Tribo dos Anjos Caídos - 0.0
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╰────2185 palavras
Como uma vida pode ir de um frágil montinho de inocência para alguém capaz de balançar o mundo com sua determinação?
Afinal, toda jornada começa com o balançar de nossas crenças.
⎯⎯ Shhh. Calma, meu amorzinho. Foi só uma turbulência leve. ⎯⎯ A mulher embalou o montinho enrolado na manta escarlate. Seus cabelos ébano não eram curtos o suficiente para que o vento não os atirasse contra sua pele porcelana e o sobretudo escuro era incapaz de repelir completamente o frio que lhe causava. Ela fitou o recém-nascido em seus braços e sorriu. ⎯⎯ Sabe, filha, eu… nunca imaginei que felicidade e preocupação pudessem ocupar tanto espaço ao mesmo tempo. Tenho ainda tanto pra te mostrar, pra te ensinar. Sobre saúde, garotos, sobre o mundo…
⎯⎯ Sobre drogas e como quem usa merece levar paulada. ⎯⎯ A voz da cabine do piloto não conseguiu se fazer tão séria quanto havia tentado.
⎯⎯ Sério? Agora, Rode?
⎯⎯ Nunca é cedo demais pra aprender as lições mais importantes, Cha.
⎯⎯ Hã… drogas? Pra um bebê?
⎯⎯ Quanto antes, melhor. O mundo aí fora corrompe as crianças, querida. Isso sem falar desses jovens atuais viciados em reprises das lutas e telas pequenas. Só quero proteger nossa filha.
⎯⎯ Então preste atenção à aeroestrada, papai urso.
Novamente, o aeromóvel balançou. Como um carro terrestre numa estrada perigosa, o carro aéreo começou a tremer. As luzes flutuantes que formavam a aeroestrada haviam começado a piscar.
⎯⎯ Querida. ⎯⎯ A voz de Rode tornou-se séria. ⎯⎯ Segure firme nossa filha.
Num solavanco violento, o aeromóvel freou. Quando Rode e Cha conseguiram fazer a tontura passar, perceberam que estavam sendo puxados de volta pelo caminho que haviam tomado, o metal em volta deles rangendo alto.
⎯⎯ Ele inverteu a polaridade. ⎯⎯ Cha nunca tinha usado um paraquedas antes. Qual daquelas inúmeras cordas eram as alças? ⎯⎯ Ei, Rode, três horas!
A toda velocidade, uma figura de mochila à jato aproximava-se, pintando a noite azul-marinho com o anil claro das chamas. Rode imediatamente sacou uma pistola de dentro do treno preto e mirou, seu cabelo castanho ondulado grudado ao suor do rosto. A bala então atravessou o vidro da janela sem tocá-la, como um fantasma, e acertou a mochila a jato, clareando os prédios abaixo coma explosão e talvez acordando algumas pessoas.
⎯⎯ Vou desprender a gente da aeroestrada e te deixar perto do chão. ⎯⎯ avisou Rode. ⎯⎯ Já entendeu como funciona o avançadíssimo aparato tecnológico?
⎯⎯ Sim. ⎯⎯ grunhiu Cha, fechando o cinto em volta do bebê. ⎯⎯ Foselenaucuno, antes que eu me esqueça.
⎯⎯ Desde quando você xinga?
⎯⎯ Desde que te conheci, querido.
⎯⎯ Ok, no três. Um, dois…
Balanço. Foi como brincar num balanço a sessenta quilômetros por hora. O aeromóvel caiu numa parábola. Dentro, gravidade zero, até Rode religar os motores e dar um rasante bem acima do mirante da praça central.
Sobrevoaram a avenida principal, cujo piso branco tornava-se azul à noite e os detalhes dourados brilhavam em amarelo neon. A cerca de cem metros à frente, o triângulo gigante formado por triângulos menores erguia-se, um monumento de boas-vindas e volte logo.
