Sua Alma Amada - Capítulo 24
1/4
O caminhar dos lobos acaba gerando um certo ruído ao bater no chão tecnológico, ruído que mistura um som opaco (pois aquilo que é vivo não consegue se conectar com a inerte tecnologia) com um som de semelhantes de faíscas, um estalo agudo, seguido por uma breve onda de ressonância, ecoa como um suspiro repentino da matéria perturbada, enquanto partículas colidem e liberam energia, um instantâneo audível que transcende o silêncio momentâneo e proclama a intensidade do choque.
E nesse momento, graças a física que o objeto tangível consegue se comunicar com um ser etéreo. Pois a penugem dos lobos, que é composta por fibras finas e ásperas, ao entrar em contato com uma superfície, cria atrito devido às pequenas protuberâncias e irregularidades em sua estrutura.
O pelo desliza sobre a superfície, e as protuberâncias agarram-se momentaneamente, resultando no fenômeno que conhecemos como atrito, uma força que se opõe ao deslizamento relativo entre duas superfícies. Fazendo com que pequenas fagulhas saiam enquanto caminham pela superfície de Paideia.
O atrito entre dois mundos, na superfície aquilo que é superficial puxa o natural, tentando o fazer parar, mas a energia gasta para o manter em movimento acaba extravasando. Cada partícula liberada é um grito de resistência, pois o natural ainda permanece em movimento, já que seu objetivo é algo transcendental.
— Zac, o Kyron não me falou nada sobre isso, não sei muito bem sobre sua história. Mas acho que temos algo em comum, pois vejo que dentro de ti também percorre uma bela canção.
— Ehhhh, talvez você tenha razão Thome e eu tenha algo que ecoa aqui dentro, mas não sei se consigo expressar como você faz.
Enquanto o diálogo entre Zac e Thome ocorre, Kyron parece estar distante, seu corpo está ali, aliás, seus músculos estão mais contraídos do que nunca, pois o medo de cair é grande, entretanto sua alma está longe. Mas não no sentido de espaço, sua alma está longe em relação ao tempo, como se estivesse alguns anos na frente.
Thome percebe que seu amigo está distante e entende rapidamente o que está acontecendo.
— Mais uma vez ele tentando orquestrar e mandar no tempo, infelizmente ele não percebe que está se tornando escravo. A busca pela perfeição está te corroendo pobre amigo. — Ao terminar, Thome leva suas mãos até seu rosto e começa a enxugar algumas lágrimas.
Zac fica sem entender o motivo que levou Thome a falar tais palavras, fazendo pairar um olhar de confusão sobre sua face.
O ambiente continua da mesma forma, o horizonte coberto por estruturas tecnológicas gera um desânimo, ver sempre a mesma coisa gera não só um cansaço na vista mas também na alma. Mas lá no fundo Zac avista algo diferente, bem lá no horizonte ele percebe que algo está para mudar.
— Jovem Rapaz, você é muito curioso, em menos de um minuto mudou completamente a sua postura. Antes inquieto com perguntas, agora ansioso e alegre pois avistou novas aventuras.
— Thome, com todo respeito, você é muito maluco. Não me leve a mal, mas um maluco do bem sabe, do nada você começou a falar sobre orquestrar o tempo, agora sobre minha postura, bem que o Kyron falou que você era uma figura.
— Hehe, não levo a mal não. É bom não ser igual, aliás você não está sentindo não? Eu comentei porque achei que estivesse, talvez tenha me enganado.
— Como assim, sentindo o que? — Questiona Zac.
— Comentei que temos algo em comum, pensei que você também pudesse sentir o universo astral, seu professor já te explicou né?
— Ele comentou sim, mas não entendi muito bem como funciona.
— Ahhhh típico do Kyron, nunca termina, sempre deixa o aluno descobrir por si só — enquanto fala, Thome solta uma leve gargalhada — ele não muda mesmo, mas o que ele te falou?
— Pô, então eu não lembro não, eu não estava prestando tanta atenção quando ele explicou.
