ponta do dardo encostou no interior da fenda, o pedregulho se partiu em três pedaços.
David precisou desviar do menor deles, já os outros dois maiores caíram ao seu lado na terra e levantaram poeira o suficiente para encobri-lo da visão do gigante. O pastor aproveitou a oportunidade.
Durante seus momentos de atirador, fosse com a besta ou até mesmo seu antigo estilingue, David aprendeu que o tiro mais efetivo vem de onde o adversário não espera. Lembrou da formação rochosa perto da colina e disparou rumo a ela. O ladrão não percebeu a movimentação, pois David conseguia correr pelos cascalhos sem fazer quase ruído algum. Um atirador que não fosse bom em esconder sua posição não servia para muita coisa.
O gigante ficou atônito. Não conseguiu ver para onde o filho de Adão fora. Onde sua rocha atingiu o solo havia apenas poeira e os restos de sua munição feita de rochedo improvisada. Deu alguns passos em direção ao local, para verificar o ocorrido. Foi aí que finalmente percebeu algum ruído. Algo semelhante a um arco sendo preparado para o disparo, a sua direita. A cabeça enorme se virou em direção a um pedregulho de seu tamanho. Lá em cima, um pouco ofuscado pela luz do sol, conseguiu ver o menino com a besta em mãos.
— Quem tá por cima agora grandão? — gritou David antes de disparar.
Sua mira estava na testa do gigante, que lhe pareceu o lugar mais suscetível a tomar um dano. O projétil tomou sua direção no ar, se moveu um pouco para a esquerda com o vento e caiu alguns centímetros por conta da gravidade, exatamente como o atirador pensou. A ponta da flecha atingiu o local desejado com um baque seco, seguido por um grito gutural do alvo. A torre de carne tombou, levantando muito mais poeira do que a pequena rocha de antes.
David se permitiu ficar contente com sua atuação. Desceu a formação rochosa dando alguns risos. As saliências esculpidas na rocha ao longo do tempo ajudam a subir e descer do local. Pegou suas botas quando chegou ao chão. Eram um pouco barulhentas quando em contato com o cascalho, e David queria a discrição necessária. Calçou e caminhou até o adversário derrotado.
De perto, o gigante parecia maior. A flecha estava encravada em sua testa, profunda o suficiente para deixá-lo inconsciente, mas David não tinha certeza se seria o bastante para matar o monstro. No mesmo instante, Bob apareceu, com o rabinho entre as pernas e cara de coitado. O caubói ficou aliviado, pois pensou que o gigante teria dado um jeito em seu companheiro, mas pelo visto o próprio cachorro fugiu do perigo.
— Calma garoto. Esse era um problema grande demais para você resolver. Quando crescer, tenho certeza que você vai me ajudar.
O cachorro deu um latido de resposta, seja lá o que isso queira dizer. Bob se virou para o corpo estirado ao chão e foi cheirar o ferimento na testa do abatido. Já David se virou para avaliar a distância do local em que atirou. Percebeu que era um posicionamento interessante para tiros com sua arma de longa distância. Provavelmente o usaria novamente. Neste instante, ouviu um barulho desconfortável.
Bob começou a chorar de uma hora para a outra. Logo em seguida, o canino tomou o caminho da estrada rapidamente mais uma vez. David olhou para trás e também quis ter a mesma reação. O filho de Anaque estava se reerguendo, ainda com a flecha incrustada em sua testa. A areia chiou ao sentir o corpo do gigante se mover, e a terra ao redor deu uma leve tremida quando o enorme Jotun se colocou de pé. Talvez fosse a mente de David lhe pregando peças por conta de tamanho medo da ocasião. O menino Bridger precisou erguer bastante a cabeça para poder fitar os olhos há seis metros de altura.
O gigante começou:
— Quem está por cima agora, pequenino? Se prepare par… — ele não conseguiu terminar.
O fato foi muito rápido. No meio de sua fala, o ladrão de ovelhas fez uma baita careta de dor. No milésimo seguinte, foi empurrado por alguma força brutalmente monstruosa, que o atingiu pelas costas. Primeiro. o que foi para frente foi o tronco. Depois, os membros. Logo em seguida, todo o corpo do gigante estava voando por conta do impacto recebido. A gigantesca massa de carne foi arremessada ao ar com tanta força que parou somente ao colidir com a formação rochosa, destruindo-a quase inteiramente. As rochas que surgiram se amontoaram por cima do corpo do gigante que, dessa vez, deveria ficar um bom tempo desacordado.
David assistiu esse segundo de loucura um pouco assustado. Pela misericórdia dos Três, o que foi…
Ao se virar para onde o gigante estava, entendeu a situação. Não podia estar mais aliviado e, ao mesmo tempo, preocupado com aquela cena. Seu pai, o velho Adam Bridger, estava ali, logo em frente. O rosto firme como uma rocha, como se mandar um gigante pelos ares fosse parte comum do dia, como comer torresmo. Sua manga direita estava arregaçada e acabara de abaixar o braço direito . Logo após desfazer o punho fechado, se dirigiu ao filho:
— Precisamos conversar.