⎯⎯ Estamos chegando ao Elevador. ⎯⎯ informou Rode. ⎯⎯ Vou te deixar na entrada e levar eles pra longe.
⎯⎯ Tá. Toma cuidado. ⎯⎯ Cha depositou um beijo em sua bochecha e se dirigiu à porta aberta.
⎯⎯ Te amo, querida. Nos vemos do outro la…
O balançar dessa vez foi menos um pêndulo veloz e mais o causado por uma bazuca atirando contra o veículo. O aeromóvel, em chamas, girou loucamente numa parábola rumo o chão.
⎯⎯ Cha, pula agora! ⎯⎯ Rode berrava. ⎯⎯ Eu vou ficar bem. Só vai!
As pupilas da mulher, assim como sua cabeça, não paravam. Subitamente, o gemido da filha quebrou sua indecisão e motivou suas pernas a atirarem o resto do corpo para fora do veículo.
O paraquedas a levou suavemente até a base do monumento de boas-vindas, no topo de uma grande escadaria. Um círculo com o diâmetro da base do triângulo acendeu-se em branco quando pousou seus pés descalços sobre ele, mas Cha não parou de olhar um segundo para o aeromóvel em chamas, que desapareceu em meio aos prédios, seguido por várias outras sombras que usavam mochila a jato.
⎯⎯ Rode! ⎯⎯ Cha deu um passo involuntário na direção do acidente, mas um repentino clarão a fez recuar. Uma trovoada e o cheiro de chuva preencheram o ambiente. ⎯⎯ Vocês. É claro que ele mandou vocês.
Três figuras vestidas de noite aproximaram-se, uma esguia como uma jovem mulher, uma fina como um homem de meia idade magro e uma curva como um idoso.
⎯⎯ Mestre ⎯⎯ falou a silhueta feminina. ⎯⎯ Por favor, pare. Não queremos te machucar.
⎯⎯ Então abaixem suas armas e me deixem ir. ⎯⎯ rebateu Cha.
⎯⎯ Sabe que não podemos.
⎯⎯ Não. Não, mesmo.
A mulher apertou seu bebê contra o tórax e disparou para longe do trio.
A noite entoava sua canção em forma de brilho estelar, com inúmeras das mais radiantes cantoras diamantadas em seu palco azul-marinho infinito. A lua cheia acompanhava as largas passadas da fugitiva, tingindo de prata o alto e largo muro de aço e concreto que separava o urbano e seus residentes de uma queda quilométrica além da borda. E, além da borda, a mesma brisa intensa que pastoreava as nuvens também fazia os cabelos da fugitiva dançarem a orquestra da noite.
Cha saltou assim que sentiu a onda de eletricidade se aproximar por trás, deixando-a passar por baixo e se dispersar metros à frente. Ainda no ar, girou para desviar das machetes voadoras que brilhavam num branco puro, e pousou de cara para uma terceira lâmina clara como a lua, esta porém longa como a arma de um espada-chim e empunhada por um cavaleiro negro. A mulher esquivou da primeira estocada, da segunda e da terceira. Era perceptível a ausência de letalidade em cada golpe. O adversário realmente não queria machucá-la.
Cha então se aproveitou disso e abriu um espacate durante um ataque mal aplicado, derrubando-o com uma rasteira. Mas percebeu seu erro logo em seguida, pois absorta em não ser pega, acabou deixando-se ser conduzida até a beirada. Às suas costas, o vento assobiou sua ameaça.
⎯⎯ Não queríamos fazer isso, mestre. ⎯⎯ O cavaleiro negro se ergueu com a espada em riste, sua voz grossa e aveludada.
⎯⎯ Mas você não tá nos deixando escolha, menina. ⎯⎯ A voz empoeirada do velho curvo se aproximou do lado direito do espaca-chim, assim como a mulher jovem do esquerdo com as machetes orbitando sua cabeça.
