Valtown - Capítulo 1
Prólogo
A cidade mais próxima já estava há alguns dias de distância. A cabana parecia ser nos confins do reino, próxima à beirada do mapa do território. Para achar um Procurado os caminhos não eram só tortuosos, mas longos e desolados.
O caçador de recompensas seguiu sua cavalgada em direção à fonte de seu possível dinheiro. Nenhum trabalho era difícil para Willjan. Há anos o homem recebe trabalhos de militares do reino para dar cabo de alguns “empecilhos”. Geralmente, esses são Procurados dos mais variados. Desde anões guerreiros a caubóis de araque. Um elfo mago não devia ser problema.
Sua montaria estava relativamente confortável. Para enfrentar um longo deserto, um cavalo como aquele funcionava bem, e a sela de couro de troll era de altíssima qualidade. A vestimenta de Willjan o cobria bem, além de deixá-lo numa temperatura agradável. O lenço vermelho ao pescoço iria ajudá-lo a esconder o rosto quando for preciso. O chapéu característico vinha bem amarrado na cabeça e seu pingente rúnico da sorte no pescoço. O símbolo rúnico da Árvore do Mundo era significado de bom presságio para o aventureiro e ele não iria se não o tivesse.
Suas ferramentas de trabalho estavam ajustadas de maneira discreta o suficiente pra não chamar atenção e à mostra o bastante para impor o devido respeito. A imensa lâmina de nome Bjorn, com suas inscrições rúnicas, ficava em suas costas. A cor prateada vez ou outra refletindo o forte sol do deserto. Além da espada de lâmina larga, a pistola Colt Python estava no coldre esquerdo. É claro que havia outros truques na manga, ou no bolso quem sabe.
…
Os mapas podem ser coisa de macacos velhos, mas foi com eles que os primeiros reis ergueram seus impérios. Aquele em posse de Billj o guiou até a famosa cabana do elfo.
Pareceu a porta de uma pousada normal de qualquer cidade do interior do reino: tudo feito de madeira, lugar para prender as montarias, vaso cheio de cuspe e a famosa portinhola para entrar. O que destoava um pouco era o anão enorme sentado na varanda.
Ele certamente era o guarda do local. Estava vestido de traje de batalha anão, forjado para suportar o calor das minas, mas com calças e sapatos perfeitos para dar o estilo de senhor de Minérium. O indivíduo provavelmente era das raças do Norte, já que tinha seus quase 1,90 de altura. A barba negra estava gigantesca, com restos de feijão. Já a careca reluzia o sol fortemente. Mas, de maneira estranha, não parecia portar nenhum dos tradicionais machados anões. Parece que Billj não era o único a esconder truques.
O caçador desceu de sua montaria e se achegou ao local designado para amarrar os animais. Depois de prendê-lo, subiu os degraus para entrar na cabana. A pequena escada rangeu bastante, mas aguentou o peso. O anão não mudou sua expressão. Após acender seu cachimbo, começou:
— Tem hora marcada com o Apatiê? — indagou o sujeito soltando a primeira baforada;
— Tenho sim. Ouvi falar que ele é bom com feitiçaria. Quero consultá-lo.
— Ele não iria gostar disso. São cinco cristais. Eu fico com dois.
O serviço ali era caro. Mas não fazia diferença. A recompensa do elfo seria o bastante pra comprar um rancho em um condado distante. O mago era um dos Procurados mais buscados da região. Cinco cristais era um pequeno preço para capturá-lo.
— Bem, quando o cabra é bom tem direito de ganhar por isso. — O aventureiro abriu a bolsa do lado direito e retirou cinco pequenas gemas de cor branca opaca.
Ingressos pagos, é hora do show. O anão abriu a porta e adentrou primeiro o recinto. Logo atrás, Willjam seguiu o guarda e fez barulho com suas botas ao pisar no tapete de penas. Ao observar bem, notava-se que havia alguma magia ali. O lado de dentro era bem maior que o de fora.
Aparentemente, a construção possuía mais de um andar, apesar de não parecer externamente. O corredor ia se alongando horizontal e verticalmente, de modo que depois de alguns metros o local estava bem amplo. O revestimento interno era de madeira de cacto-salgueiro, material resistente e fresco. No chão e nas paredes, vários escritos na antiga língua dos elfos. Objetos diversos de cunho religioso pendiam nas paredes. Totens, amuletos e até uma miniatura do pássaro do trovão. Os elfos costumam valorizar bastante suas tradições religiosas e sua relação com a natureza.
