Sirius - Capítulo 29
Capítulo 29: Memorias (2)
Step* Step* Step*
Sons de passos ecoavam nos corredores de uma biblioteca vazia.
— Os jovens de hoje em dia estão completamente perdidos! — uma voz velha reclamava para seu próprio eco que ressoava pelo ar. — Como o julgamento sagrado se tornou tão banal a ponto de seres tão novos fazerem o que quiserem com ele… realmente não entendo!
O velho levou uma das mãos aos cabelos grisalhos.
— Mais do que isso… por que a senhorita Brigida permitiria tais infrações…? Realmente espero que o garoto consiga se virar, seria terrível se sua história acabasse dessa forma.
O homem parou por um segundo e suspirou levemente.
— Bem… de qualquer forma, não ten… hm?
Seu olhar desviou para uma das prateleiras.
— O que temos aqui?
E sua mão se estendeu para pegar um dos livros.
— Não me lembro de você… isso é… interessante. — O velho franziu as rugas de sua testa. — Eu, Hakim, deveria me recordar de todos os livros que estão nessa biblioteca, com exceção dos que serão insignificantes para a história deste mundo… mas não me lembro de você.
Era um livro curto de não mais de cem páginas. Virando a capa do livro, o homem leu em voz alta o título que a ilustrava.
— “Contos do Sangue Secreto”… pode ser uma leitura interessante para entreter meus pensamentos…
E assim, Hakim abriu sua primeira página.
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Contos do Sangue Secreto
Há um milionésimo de segundos atrás no tempo do universo, duas garotas se conheceram em meio a pobreza e solidão. Elas viviam em uma vila ao sul de Anpýrgio, uma das maiores cidades de Erebus. Rapidamente, essas duas meninas, ainda jovens, se tornaram amigas inseparáveis, uma delas era grande e dócil, como uma pelúcia gigante. A outra era pequena e forte como um guaxinim estressado. Ambas as garotas sobreviveram entre pequenos furtos e fome.
Não existe um trabalho para crianças tão pequenas que não custe a sanidade e dignidade de ambas. As duas irmãs de alma tinham consciência disso, e juraram nunca se entregarem ao abismo do desespero, elas sabiam que uma vez nesse lugar, não existe volta. Tudo que faziam eram pequenos furtos para tentar suprir sua fome.
O que é fome?
A fome tem centenas de formas, gostos, cores e memórias. A fome pode ser seca, molhada, amarela como a areia, preta ou verde como a praga, pode ter gosto de terra, de mofo ou pode não ter gosto algum. Pode ser um fechar de olhos, um regurgitar de garganta, um grito de agonia e, às vezes… um fio de falsa esperança. Porém, em todas as suas formas, um fator sempre permanece igual. A fome é, entre tudo, dolorosa.
Para essas duas garotas, portanto, a fome era quente, tinha gosto de ferro e cor de rubi… não que elas já tivessem visto tal joia, mas assim ouviram e repetiram. “Sangue tem cor de Rubi”. Pois então, “A fome se parece com sangue. É quente, igual sangue, tem gosto de sangue, cor de sangue e sempre que ela está lá, é acompanhada dele.”.
E foi assim que viveram, sempre inseparáveis, sempre com fome, sempre machucadas, sempre lutando, sempre… sobrevivendo.
A irmã mais nova era mais ágil, mais esperta e mais capaz. Apesar de ser menor e mais fraca, ela sempre cuidava de sua amiga grande e gentil. A grande pelúcia humana era um aconchego, trazia paz e esperança à pequena menina. Esse tipo de coisa não era de se jogar fora quando não se tem nada. Ela sempre a protegeria para que essa alma doce nunca desaparecesse.
Quando sua mente e estômago estão vazios, sua cabeça começa a implorar por uma distração. Em meio a todas as crianças e adolescentes que moravam nas ruas, a grande e dócil menina era a mais fácil de ser um alvo dessas distrações. Todas às vezes que sua irmã saia de perto dela, o tormento surgia novamente, um tormento que nunca era revidado. A pequena sempre aparecia furiosa, machucada, ou de espancar os garotos que atormentavam o espírito gentil de sua amiga, ou de furtar algum alimento para dividir repartir assim que voltasse. De uma forma ou de outra, as duas sentiam o gosto de sangue, de uma forma ou de outra as duas sofriam pela fome.
Um dia, no entanto, os órfãos da vila se cansaram de perder para a pequena menina. Quando novamente a irmã mais nova deixou a gigante sozinha, eles a arrastaram para longe; como alguém disse: “Uma brincadeira violenta um dia se torna violência pura”
Quando voltou, tudo que encontrara eram sinais do que havia acontecido, e, seguindo esses sinais, ela correu. Após algum tempo, ela finalmente encontrou a sua irmã, um pouco machucada, mas bem.
