Sina de Guerra! Ou Como uma Garota Projetava Fantasias - Capítulo 9
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- Capítulo 9 - Uma Noite Apertada (II)
27 de março do Ano Santo de 1847 | 02:32 | Bar Solácio
Ñanary levantava seus pequenos braços tentando acalmar os ânimos das garotas, incitadas pelo monólogo raivoso de Dolores, que não conseguia evitar se sentir em paz do lado de Rumina.
— Eu já disse para parar Dolores! No final ele não chegou a fazer nada do que você acha comigo.
— Graças a mim! Mas e se eu não…— Ela foi interrompida antes de terminar a frase.
— Você sabe muito bem quão normal é que eles me tratem assim! — A garotinha de pele morena vociferou. — Eu já me acostumei desde que cheguei aqui…
Todas ficaram quietas ao ouvi-la dizer aquelas palavras. O clima que já era pesado, começou a ficar mais tenso a partir do que ela começaria a dizer.
— Provavelmente só Dolores sabe disso que vou contar para vocês agora… mas antes de entrar para a APAT eu vivia na fronteira oriental do vice-reino, na vila do meu clã…
Ñanary começou a rememorar os momentos que levaram ela a decidir ir para a capital da colônia.
Dizer que era uma “vila” seria enganador, para dizer o mínimo, hehe. Durante nossa infância, nosso Mburuvichá[5] não se cansava de contar as histórias de “como eram as coisas antes” e como tudo mudou quando os visigodos chegaram. Nosso chefe sempre descrevia como eles trouxeram as “máquinas” e como o “Deus” deles fez que os nossos “fugissem”. Eu nunca entendi muito bem a segunda parte dessas histórias, mas com o passar dos anos, ele nos contava, nossa vila passou de ser um paraíso natural a se transformar em uma selva de metal, máquinas, fumaça e crucifixos. Era para isso que os visigodos teriam vindo, afinal. Eles começaram a cortar as árvores e extrair carvão das pedras, junto a outros minérios naturais para expandir e manter suas máquinas funcionando em todo o Império. Naturalmente, o chefe da nossa vila perdeu a autoridade frente aos militares visigodos, mas pelo menos os jesuítas que vieram junto com eles na missão de espalhar o arianismo eram mais tolerantes com nossos costumes e opiniões. Com a mediação dos jesuítas e o tempo chegamos a um acordo com os visigodos, mas o balanço de forças e demandas sempre esteve pendulando por um fio.
— Cê deve ir para a capital Ñanary! — dizia com seriedade o chefe de meia idade, encarando a garota — Eles vão lhe aceitar melhor, já que tens sangue castelhano nas veias.
— Avô… tem certeza que deveria estar me dizendo isso agora?…
— Convenções! Haha! Se eu hei de saber delas, pequena. Por mais que os seguidores fanáticos do meu irmão sejam contra a conciliação… eu ainda acredito na paz e no diálogo, a guerra só traz morte e dor e nós sabemos muito bem disso. Existem coisas que valem a pena morrer, mas as razões do meu irmão… definitivamente não valem. Trocar a segurança e possivelmente a vida de centenas de milhares de pessoas, por uma chance minúscula de poder absoluto?… Não me parece sensato. As ideias dele só nos levarão à ruína. — O homem de meia idade se sentava numa cadeira, cansado. — Por isso, eu acredito que é importante para manter a paz e o diálogo, que cê seja a peça fundamental da construção dessa harmonia com o império visigodo, como parte da linhagem do nosso clã. Cê sabe, não é?
— Sim, vô. E-eu, só… estava pensando em… como vão ficar as coisas aqui em casa, se eu conseguir entrar… Eu sou a única filha responsável pelos afazeres! E tem os rituais, e a relação com os caciques e… — Ñanary foi interrompida.
— Deixa isso comigo. Com o único que tens de se preocupar é em entrar nos ranques visigodos. Nós vamos mostrar para todos que é possível manter a paz nas Missões Orientais.
Mesmo que eu tivesse conseguido entrar na APAT com muito esforço e suor, nada disso importava se eu não conseguisse me formar como oficial de baixo ranque. Eu precisava fazer isso para reforçar a posição da nossa família na chefia da vila frente aos visigodos e à do irmão do meu avô, da facção contrária à paz, que pregava a rebelião armada contra os conquistadores visigodos. Se o plano do meu avô desse certo não haveria que derramar sangue, mas não foi fácil desde que cheguei na capital.
Escravos ainda existem nas colônias e a maioria deles são negros ou indígenas. Apesar disso, filhos de escravos nascem livres. Eu, mestiça de uma mãe indígena e um pai visigodo, nasci livre, mas existe um grupo extremista, a “Facção Faustia”[6], que odeia a ideia de ver pessoas como eu livres. Eles odeiam ver negros, indígenas e mestiços livres.