O caçador foi analisando o local, pensando em maneiras de utilizá-lo a seu favor. O anão também não passava despercebido, talvez a luta se tornasse um dois contra um. Não havia objetos bélicos ou algo que pelo menos parecesse uma arma. Se houvesse ali alguma maneira de lutar, devia estar próxima ao elfo. Vários vasos de planta decoravam o chão do corredor em que estavam. Mini cactos-salgueiros, rosas do deserto e espécies desconhecidas para um leigo em botânica. A falsa motivação explicada para o anão envolvia ervas medicinais. Pelo visto tinha sido uma boa desculpa.
A entrada da sala estava à frente. Na verdade, mais parecia a entrada de uma caverna, ou uma pequena gruta. O portal era feito de rocha esculpida e pouca luz saia de dentro do cômodo do outro lado. O barba de feijão, apelido carinhosamente escolhido, se aproximou da porta e sussurrou:
— Apatiê, o desert foi fumado.. — Ou algo próximo disso, o dialeto utilizado não era conhecido pelo aventureiro.
A resposta não foi audível, mas de alguma maneira a porta abriu. Sem qualquer ranger. A sala do outro lado era escura e não se assemelhava em nada a um escritório particular que Willjam estava esperando. Os elfos são realmente diferentes.
— Pode entrar. Ele te atenderá agora.
O anão foi direto e prático. A impessoalidade pode ser uma aliada poderosa quando se quer chegar logo ao assunto, ou quando se está com pressa para abater seu Procurado.
O cômodo era relativamente pequeno, contrastando com a impressão ao se adentrar na cabana. Tinha um formato que se aproximava de um círculo, com várias saliências ovais nas paredes. Dentro dessas, repousavam pequenas velas de resinas. Juntas, davam a pouca luz que o ambiente possuía. O mais interessante naquela repartição, porém, era o que estava no centro do cômodo.
Diferente do cartaz do Procurado, o elfo era jovem. Envelhecer os retratados é um recurso comum para os ilustradores, já que a grande maioria das pessoas sente a consciência pesar ao dar cabo de alguém na flor da idade. A pele era morena e límpida, com aspecto superior ao das mais requintadas do reino, e o cabelo comprido chegava até aos ombros. Suas tranças destacavam a escuridão dos fios, negros como a noite e lisos como rocha esculpida pelo vento do deserto. Usava um cocar típico da região, enorme e repleto de penas azuis cintilantes. Os traços finos e as orelhas pontudas demonstravam as marcas de sua raça. Em seu colo estava o bastão, típico de um mago. A pouca luz impossibilitou Billj de ver detalhes, mas parecia entalhado à moda ancestral. A um pouco mais de um metro à frente de onde o elfo estava assentado, havia alguns vasos de cacto ainda em crescimento.. Os esverdeados olhos do anfitrião encontraram as íris do forasteiro. O elfo começou:
— Encanto ou poção? — perguntou. A expressão não era tão amigável. — Eu ouvi que me chamou de feiticeiro lá fora. Se me insultar assim novamente o transformo em fantoche.
A tradicional recepção daquela terra. Ser educado era talento designado apenas para os nobres da cidade. O caçador começou:
— Perdão. Você é o tal do Cheye né. Ouvi dizer que você sabe cuidar de planta. Eu gostaria de consultá-lo sobre a minha criação de arroz.
Era tudo um enorme blefe. Geralmente, a parte da infiltração era a mais difícil para Billj. O cabra não era um mago das palavras e, em grande parte das situações, preferia chegar metendo bala, literal e figuradamente. O discurso sobre botânica era apenas para baixar a guarda do Procurado.
— Sim. Eu sou Cheye e sim, sou um mago das plantas. Porém, qualquer agricultor saberia que arroz não se planta por essas bandas. Meus conhecimentos são requisitados para feitos mais complexos, não meras pílulas de crescimento para homens do campo. Então, por favor, diga-me qual o verdadeiro motivo da visita de um dos maiores Caçadores de recompensa do reino?
O índio do Diabo era esperto. Não que os blefes do aventureiro funcionassem sempre, mas dessa vez foi rápido. Hora do tudo ou nada.
— Aaaaah… serve se eu falar que vim para experimentar um bom gole de suco de cacto? — Essa lábia sempre o fazia perder nos jogos de Poker.
O elfo nem se deu ao luxo de responder. Começou logo uma espécie de ritual maligno. Ou podia só estar fazendo uma reverência pouco usual. A primeira opção fez mais sentido de acordo com o que aconteceu em seguida.
As mãos morenas do anfitrião se juntaram, palma com palma, na altura da barriga. Os olhos claros perderam seu brilho e atingiram uma cor branca pálida, mas com muita luminosidade. A luz ocular atingiu os pequeninos cactos-salgueiros, que, pelo visto, gostaram do bônus na fotossíntese. Todos começaram a crescer rapidamente até atingir o tamanho do anão nortenho que guardava a cabana. Os galhos e brotos tomaram formas de membros, as agulhas se tornaram espetos e uma espécie de rosto florido apareceu no alto das plantas. Tudo que sobrou de suas formas menores foram os minúsculos vasos que antes os suportavam. Agora, na frente de Willjam, estavam seis imponentes Ents de Cacto-salgueiro.