“Corra… por favor… corra.” Balbuciou a irmã mais velha.
BAM*
Mas antes que pudesse reagir, a pequena menina foi acertada na cabeça com um pedaço de madeira e caiu no chão. Os órfãos arruaceiros riram da menina no chão pouco antes de se juntarem e começarem a descontar suas frustrações diárias em seu corpo mal-nutrido.
“Parem… por favor, parem!” Gritava a irmã mais velha, e ainda assim, tudo que recebia de volta eram risadas.
“O que vai fazer, sua retardada? Tapar os olhos e chorar novamente?” E voltavam a bater.
Foi aí que a mente da grande menina apagou.
“AH ME LARGA”
“SAI DE PERTO DE MIM”
“SEU MONSTRO”
Gritos de terror escapavam dos becos. O sangue, que uma vez significou fome, agora molhava a terra árida. Os corpos que tinham seus membros jogados pelo ar, e suas cabeças dilaceradas por mãos gigantes a adubavam, e o desespero daqueles que berravam socorro, a semeavam.
Tudo isso, assistido pelo pequeno olho quase fechado que repousava no chão, uma janela para uma mente dominada por puro medo e terror do que acabara de ver.
“Um gigante.” Pensava, “Ela vai me matar, tenho que correr” Pensava, “Meu corpo não se move, alguém, por favor!” E quando o silêncio tomou conta da viela, o monstro se aproximou da garota no chão, e com suas grandes mãos, a gigante a levantou.
Sem conseguir se mover ou gritar, a menina apenas terminou o que o inchaço em seu olho já estava tentando, e o fechou. À espera da morte, gotas de um líquido caíram sobre sua face e escorreram para seus lábios.
“Sangue” ela pensou, era quente…, mas não tinha gosto de ferro, seu olho abriu novamente, e o que ela viu não tinha cor de rubi, não tinha cor alguma.
SOB* SOB* SOB*
O monstro que pouco a pouco diminuía de tamanho, a segurava como um bebê e chorava em seu rosto. A visão da menina atordoou seus pensamentos, e por um segundo ela teve nojo de si mesma, pela primeira vez, sentiu desprezo pelos seus pensamentos e ações.
“Sou uma desgraça como irmã”
Ela tinha falhado. Falhado por fazer com que uma alma tão gentil e boa sujasse tanto as próprias mãos. Falhado por ter sentido medo de alguém que sempre a amou. Falhado por ter pensado que essa mesma pessoa faria algum mal a ela. E principalmente, falhado em ter aceitado o que pensou que seria a própria morte.
“Quando voltasse à consciência, como Irmin se sentiria quando descobrisse o que fez? Não posso permitir isso.”
Voltando ao seu tamanho normal, a grande menina caiu no chão desacordada, como se tivesse exaurido cada gota de sua energia. A pequena surpreendentemente foi a primeira a se levantar, com uma vontade sobre-humana, usou cada partícula de sua força para apagar os vestígios, arrancou trapos que não estavam ensopados dos corpos, e os utilizou para limpar o sangue do corpo de sua irmã. Quando nem sua força de vontade foi o suficiente para mantê-la de pé, deitou-se no chão em meio ao beco ao lado dela e finalmente apagou.
“Selene! Selene!”
Uma voz acordou a menina desacordada.
“Ir…min?”
“O que aconteceu aqui? E você…?”
“Você… está bem?”
Irmin começou a chorar desesperadamente.
“Como assim!? É claro que estou bem! Não me lembro exatamente do que aconteceu, mas tenho certeza de que você me protegeu! Estou perfeitamente bem!”
O lábio de Selene tremeu. Com todo o esforço de seu ser, ela havia conseguido fazer com que sua irmã continuasse sã, ela queria desesperadamente gritar por isso.
“Tem gente vindo pra cá. Vou te tirar daqui, certo?”
E assim, ambas deixaram a vila, para nunca mais voltarem.
Fim do Capítulo 1
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Hakim fechou o livro assim que terminou de ler as primeiras páginas.
— Estranho, finalmente me lembrei do conteúdo inteiro. Este, definitivamente, não deveria estar aqui…
Virando e desvirando verso e frente da obra, o velho tentava pensar em qual motivo teria a biblioteca para mudar a prateleira em que o livro era guardado.
— Bem, de qualquer forma, tudo que tenho que fazer é aguardar para ver o resultado, a continuação está sendo escrita agora mesmo… — Hakim sorriu — que outras surpresas essa obra me trará…?
Nas pupilas profundas do Bibliotecário, dois pares de olhos eram refletidos, olhares incrédulos que encaravam uma cena desacreditados.
— LI! — gritaram Selene e Irmin.