Tribo dos Anjos Caídos - 0.2
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╰────1142 palavras
Para se tornar alguém com um bom sucesso econômico, não é nada fácil. Primeiro, Cha teve que acordar num hospital meia-boca com enfermeiros tão mal encarados quanto mal qualificados, robôs assistentes caindo aos pedaços, equipamentos que causavam tétano só de olhar, cheiro de frango frito com cebola e uma velha TV LED que noticiava a recente tentativa de assalto em Ahead.
A garota se ergue e percebe que fizeram o favor de deixar sua espada e sua bolsa grande na cabeceira da cama. Onde será que foram parar seus tênis?
⎯⎯ Galinha frita… ⎯⎯ Seu estômago fala. ⎯⎯ Talvez seja uma boa comprar um pouco antes de ir pra casa.
⎯⎯ CINCO MIL DEBS? ⎯⎯ Cha quase infarta ao olhar para a tela do caixa eletrônico. Talvez fosse melhor ter escutado a enfermeira e ficado na cama, mas precisava conferir se o que mais temia tinha finalmente se concretizado. E, não. É muito pior. ⎯⎯ Não acredito que eu valho tudo isso! Tá errado.
⎯⎯ Srta. Warren, esse é apenas o valor de metade do processo de cura. ⎯⎯ A voz da IA é fina como uma velinha fanha, talvez por conta de alguma falha do velho Me-Arm de Cha.
⎯⎯ Eu notei. Parece que um carro me atropelou.
⎯⎯ Esse foi o limite que a Guilda aceitou pagar. E continuará sendo a menos que comece a ganhar.
⎯⎯ Como assim “começar a ganhar”? Não foram todas as lutas que eu…
⎯⎯ Srta. Warren, desde quando começou sua carreira de lutadora, há um ano, participou de trezentas e setenta e duas lutas. Desistiu de cento e oitenta e seis e perdeu cento e oitenta e seis. Cento e oitenta e cinco vezes a Guilda arcou com os custos médicos. Esse é o seu limite definitivo.
⎯⎯ Mas e aquelas de antes de um ano atrás?
⎯⎯ Segundo as regras da Guilda dos Lutadores, um lutador que não está devidamente inscrito na Guilda, não é um lutador, e não terá os benefícios correspondentes.
⎯⎯ Espera, mas eu não tenho essa grana agora!
⎯⎯ Você tem um mês para quitar sua dívida.
⎯⎯ Espera…
⎯⎯ Se não for efetuado o pagamento dentro desse período…
⎯⎯ Calma!
⎯⎯ Um shadow irá acompanhá-la até o Ponto de Extração mais próximo.
⎯⎯ Mas eu…
⎯⎯ Tenha um ótimo dia!
A tela fica preta e a IA velinha some. Cha olha em volta e as pessoas da sala de espera viram o rosto. A garota sai do hospital a passos largos para não ter que olhar para as irresistíveis asinhas de frango. Se pergunta se o dono da barraquinha achou estranho ela ter passado por ele com a mão sobre o nariz.
Imediatamente percebe que não reconhece aquela parte da cidade. Quando pergunta à dona da fruteira, reconhece menos ainda. Quem diabos batiza um lugar de “Partes de Baixo”? Pisa em terra batida em vez de asfalto, os prédios são menores e amontoados, como se uma casa nascesse na outra, erguendo-se com vários lances de escadas a percorrer as estreitas vias que levam às partes mais altas do morro. As máquinas também são diferentes. As que ali gorjeiam não gorjeiam como em sua casa, são mais antigas e enferrujadas.
Enquanto a dona Cleide guia Cha, um grupo de crianças passa brincando com bonecos quebrados de lutadores da Guilda. A garota reconhece Elia Drakar pelo crânio de tiranossauro, mas os outros se veem muito deteriorados. As crianças disparam sem perceber que estão se aproximando de uma cerca de metal alta e a atingiriam se não fosse pelo soldado de colete verde-musgo que agarra o braço da menininha de tranças e a joga de volta, gritando um punhado de palavrões.
