Trabalhe! - Capítulo 28
Dia 1
“Iky adverte, se for brigar não dirija sem ficar bêbado antes.”
— Vamos sair do carro. — Susi dá uma ideia muito boa, por isso concordo com ela na hora.
Susi para em um lugar qualquer, nós sentamos em um banco de praça aleatório, aos poucos conseguimos relaxar e voltar ao normal.
Maldita seja a adrenalina! Fazia tanto tempo que não me sentia assim, fiquei tão assustado que por um segundo a preguiça saiu do meu corpo.
Não se preocupe, ela já está de volta.
— Desculpa ter gritado com você. — Vamos começar garantindo que eu não acabe morando embaixo da ponte.
A garota dá de ombros e mostra uma expressão calma agindo como se não fosse grande coisa. — Relaxa, não é como se eu não entendesse seus sentimentos. Na verdade… em certa medida eu também… — Ela trava, mas no fim ainda solta a bomba com um tom leve. — Tenho ódio por você.
Que? Eu não esperava por essa, merda! Estou curioso, mas, ao mesmo tempo, tenho medo de saber a razão. Agora, entre encarar ou fugir, qual acha que vou escolher?
Não digo nada e finjo nem ter ouvido. Sim, obviamente vou escolher fugir, nunca houve possibilidade de outra escolha.
Susi, se arrependendo do que disse, continua. — Esquece o que disse e não se preocupe, a culpa é minha. Não posso reclamar, afinal no momento em que você estava… — Droga! Já disse, odeio ver pessoas se culpando mais do que deviam. A pior parte, acabei de contribuir para aumentar essa culpa.
Dou um peteleco na testa da garota. — Para de se achar tanto, eu tenho certeza que conseguiria destruir minha vida não importa quais fossem os fatores iniciais, tenho confiança na minha incompetência.
Susi não parece nem um pouco convencida. — Vamos, até você sabe que isso não é verdade, né? Eu sei que você sempre se culpou por tudo. Sei que várias coisas deram errado ao ponto de você não aguentar mais falhar, mas, Iky, você só deu azar, não precisa continuar tendo medo de tentar.
Primeiro, eu não quero tentar, dá muito trabalho! Inclusive, eu não quero nada além de internet, comida e uma cama… ok, chuveiro também é legal, além de uma graninha para jogos, um computador bom e… Ok, eu quero várias coisas, mas definitivamente não quero tentar.
Segundo, mesmo se eu quisesse tentar, tenho confiança na minha incompetência. Se fossem fazer um rank de inutilidade eu estaria em primeiro e com folga para o segundo. Esse é o posto que tenho por direito, não vou deixar ninguém chegar perto de ser tão inútil quando eu!
Claro, é melhor não falar isso para a garota na minha frente, ela vai continuar falando sobre o assunto e tentando me convencer, isso seria um porre, acreditem.
Susi me olha irritada. Ela leu minha mente por acaso? — Por que você não pode acreditar em mim?! Que saco, Iky, você não é um fracassado.
Vamos lá, não tenho emprego, fui expulso da faculdade, de três orfanatos e de uma comunidade religiosa, sério, fiz hat-trick em expulsões. Não só isso! Também não tenho amigos, não mais, não sei fazer nada e olha que nem comecei a listar as coisas que tentei fazer, mas não rolaram.
— Ok, ok, não precisa ficar se preocupando com esse assunto. Agora voltando, estava te explicando sobre como você não precisa se culpar, até porque depois daquele dia eu ainda entrei para…
— Usp, eu sei, você tinha passado em alguma engenharia, né? Mas acabou desistindo do curso. — Na verdade, fui “expulso”, mas essa não é uma história na qual eu quero entrar.
— Se você já sabe relaxa.
— Claro que não, eu só sei essa parte da história, mas não sei porque você desistiu da faculdade, muito menos porque você desistiu de tudo. E, mais importante, para de tentar mudar a porra do assunto da conversa, estamos falando sobre você.
— Nop, a partir do momento que você falou sobre o passado, o assunto automaticamente virou essa sua culpinha que carrega até hoje. Claramente, o assunto de hoje é como fazer você se perdoar logo.
Susi fica irritada, por isso chega mais perto para falar. — Primeiro, você não tem moral para falar de auto perdão! Segundo, isso não tem importância, eu quero saber sobre você aqui.
Droga! Também estou ficando irritado. Também chego mais perto da Susi.
— Vamos, sabe que eu não vou te contar, não enche! Agora, voltando para o assunto de verdade, vamos falar sobre você.
— Não, sobre você!
— Não, você!
E nossas testas se chocam de forma quase nostálgica! Automaticamente me lembro de quando éramos crianças. Mais especificamente, lembro de como brigávamos com frequência dessa mesma forma.
Sim, nós dois brigávamos direto, principalmente porque éramos muito parecidos, pensamos do mesmo jeito e costumamos concordar.
Ok, ser parecido demais pode não parecer um bom motivo para brigar, mas, por querer as mesmas coisas, disputávamos por elas o tempo todo.
Mesmo agora, nós dois meio que queremos a mesma coisa, mudar o assunto para um que nos seja mais confortável.
Naturalmente acabo percebendo tudo isso, o que não significa que vou dar para trás, ainda quero mudar de assunto, não importa o custo.