⎯⎯ Não vou mais tentar convencer vocês. Todo mundo é livre pra acreditar no que quiser. Mas nem mesmo meus amigos vão me impedir de fazer o que eu acho certo. ⎯⎯ Cha avançou na direção do cavaleiro negro, que fez um arco horizontal com a espada onde a mulher já não estava, afinal ela havia saltado num mortal sobre ele, pousando suavemente às suas costas e pronta para roubar-lhe a arma.
Mas tudo foi por água abaixo por conta de um choro de bebê. De um segundo para o outro, como se um gongo houvesse soado, tanto Cha quanto o espada-chim perderam a concentração. No segundo seguinte, vermelho cobria a lâmina imaculada e os berros de uma mãe desesperada ecoavam pelas ruas.
O espada-chim recuou, incrédulo. Aturdido, olhou para sua espada como se com medo dela (ou de si mesmo), mas o vermelho pertencia somente à manta que havia arrancado sem querer. Tremendo, Cha averiguou o infante em seus braços e constatou que estavam bem.
⎯⎯ Já chega. EU vou apagar ela. ⎯⎯ O idoso trovejou na direção da mulher caída.
Subitamente, o chão se rompeu. Uma explosão de metal e concreto acompanhada de um urro gutural deu lugar a um vulto negro colossal, que jogou todos os três perseguidores para longe de Cha. Esta ficou de pé e encarou os agitados olhos carmesim do urso negro de quase três metros de altura com dentes como obsidiana e mochilas de viagem como pulseiras nas patas dianteiras, as quais portavam garras tão escuras quanto piche. Cha aproximou-se de seu furioso rosto, tocou sua bochecha e proferiu uma única palavra:
⎯⎯ Acalme-se. ⎯⎯ E então as pupilas voltaram ao verde original. A criatura se contorceu e grunhiu, então diminuiu até assumir à forma de um homem nu. ⎯⎯ Pronto. Acha que ele tá perto, Rode?
⎯⎯ O triozinho da alegria nos atrasou. ⎯⎯ O homem não demorou para arrancar uma muda de roupa de uma das mochilas e vestir. ⎯⎯ Ele não deve estar muito… Ah, e falando no diabo, olha quem me aparece.
O tremor foi seu arauto, e não demorou para ele mesmo surgir da silhueta dos prédios, suas sete cabeças serpenteando a procura de suas presas, seus dez chifres perfurando o azul-marinho e seus vinte olhos azuis declarando sentença letal a quem ousasse ficar em seu caminho. Em seus plenos noventa metros de altura, ele abriu suas asas de morcego, cuja envergadura quase varreu um terço das estrelas do céu, e assim mostrou as partes mecânicas que refletiam o brilho anil dos próprios detalhes luminosos. Num salto majestoso, alçou voo, e o mundo abaixo escureceu sob a sombra do dragão de metal.
⎯⎯ Kuroshiro, seu desgraçado. ⎯⎯ Com as mochilas nas costas, Rode segurou a mão de Cha. ⎯⎯ Por que não toma vergonha na cara e vem você mesmo atrás da gente? Vamos, Cha. Temos que nos esconder.
⎯⎯ Não. ⎯⎯ A mulher se desvencilhou do marido e estendeu a mão aberta para a mochila preta com a faixa laranja. ⎯⎯ Me dê a espada.
⎯⎯ Quê? Não. Deixa de maluquice.
⎯⎯ Rode!
⎯⎯ Esmeralda ainda pode estar no aerocais. Vamos atravessar o bairro e…
Mas uma vez o toque de Cha em sua bochecha acalma suas inquietações. Mais uma vez, Rode se perguntou como conseguiu achar uma anja como ela.
⎯⎯ Sem chance de você enfrentar aquilo sozinha. Além disso, só pode usar “aquilo” mais uma vez apenas, e não é o momento certo. ⎯⎯ O pai pegou a filha no colo para facilitar a descida de Cha pela escada que ladeava o muro. ⎯⎯ Você já lutou o suficiente, amor. Merece ser livre, fazer o que quiser. Tem uma filha que merece a melhor mãe do mundo do lado dela. Vamos viver pra lutar outro dia.
