Sua Alma Amada - Capítulo 26
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Cada nota tocada emite uma coloração, que no ritmo das batidas gera uma certa vibração, e a união dessas cores forma um majestoso arco-íris, que assim como nas histórias, aqui também aponta para um tesouro, mas não algo como o ouro, a prata ou até o mesmo bronze, não, pois Thomé jamais viu isso em toda sua vida. Seus tesouros são suas memórias, aliás memórias de um coração que só tem memórias, pois jamais viu algo nessa vida, tudo que ele tem são memórias.
Mas como pode um conjunto de vivências imaginadas ser genuíno? É preciso ver para crer, é preciso ver para imaginar, é preciso ver para entender. Thome compreendeu algo que ele quer passar para Zac, pois mesmo com os olhos fechados, seu coração permaneceu aberto todo esse tempo, cada som, cada cheiro, cada abraço e cada sabor marcou a sua alma.
Não é loucura pensar que Thome talvez seja a pessoa que mais enxergou as coisas em toda Urano, e não por ironia, seu poder apresenta aquilo que ele mas, que é o entrelaçar da cor, com os sons e suas memórias. No espaço vazio em seus olhos, propagam som, luz e poesia, levando alegria ao lugar que outrora era vazia.
O coração de Zac sensibilizado pelo que já ouviu e presenciou, sente com mais veracidade cada nota tocada por Thome, é como a cada dedilhada no contrabaixo o coração dele fosse sendo exposto, toda aquela robustez dá origem a uma alma meiga e gentil.
— Sabe Zac, poucas pessoas sabem da minha história, além da possibilidade de nem mesmo eu saber a verdade. Mas nesse exato momento sinto a necessidade de contar para ti, pois sem que lá no fundo somos parecidos.
No emaranhado de cores, a coloração flui como ondas do mar, onde elas se chocam e recuam, algo tão belo que Zac começa a lacrimejar, pois o movimento das ondas acaba gerando uma certa paz, entretanto de uma hora para outra, as cores começam a girar rapidamente, e nisso as cores vão se misturando.
Antes o que poderia ser comparado com um arco íris, após ser agitado e misturado acaba assumindo uma coloração amarronzada, algo que se assemelhava a lama ou melhor a barro. Zac observa que todo o seu redor está coberto por lama, suas vestes, o chão, as mãos de Thome e até mesmo seu instrumento musical.
Mas até mesmo o barro tem uma cor, até aquilo que é tratado como sujeira, que se passa por cima, que é formado em dias chuvosos e que sujam os pés quando pisado possui uma coloração. Mas infelizmente para Thome tudo tinha essa textura, até mesmo o marrom que Zac vê começa a se esvair, dando origem a um branco, mas não aquele que remete a paz.
Um branco na tonalidade gelo, sem vida, sem qualquer beleza, que está lá por estar, pois dele foi esvaído qualquer possibilidade de esperança e paz. E Zac lá no fundo começa a se lembrar, dessa mesma cor, dessa mesma sensação que o faz desabar em choro e soluços.
Cada nota, cada cor, cada dor penetra tão fortemente no coração de Zac, e isso se dá pois ele compreende perfeitamente, ele não sabe quando mas sabe que alguém em seu passado foi responsável por tirar toda beleza das coisas, toda esperança futura foi sufocada, o mundo passou a ser preto e branco.
Ele mergulha de cabeça em suas memórias, que o dilaceram por dentro, mas de uma forma surpreende enquanto ela perfura no mais íntimo do ser ela também ajuda a limpar, Zac sente que por mais que as lembranças sejam dolorosas, ele sente que o seu corpo, mente e alma estão sendo curadas.
Zac olha atentamente para o ambiente coberto por um branco deprimente, quando de repente Thome começa tocar algumas notas mais graves, que projetam ondas na coloração preta. Ondas essas que se propagam no espaço branco, mas que estranhamente colidem com algo bem no centro, e quanto mais notas tocadas, mas visível se torna a imagem.
O choque das ondas cria um contorno, mas diferente da outra história que Zac acabou de ver, esse contorno não é muito bem delimitado, ele tá mais para alguns rabiscos que mudam um pouco com o choque das ondas.
Os impactos constantes começam a formar uma imagem, uma silhueta de uma criança toda recolhida, sentada no chão enquanto pressiona seus joelhos contra seu corpo com o auxílio de suas mãos. Entre alguns espasmos é possível perceber que ela está embargando o choro, para que ninguém a escute.
Enquanto olha para essa criança e se projeta nela, Zac percebe que ao fundo está rolando um certo diálogo.