— Não deveria me surpreender que estariam na APAT também, de todos os lugares no mundo! — Era óbvio para qualquer um, o exército visigodo era o lugar perfeito para que surgisse um ninho de extremistas e reacionários. — De volta à mesa, Ñanary dava um gole na bebida. — Hehe… eu venho de uma família de caciques que mantém uma relação de longa data com os visigodos através de casamentos políticos, eles realmente devem chorar de ódio sabendo que ainda tô por aqui. — A garotinha, agora, lançava um olhar sério para sua amiga. — Por isso, Dolores, você não deve colocar a culpa nela. A culpa é deles… desses malditos faustistas…
— Agora que você disse, você recém entrou na academia não é Nanãry? Quem diria que esses brutos sabiam de tudo isso e foram atrás de você tão logo determinassem os pelotões…
Florência parecia querer simpatizar mais com ela, mas não sabia como.
— A organização deles deve ter contatos dentro do… — Antes de terminar a frase, Dolores foi interrompida pelo súbito levantar de Rumina, que já parecia pálida, ao fazer uma continência romana. E não por nada, já que uma assustadora presença se assomava à mesa.
— Uma história deveras inspiradora cadete Sierra! Estive quase para chorar. — Victorica aparecia sorridente, como sempre, mas dessa vez com seu cantil transbordando. — Lamentavelmente, não temos tempo para contar histórias, garotas. Nosso dever agora é o de — dizia ao soluçar — fazer a história! — É isso? Acabou mesmo? Rumina percebeu o carro preto pela janela do bar. — Vamos. Levantem imediatamente seus traseiros bêbados daqui! O carro vos espera — ditou a visigoda, tomando rumo em direção para fora.
— Sim, senhora! — disseram quase todas, ao levantarem-se da mesa. Rumina, ainda de pé espantada, hesitou por um momento enquanto via as suas colegas indo para fora, sendo ela a última a tomar rumo, timidamente.
27 de março do Ano Santo de 1847 | 04:32 | [Lugar Redatado]
— Você tem ideia de onde estamos indo? Estivemos andando pela rodovia por horas e agora estamos no meio da estrada de terra faz um tempo… — murmurava Nañary.
— E como merda eu vou saber, sua idiota? Pergunta pra inútil que tá do seu lado. Tsc! — Dolores se remexia de um lado para o outro ao reclamar para Florência — Não tem como se mover para lá, não? Já nem sinto mais minhas pernas!
O carro começou a parar lentamente, e dentre a escuridão, as luzes dos faróis revelaram uma estrutura parecida com um pequeno forte. Da alta porta da estrutura, rapidamente surgiu uma garota de cabelos longos parecendo acenar para elas, em seguida o carro voltou a se locomover, agora em direção ao que mostrava ser o portão aberto de um extenso e fracamente iluminado hangar.
O vento soprava forte, fazendo o orvalho entrar para dentro da nova estrutura, mas não demorou muito para as engrenagens voltassem a fechá-lo novamente. Era feitio da garota de antes, que agora vinha correndo de dentro do hangar, quase caindo no chão de desastrada.
Assim que os portões se fecharam, Victorica saiu do carro indicando para que as outras fizessem o mesmo.
— B-bem-vinda capitã! — dizia ofegante a cadete, ao fazer uma saudação romana. — O-o-o quê a traz aqui tão tarde?!
Victorica passou direto por ela e se dirigiu à porta que conectava o forte com o hangar.
— Galore, faça algo útil alguma vez na vida e prepare os barris para agora.
A garota de longos cabelos naval-escuros, e radiantes olhos amendoados, correu atrás com preocupação. — M-mas, capitã Victorica! Os barris não estão prontos ainda! — Tentando impedir a capitã de seguir rumo, Galore parou na sua frente. Foi uma tentativa inútil, já que a capitã desviou, ignorando suas preces, e continuou caminhando em direção à porta. Notando isso, a cadete retrocedeu junto, seguindo seus rápidos passos. — Capitã, eu disse que não estariam prontos a tempo… o esquadrão ainda não recebeu as partes da caldeira para os barris do novo pelotão, a senhorita mesma disse que…
— Exato. — A capitã interrompeu bruscamente. — Por isto, justamente, que no momento, utilizaremos emprestados os barris do ducentésimo décimo primeiro (211º) terço [7]. — Perversamente, ela deu uma piscadela.
— O quê?!
— Graças ao nosso mais querido Q.G., estaremos a receber as partes necessárias daqui a uma semana marcada e eu preciso destas garotas treinadas o antes possível.
Galore parou no meio do caminho e lançou um olhar para as quatro que recém saíram do carro.
— Elas?
Notas de Rodapé
[5] Chefe político da vila, tipo o “cacique”.
[6] Uma pequena referência a um decimonónico autor e “prócere” argentino. Ainda que ele seja considerado como um “grande argentino”, se olhar mais de perto seus ideais, eles são (não) muito interessantes. Consegue pegar a referência? Se não conseguir, aqui vai uma dica: Sarmiento. Não se assuste com algumas perspectivas sobre o que é civilização para ele, eram até bem populares na época…
[7] Historicamente chamados de “tercios” na Espanha, os terços eram um tipo de unidade militar criada nos anos 1500 que eram formados por arcabuzeiros, cavalaria e dragões (cavalaria mas com armadura e armas pesadas, basicamente). Hoje em dia, e aqui na light-novel, o terço se refere a unidades de escalão do tipo regimento.