⎯⎯ Você… tem razão. ⎯⎯ A mulher se aproximou da escada e olhou para o gigante alado em seu rasante chamejante. ⎯⎯ Mas não se preocupe. Vou ficar bem.
Mais rápida do que qualquer reflexo, ela segurou firme a bainha negra encaixada na mochila e empurrou Rode muralha abaixo, Esperava que seus gritos fossem de surpresa, e não de decepção. Alguns segundos depois, o homem com a filha nos braços quicou em segurança no trampolim do circo que visitava a região, do lado de dentro da muralha.
Do lado de fora, a fera de sete cabeças terminou a curva de centro e oitenta graus e rumou na direção de Cha. Sua longa calda chicoteou o resto da revoada que suas bocas não conseguiram tragar, e as asas rasgaram a nuvens ao meio. Ao mesmo tempo, Cha punha a alça sobre o ombro e posicionou-se com a mão sobre a ponta o cabo da katana, a outra na boca da bainha, seu próprio corpo reto como uma lâmina cravada na pedra.
⎯⎯ Milorde ⎯⎯sussurrou e fechou os olhos para uma profunda respiração, seu rosto sereno como a face da lua. ⎯⎯, minha filha pode ser a esperança da humanidade, mas… se alguma vez algum de meus serviços mereceu, eu imploro… imploro por sua bondade, ó Deus dos Ventos da Liberdade, que ela seja livre pra escolher…
A fera robótica era uma bala colossal, cujo rugido estilhaçou as vidraças mais frágeis dos edifícios menos sortudos e fez os joelhos de Cha tremerem, mas nunca, em hipótese alguma, sua fé.
⎯⎯ Livre pra escolher o próprio caminho. ⎯⎯ Ainda de olhos fechados, Cha tirou o sobretudo, empertigou as costas, e as tatuagens tribais que as cobriam começaram a se mover e a irradiar um dourado intenso como um sol de verão. As exóticas linhas serpentearam ao redor da coluna vertebral e o brilho tornou-se fulgor, encobrindo Cha por inteiro. ⎯⎯ Heroína ou não, é minha filha. MINHA filha. E, em nome dela, concedo este sacrifício ao senhor, milorde.
O fulgor começou a diminuir, absorvido pelo par de feixes luminosos que vazavam das costas da mulher. A luz começou a serpentear como as tatuagens e a tomar formas tão elegantes quanto flocos de neve, formas pontudas como a extremidade de uma lança, fileiras e fileiras de tamanhos variados, como penas ou uma constelação. Quando o dourado se tornou mais sóbrio e a transformação cessou, às costas de Cha um par de asas de luz estendia-se com uma envergadura que superava o dobro da altura da anja, e principalmente a mais bela obra de arte que qualquer mortal poderia criar.
A anja e o dragão se encararam com o fervor de dois exércitos inimigos. O frio da brisa no ar e o calor do aço no chão eram sua arena. O mundo, a plateia. A anja flexionou suas asas de luz e sacou a katana, o dragão de metal precipitou-se sobre ela com uma bola de fogo em cada garganta, e a lua presenciou o espetáculo que daria início ao fim.
Prévia do capítulo 0.1
De um segundo para o outro, imagens inundam sua mente, como telas de propaganda num aplicativo, mas essas se tornam cada vez mais reais à medida que os milésimos passam: grãos de arroz cobrindo o chão, as cinzas de uma lareira apagada, dois cobertores brancos, uma manta prateada cheia de fiapos. A última é a mais real de todas, um punho branco agigantando-se sobre ela, não o branco das nuvens ou de uma folha de papel, mas sim o da inflexível morte, e a música eletrônica se esvai de uma só vez.