Além do medo ao ver soldados vegetais tão grandes, o caçador lembrou um pouco envergonhado de ter dito que queria beber suco advindo do corpo deles…
— Diacho. E eu querendo um golezinho – Billj disse a frase já retirando de suas costas a lâmina Bjorn. O metal refletindo a pouca luz do ambiente. A espada necessitava de duas mãos para ser empunhada de tão grande que era. Os ents nem hesitaram, partiram pra cima.
Os homens-planta eram lentos, mas a força dos membros e os espetos demonstravam o poderio que tinham. O primeiro tinha o braço esquerdo maior do que o normal. Logo de primeira utilizou-o para dar um potente soco, que por pouco não atingiu o forasteiro, que desviou. O golpe atingiu a parede do local e acabou prendendo o braço do ent, por conta de seus espetos. O tempo dado pela prisão foi mais do que suficiente. Bjorn foi movida de baixo para cima com força, decepando o braço do coitado e, depois, de um lado para o outro, cortando o entt ao meio e acabando com o primeiro dos homens-planta. Os outros dois vieram para o combate. Esses eram um pouco mais esguios, mas seus espinhos eram mais protuberantes. Espinhos esses que foram atirados como facas, mas facilmente repelidos pela Bjorn. Era fácil para uma lâmina larga, ao ser utilizada lateralmente, desviar projéteis daquele tamanho. Ganhando terreno com o desvio, Billj chegou perto o suficiente para empalar o da direita e cortar ao meio o mais à esquerda. Faltavam três.
Os últimos ents estavam próximos do elfo, formando uma espécie de barreira vegetal viva. Chegar próximo seria perigoso, o ideal seria derrotá-los à distância e de uma só vez. O aventureiro lembrou de seus truques no bolso.
A única magia que havia aprendido na vida era a de realocação de energia. Por precaução, levava uma runa de carga no bolso. Talvez, se tivesse algo para espalhá-la… Não havia tempo para pensar, o momento pedia ação.
Retirou a runa do bolso e a apertou com a mão. Sentiu a energia encher seu punho e, então, com o lampejo de memória mecânica que tinha do treinamento, realocou o poder para Bjorn. A espada brilhou como a Lua Cheia, com seus entalhes rúnicos imbuídos de poder e brilho.
Billj fez um movimento amplo da esquerda para a direita, com a espada de ponta para frente e lateral para baixo. A ação lançou um arco rápido de energia amarela, com uma área de ação de uns quatros metros. O impacto do golpe atingiu em cheio os três homens-planta, que foram cortados e, da metade pra cima, viraram pedaços de carvão do deserto.
— E aí cumpade. Você vem agora ou vou ter que tirar seu traseiro dessa terra. — exclamou o animado caçador.
O elfo fez um último esforço desesperado. Se levantou e ergueu o cajado. Usando magia de transformação mais uma vez, a madeira do bastão se contorceu até se tornar uma besta armada. Pelo cheiro de óleo, as flechas eram inflamáveis.
Cheye atirou o primeiro dardo e BIllj teve certeza. Com um pulo para o lado desviou do projétil e pôde ver a flecha perfurar a parede enquanto queimava. A velocidade do tiro devia conseguir acender as chamas por causa do atrito.
O próximo disparo já foi previsível. Bjorn foi usada para desviar a flecha, que caiu, queimando, no chão. Sacando a Python rapidamente, Billj conseguiu acertar um belo tiro no ombro do índio, que soltou a besta e tombou ao chão. O ombro ensanguentado agora segurado por uma das mãos. O combate estava terminado.
— Parabéns seu indião. Pra um elfo mago da agricultura, você batalha bem. Agora deixa eu conferir se você é realmente o meu Procurado.
Cheye não conseguia responder, a dor excruciante do ombro não o deixava pensar claramente. Tudo que conseguiu era apertar o local e ficar deitado, rolando de dor. Willjam aproximou-se e foi conferir a marca que disseram que o Procurado tinha. Uma espécie de cicatriz no pescoço.
Ao retirar o longo cabelo liso da região, conseguiu ver a pele morena do pescoço do elfo.
E ali estava a marca. Mas aquilo não parecia correto. Cicatrizes geralmente eram disformes, o máximo que demonstravam era qual instrumento que provocou a ferida. Porém, aquela tinha forma e até sentido bem estabelecidos:
Era a Árvore do Mundo. O Símbolo da Terra. A mesma figura que estava no seu pingente e que para ele significava boa sorte.
— Mas que maldiç…
Foi a frase que conseguiu dizer, antes de ser nocauteado por um imenso martelo anão.