— Já estamos muito tempo com esse fardo, nossa família não poderia passar por essa humilhação, a culpa é sua desta criança ter nascido assim — uma voz masculina rasgada, com extremo ódio e rancor — você que se vire, bem que minha mãe me avisou, então dê um jeito nisso.
— Você acha que eu queria isso também? Eu gerei essa criança e ela veio assim, esperamos até agora e nada. Você é tão culpado quando eu nisso — uma voz feminina embargada, mas não por sofrimento e sim por angústia — porque tinha que ser conosco?
— Pode parar, calada, a culpa é sua. Isso aconteceu porque me envolvi com gente da sua laia, essa criança foi gerada, ele é o único em toda Uranos com essa maldição, ele é defeituoso, estamos no paraíso e ele veio com defeito. Só tem uma resposta para isso, você é a culpada.
— Não me culpe por favor, vamos fazer algo, tentar recomeçar. Eu não posso voltar de onde eu vim, eu faço tudo, vou pensar em algo.
— Pense logo, se não você sabe o que vai acontecer. Eu tenho nojo de entrar naquele quarto e ver aquela criança com os olhos fechados, você não sabe como tem sido vergonhoso ver os filhos dos meus amigos brincando e o meu tá ali. Um deles veio falando que o filho dele estava aprendendo a ler, e o meu jamais, como ele vai conseguir fazer isso? Era melhor ter nascido sem, do que ter e não funcionar.
— Eu entendo tudo isso, vou arrumar alguma forma, mas ele vai continuar sendo nosso filho.
— Já falei e não vou falar de novo. Essa criança não tem nada haver comigo, você sabe muito bem disso. Chamamos os melhores healers e nada, ainda bem que todos acham que essa criança é filha da empregada. Mas essa mentira não vai funcionar mais, porque ela está crescendo e ficando diferente da empregada. Então hoje é o limite, não quero nem saber, se vire.
Zac entende que a criança a quem estavam se referindo era o Thome.
— Sabe Zac, nessa época eu deveria ter entre 1 a 3 anos de idade. Eu não entendia nada que estavam falando, mas eu sabia que era sobre mim. Eu sabia que eu era o culpado por tudo isso, fazia tempo que não sentia o calor de um abraço.
— Porque ele não abriu os olhos? Quando peguei no colo eu sabia, eu pedi tanto para que ele abrisse os olhos e quando abriu não enxergou nada. Vou aproveitar que ele foi trabalhar para poder resolver essa questão, não posso perder a oportunidade de viver essa vida.
— Eu me pergunto diariamente se foi isso mesmo que aconteceu comigo, como nunca enxerguei acabou que minha memória para sons, cheiros e outros sentidos sempre foi muito boa. Mas me lembrar dessas palavras me machucam, eu prefiro acreditar que isso é invenção sabe hehehe — lágrimas caem enquanto Thome fala.
— Já sei, certa vez contratamos um monge para vir aqui tentar ver se poderia nos ajudar e ele comentou sobre o mosteiro, vou deixar essa criança lá. Como ele nunca nos viu, não vai ter problema.
Enquanto ouvia a conversa, a criança continuava ali, no chão e em meio às lágrimas. Mas uma luz surge, uma porta é aberta, mas enquanto a criança tinha apenas um contorno preto e a parte interna branca como gelo, a silhueta na porta é diferente, pois ela é densamente preta.
— Filho, não chore não, venha comigo. Vamos passear e tomar um ar fresco.
— Então Zac, essa foi a primeira vez que eu sairia para “passear” e mal sabia que seria a última. Ela não fez nem questão de segurar na minha mão, nem me pegar no colo, ela só queria me ver longe de lá, assim como ele.
Da mesma porta surge uma outra silhueta feminina, só que com o contorno preto e a parte interna branca. Ela vai na direção do bebê e o pega no colo.
— Essa foi a última vez que senti calor humano, o calor de um abraço, mal sabia eu.
Zac sem nem pensar duas vezes, se levanta, corta a projeção no meio, ele não está ligando se seu corpo está machucado ou fatigado, ele só se aproxima de Thome e dá um abraço, ambos choram e a música acaba mudando, a melodia que era um pouco mais pesada se torna mais suave.
— Muito obrigado garoto — agradece com uma voz embargada.
Nesse mesmo instante, a mulher de silhueta preta sai de perto da porta e vai andando.
— Agora venha comigo, vamos levar esse garoto para dar uma volta. Ande logo, tenho mais coisas para resolver ainda hoje.