A placa sobre a cerca diz: “Fique longe! Cão bravo!”.
⎯⎯ Aqui passa um táxi até onde tu quer. ⎯⎯ informa a dona Cleide, parando em frente a uma antiga parada de ônibus.
⎯⎯ Por aqui dá em Dedos? ⎯⎯ indaga Cha, apontando para a estrada de terra que leva ao horizonte. ⎯⎯ Quanto tempo a pé?
⎯⎯ Há! Tu não é Maria, mas é cheia de graça.
A dona da fruteira se vai, e a lutadora fica encarando a procissão que precisará fazer. O sol se põe, pintando de amarelo e vermelho as ruínas do que um dia foi uma extratora de gás natural do lado esquerdo da estrada. Do lado direto, o amarelo da campina sem fim se torna dourado.
Cha pondera se o céu vai cair sobre si se ousar dizer algo como “pelo menos não tá chovendo”. Com sua sorte, não resta dúvidas.
Não é o céu, claro, mas algo de repente despenca sobre Cha. Sem aviso, a acerta em cheio e a joga com tudo no chão, uma figura encapuzada com metade de sua altura e o dobro de seu peso.
⎯⎯ Foi mal aí, bro. ⎯⎯ diz uma esquisita voz adolescente. Mãos enluvadas a ajudam a levantar, até que os dois pontos azuis do rosto escondido dele miram nos dois pontos verdes do rosto dela. Então escorrega de volta ao chão. ⎯⎯ Calma… é você!
⎯⎯ Narrador, eu sou uma piada pra você? ⎯⎯ A garota levanta a si mesma. ⎯⎯ Sou eu, garoto. Autógrafos custam cinco debs, fotos custam dez.
O garoto não para de sorrir. Cha estufa o peito, admirada consigo mesma por ser uma inspiração para outrem. A primeira coisa a estranhar é sua face. Critica silenciosamente a falta de limite de idade para implantes cibernéticos. Algumas crianças ficam parecendo monstros.
⎯⎯ ELE TÁ ALI! ⎯⎯ Ouve-se de repente. De dentro de um beco emerge uma furiosa multidão, cobertos de frango frito.
⎯⎯ Frango frito… ⎯⎯ Cha começa a babar.
⎯⎯ Me acharam, bro! ⎯⎯ O garoto corre para trás da lutadora. ⎯⎯ Proteja-me, Cha!
⎯⎯ Te… proteger?
A multidão os cerca rapidamente. Panelas, forcados, facas, machados, e o maior dentre eles veste roupa de cozinheiro e empunha uma ameaçadora espátula.
⎯⎯ Só queremos ele. Entrega ele pra gente e te deixamos ir, menina. ⎯⎯ fala o cospobre de Bob Esponja.
⎯⎯ Ela não vai fazer isso! ⎯⎯ responde o garotinho, que se agarra à minha bolsa. ⎯⎯ Ela é uma lutadora, que luta pela justiça e pelos menos privilegiados!
Sente-se comovida pela situação. Um fã está em apuros! É óbvio que ajudá-lo é o politicamente correto a se fazer, e talvez até traga um sentimento de honra para o coração de Cha. Com isso ela segura a alça da bolsa, posiciona bainha da espada, vira-se de ombros retos e se manda. Cada um com seus problemas.
⎯⎯ E- ela vai voltar. Tá só se aquecendo. ⎯⎯ O garotinho falha em esconder seu medo.
⎯⎯ Ah, é? Pois tô achando que a tua proposta de dinheiro fácil não colou dessa vez, pequeno Q. ⎯⎯ A espátula soa feroz quando o cozinheiro a choca contra a palma da mão. ⎯⎯ Se é uma lutadora mesmo, deve ganhar o suficiente pra ignorar a gente, “meros mortais”.
Imediatamente Cha se posiciona entre seu fã e o homem que quer machucá-lo e diz:
⎯⎯ Não posso deixar que um inocente seja machucado sem motivo. Pra trás, chef!
Prévia do capítulo 0.3
Cha ri internamente. O que falta acontecer em sua vida, afinal?