— Então você também é assim, vou aproveitar e assumir o papel de professor. Olhe bem pro Kyron, está vendo que o corpo dele parece estar acordado, seus músculos contraídos, olhos semi abertos, presença de movimento nos membros.
— Sim, consigo ver, realmente parece que ele está acordado mas ao mesmo tempo parece que ele não está aqui.
— Ótima análise, porque realmente ele não está aqui. Você já deve ter ouvido que todo corpo é composto por três elementos, sendo eles: Corpo, alma e espírito, certo?
— Sim e só estamos vivos por causa dele.
— Correto Zac, só que nessa tricotomia as pessoas tentam buscar superioridade, ver qual é o maior, o mais importante e por aí vai. Só que diferente de nós, essa ligação entre eles não é corrupta. E você, Zac, o que acha da relação entre eles?
— Eu não acho justo fazer comparações, para mim as três são cruciais para mim, se estou de pé é por causa do corpo, se respiro é por causa do espírito, se me alegro é por causa da alma.
— Uau, muito bem rapaz. Não há hierarquia entre elas, porém elas dialogam entre si. Por exemplo, creio que pelo o que eu ouvi, você já tenha visto um corpo “morto” né? Você viu que tinha um tempo em cima do corpo para ele poder voltar.
— Sim, na verdade eu não demorei para ver esse tempo em cima do corpo. Achei que ele tivesse morrido de verdade, como só tive contato com animais, achava que poderíamos morrer também.
— Hehe, eu também, descobri da pior forma. Mas você já pensou no porquê disso tudo existir? Não tem morte, mas quando alguém inicia o que chamamos de Cooldown, o corpo fica, a alma descansa e o espírito vaga como um vento. Eu já passei por esse processo e literalmente você fica como um fantasma, vagando até o tempo zerar.
— Ahh então nesse momento o espírito saí, deixando o corpo e a alma, que legal, deve ser uma sensação horrível.
— Não é horrível, mas na minha época de monge, usávamos uma técnica para obter controle pleno sobre o espírito. Éramos forçados a ficar horas e horas no Cooldown, então você sabe bem a dor que passamos, já que para entrar nele você precisaria morrer e por mais que a morte não fosse real a dor permanecia.
— Que pesado, mas porquê ter esse domínio pleno sobre o espírito? Para que tanto sofrimento, em um lugar como esse?
— Ehhh rapaz me questionei isso a minha vida toda e até agora nada. Mas a ideia era o seguinte, como o cooldown aumenta cada vez que você morria, na primeira vez ele começava com 5 minutos e depois de fazer algumas vezes ele chegava até 2 horas de duração, nisso aprendemos a ter uma sensibilidade, além de que quando está em cooldown você não pode se distanciar do seu corpo, porém com treino a área vai aumentando aos poucos.
— Tem um pouco de vantagem, mas não é muito doloroso isso não?
— Sim, é sim, mas para quem não via nada, para mim estar em cooldown não mudava muita coisa. Mas voltando, tem um outro estágio onde tanto a alma quanto espírito desligam e a pessoa age com um animal, já tivemos alguns casos desses, mas é uma linha que as pessoas de Uranos não usam, pois libera uma grande quantidade de sede por sangue.
Zac começa a pensar que talvez tenha ocorrido algo parecido com ele, no momento que estava na arena, onde foi dominado por um sentimento incontrolável, seu coração começa a acelerar o batimento só de pensar na possibilidade.
— Ei jovem, pode ficar tranquilo, ouço o aumento do seu batimento cardíaco. Porque quando é assim fica uma marca, e você claramente não tem, aliás, se passou por algo parecido foi quando sua alma gritou mais forte que tudo e assumiu controle. Que é o terceiro estágio.
— Ufa, fico até mais aliviado, pois sempre ouvi que era um bicho, então me doeu um pouco imaginar que eles estavam certos. — Zac solta um suspiro de alívio enquanto sua respiração vai voltando ao normal.
— Não ligue para o que os outros falam, apenas perdoe-lhes, pois não sabem o que estão falando. Mas nesse terceiro estágio, a alma ganha destaque, podendo ser intra (quando interno) ou extra (quando externo).