Após abraçar, Zac se senta em uma posição que o permite ver a história de um ângulo melhor.
A imagem muda, cada nota propagada começa a se chocar, mostrando duas mulheres, assim como antes, uma completamente preta e a outra apenas com contorno, e essa carregava um bebê em seu colo. Ambas estão caminhando e parecem entrar em uma espécie de lugar.
— Ele não vai voltar né? — questiona a empregada.
— Porque está perguntando? Se coloque no seu lugar.
— Me desculpa, só queria ajudar, é porque ele nunca saiu daquela casa, não sei o que vai ser feito, mas ele pode ficar comigo.
No momento que ela fala uma linha vermelha se estende e parte em direção a criança, mas ela é quebrada ao meio quando a outra mulher para e diz:
— Não te perguntei, pedi apenas para pegar. Me admira você né, não tem onde cair morta. e quer levar essa aberração com você — Ela apressa os passos e a cada passo o contorno vai se agitando, como se alguém estivesse escrevendo colocando muita força no papel — Bora, aperte o passo.
Elas chegam em um local repleto de vultos caminhando para direita e para esquerda.
— Talvez essa tenha sido a primeira vez que vi alguma coisa, além de uma cor incrível tinha um cheiro maravilhoso, era quentinho estar no colo dela. Sempre me pergunto como seria minha vida se tivesse mais oportunidade de viver naquele abraço.
Um homem com uma leve margem preta se aproxima das duas mulheres e sem trocar nenhuma palavra toca nos olhos do bebê com sua mão esquerda.
— Sabia que viria para cá, os rejeitos sempre vêm parar aqui. Uranos não precisa de alguém defeituoso né? — Ele solta uma leve gargalhada — Pessoas assim precisam ficar enclausuradas, seja muito bem vindo rapazinho.
A mãe da criança não fala uma única palavra, vira a cara e sem nem se despedir começa a andar em direção a saída.
— Você não vai falar nenhuma coisa para ele? Ele é uma pessoa, ele é seu filho — enquanto a empregada falava a mãe voltou e deu um tapa no rosto de sua funcionária.
— Você não é paga para perguntar, apenas deixa a criança e vamos logo.
A empregada deixa o bebê nos braços do monge e se retira com um olhar de tristeza em seu coração.
— Ehh jovem, você teve uma vida difícil, estava numa família difícil, desde que te vi naquele quarto percebi sua dor. Mas aqui não vai ser muito diferente, mas pelo menos vai ter dignidade, esse mundo não aceita nada com defeito.
O rapaz de silhueta gentil, coberto por uma fina camada de prego puxa a manga da sua camisa e nesse momento é visível que não tem nada ali, por algum motivo esse rapaz nasceu com uma deformação no seu braço direito. No momento que ele coloca a manga no lugar, uma linha verde sai de dentro do rapaz e parte em direção ao bebê.
— Somos iguais, mas a minha dor não se compara com a sua. Por mais que não possa abraçar eu já vi o que é o abraço.
— Zac, essa foi a pessoa que me deu esperança, eu sou a cópia desse senhor chato. Considero como pai, mesmo sendo turrão, se não fosse por ele eu não sei onde estaria.
— Ele parece ser um cara legal, ele também me lembra alguém, mas quem despertou esse sentimento em mim foi um amigo de cabelo mais avermelhado.
— É muito importante termos gente assim do nosso lado, mas antes de te mostrar o que realmente mudou minha trajetória. Sinto que preciso te contar algo que nunca contei pra ninguém.
— Pode ficar a vontade Thome, sou a todos ouvidos.
— Há alguns anos atrás, não me lembro quando, mas eu estava guiando algumas pessoas e do nada ouço uma voz, uma voz que me fez tremer de medo e ficar atônito — Thome segura o choro — Eu não sabia o que fazer, passei muito tempo pensando no que faria ao ver aquela mulher que me rejeitou.
— O que você fez? Você falou com ela? Mostrou para ela que ela tava errada
— Não Zac, eu descobri naquele dia que não precisava mostrar nada para ela. Pois ela jamais conseguiria ver o que eu vi, eu até pensei em me aproximar mas eu recuei.
— Porque tu recuou?
— Eu ouvi ela falar: Filhos vem para cá. Enquanto falava de forma sorridente e as crianças riam de alegria. Eu sorri, eu nunca fui visto por ela como filho, mas eles sim e espero que isso jamais mude. Talvez o problema realmente tenha sido eu, mas naquele momento eu estava em paz, eu botei meu capuz e segui o caminho como guia.