— Ok, — Susi se acalma e retorna ao seu costumeiro olhar e postura cheios de uma confiança dominante — vamos falar de mim.
Susi chega bem perto de mim e me encara diretamente nos olhos. Não esperava por isso, mas posso dizer que a Susi está mostrando um sorriso confiante. Já eu, tenho arrepios até na alma, tenho muito medo do que pode vir da cabeça dessa garota.
— Não posso esperar que você se abra para mim se eu não fizer isso primeiro — até aqui tá de boa —, mas… — Sabia, eu sabia que tinha que ter um porém nessa história!
— O que quer? — pergunto desconfiado.
— Nada demais, apenas um acordo. Vou te contar tudo o que quiser sobre a incrível história de vida da Suzan Pinheiro e responder qualquer pergunta, mesmo que possa encontrar a maior parte na wikipedia.
Vai dar merda, tenho certeza que vai dar merda, mas ainda pergunto: — E o que tenho que fazer em troca?
— Simples, apenas fingir que não brigamos e ir visitar o orfanato comigo.
Superintendente, não é uma proposta ruim, porém… — Só se você não dirigir.
— Você tem licença de motorista por acaso? — Digo que não com a cabeça. — Então como espera que cheguemos lá? Por acaso quer andar duas horas? Eu até topo, mas…
— Nunca! — Recurso na hora. — Apenas chame o motorista-san para cá.
Susi me dá um olhar sem entender direito. — Está falando do Darci? — Não faço ideia, mas assumo que seja a pessoa certa e digo que sim.
No fim, Susi decide chamar ele, aparentemente o velho vai ganhar um bom extra por todas as inconveniências que ela fez ele passar.
— Agora, enquanto esperamos, acho que é minha vez de ouvir sua história.
— Sim, mas ela não tem nada de mais, eu já te contei o meu motivo, simplesmente queria me afastar do meu passado e te ignorar foi parte disso. Bem, naquele dia especificamente também tinha minha “amigas” comigo e eu definitivamente não queria ter que explicar para elas o porquê de eu conhecer alguém como você.
É muito divertido sentir a culpa e vergonha da Susi ao se explicar. Ela parece pronta para socar a sua versão do passado.
Susi me dá um olhar assassino. — Quer morrer, sádico? — No fim, como sempre, ela nota o que se passa pela minha cabeça.
— Você sempre se diverte com meu sofrimento, só estou devolvendo na mesma moeda. — No entanto eu estou, dessa vez, certo. Ou, no mínimo, menos errado que de costume. — Mais importante, eu já fazia isso antes de você. É engraçado, muito tempo passou, mas você continua sendo só uma garotinha querendo me copiar. — Completo com um sorriso irônico para irritar o outro lado.
— Sim, sim, não nego nossas semelhanças, você é tipo a minha versão demo. — Não vou mentir, já esperava essa resposta. Susi não é muito criativa, mesmo após todos esses anos ela ainda usa a mesma resposta.
Agora, verdade seja dita, ela está certa. Tenho certeza que quando Deus estava planejando essa garota, ele resolveu pegar todos os defeitos dela e colocar numa pessoa, só de zoas. Me fodi porque ele esqueceu de colocar as qualidades junto.
Ok, esse adendo já foi grande o suficiente. — Vai, continua contando a história. — Boa! Sempre quis mandar a Susi fazer algo dessa forma.
— Suspiro! Ok. Depois daquilo as coisas continuarão mais ou menos do mesmo jeito. Até que finalmente notei como a maioria das pessoas à minha volta eram uma merda. Enfim, tudo mudou quando entrei na faculdade, conheci novas pessoas e mudei minha visão de mundo, parei de ter vergonha do passado.
Susi leva a mão à testa, ela parece realmente não lembrar de muita coisa, talvez porque ela tem que usar o cérebro para lembrar, analisar e resolver tanto problema todo dia, que não sobra espaço para memórias do passado.
— Depois acho que fiz várias coisas por hobby e por estar entediada, foi assim que ganhei muito dinheiro. Basicamente, me livrei das pessoas que me colocavam para baixo e fiquei mais confiante, ai fui fazer as coisas que queria, me esforcei e consegui, o que me deixou ainda mais confiante. — Repita esse ciclo sem parar por 10 anos e temos a Susi
Isso é frustrante, os medos e traumas dessa garota estão quase todos no passado, não tem nada para eu usar. Só a culpa sobre o passado, o único problema que restou para ela é esse.
Não é possível! Tem que ter mais coisas.
— Só isso? — perguntei.
— Vai se foder! — Susi, entendendo no que eu estava pensando, me xinga com razão. — De qualquer jeito, ainda pode fazer qualquer pergunta até o Darci chegar, use bem esse tempo.
Ela me olha confiante de que não tem nada que eu possa perguntar para a fazer desconfortável, porém ela não contava com… esquece! Não quero falar disso agora e não tenho mais nenhuma carta na manga.
Merda! Alguma coisa, para dar o troco por todo o meu “sofrimento” e para tirar esse sorriso confiante do rosto dela.
— Por que você disse que também tem ódio por mim? — Porra! De todas as perguntas eu tinha que ter feito essa?
— Ok, vou listar todos os motivos, mas ouça com atenção pois serão inúmeros. — Ela continua com o olhar confiante e agora parece mais sádica.
Agora é rezar e se preparar para o massacre.