— É muita informação Thome, tô um pouco confuso, porque você falou que não tinha disparidade entre alma, corpo e espírito, mas você tá me contando que o único que tem duas formas é a alma, então claramente ela é maior.
— Eu só queria chegar e falar do porque do Kyron estar nesse estado, e olha onde estamos, eu não sirvo como professor hehe. Mas vamos lá, parece que a alma é superior, mas enquanto no cooldown a alma e o corpo ficam, o espírito voa, já no momento que o corpo domina o espaço, alma e espírito desligam. Então para equilibrar a alma consegue dialogar tanto com o corpo quanto com o espírito.
— Talvez eu tenha entendido, por exemplo, no momento que minha alma gritou e controlou o meu corpo, isso não seria o mesmo que o corpo fez assumindo o controle e transformando em animal?
— Não, vou tentar te explicar com um exemplo, certo? Qual a alma domina, o corpo vai exceder os seus limites, mas não fará nada que não seja da vontade dele. Um exemplo é uma mãe que para salvar o seu filho faz de tudo, arruma força da onde não tem, pois a súplica da sua alma é proteger o bebê. Mas quando é o corpo, o indivíduo não fará conforme a sua vontade, ele vai seguir apenas instinto e por isso não vemos com bons olhos aqui em Uranos.
— Entendi, então é o exemplo EXTRA, certo? E provavelmente o que o Kyron esta deve ser o INTRA?
— Exatamente, você pega as coisas rapidamente. — Thome começa a sentir que a temperatura está aumentando gradativamente e o ar está ficando mais pesado — Kyron está na parte intra que chamamos de Universo astral, é o lugar onde ele dialoga com o elemento da sua alma.
— Ahhh então ele tá nesse Universo astral todo esse tempo?
— Sim, ele gosta de ficar lá, porque segundo ele, o tempo lá passa devagar e ele consegue se organizar. Aliás, sinto que você já teve contato com alguns universos astrais, consigo sentir o do Kyron, sinto mais um que provavelmente é o seu, mas tem alguns universos que não consigo decifrar.
— Como assim? Eu só consigo me lembrar do Kyron, quais são esses outros? Como faço para entrar no meu.
— Vamos parar com o papo, estamos prestes a passar da fronteira e adentrar no deserto, acho que seria uma boa, pararmos um pouco, pois já estamos algumas horas viajando e está próximo de anoitecer — Dispara Kyron
— A bela adormecida acordou, enquanto você dormia estava ensinando o que você não ensinou para ele, sou um professor melhor que você — Thome termina a fala dando uma gargalhada bem alta.
— Que bom que os dois estão se dando bem, mas te contratamos como guia e não como professor, o seu papel era avisar e nem isso fez.
Zac percebe a briga de gente grande que está acontecendo e não tem intenção alguma de intervir, ele só fica pensando no que Thome falou para ele.
— Acordou estressado hein, esse teu quarto branco não te faz bem, tu sai daí pior. Mas acho melhor pararmos aqui, antes de chegarmos nas areias. Zac, pode pedir para eles pararem aqui.
Sem falar nenhuma palavra, Jack e Holly vão diminuindo a velocidade até parar. Entretanto, enquanto Holly para suavemente, Jack vai parando dando vários saltos, provocando desconforto em quem ele estava carregando.
Eles param na beira da cidade tecnológica, a mais ou menos 300 metros para frente é possível ver areia, tudo o que se pode ver é areia, um vasto deserto.
Kyron sai rapidamente de cima de Jack, arruma sua roupa que estava toda bagunçada e faz alguns movimentos, pois passou a viagem forçando os seus músculos e isso o causou bastante câimbra.
— Chegamos, acho que por hoje seria bom a gente passar a noite por aqui. O deserto é muito perigoso na parte da noite e está começando a anoitecer. — Informa Thome
— Também acho e creio que nossa caminhada no deserto será longa e não poderemos usar mais os lobos. — Enquanto fala, Kyron solta alguns fisgados, como se estivesse sentindo dor.