Sina de Guerra! Ou Como uma Garota Projetava Fantasias - Capítulo 7
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- Capítulo 7 - Ruminação
27 de março do Ano Santo de 1847 | 00:31 | Alguma rua nas proximidades do Bar Solácio
Até agora, nada tinha acontecido como Rumina esperava. Quer dizer, era uma das formas de colocar a situação em palavras…
— O quê?! Tá querendo dizer que a gente vai ser transferida pra outra companhia, quero dizer, que agora é um esquadrão[3]?
— É-É o que parece implicar… a mensagem que a capitã me entregou na biblioteca…
— Não esperava menos de você, Zugravescu.
Eu realmente ferrei com tudo. Tudo, mesmo… Rumina não conseguia evitar pensar no que teria motivado a transferência da sua esquadra para outra unidade, ainda mais uma da qual ninguém sabia a existência. Não só isso, ela tinha sido negligente em um momento crítico com sua colega e também tinha provocado a atenção desnecessária de uma visigoda, sem contar que sua amiga claramente estava se afastando dela por um motivo que, lá dentro no seu coração, ela sabia muito bem qual era a razão.
Pelo menos, era o que carcomia seus pensamentos no seu apartamento horas atrás, no dia anterior, antes da meia noite.
26 de março do Ano Santo de 1847 | 20:37 | Prédio residencial de um bairro industrial da cidade da Santíssima Trindade
— Eu tô te dizendo pra relaxar… Olha, se ela quisesse te matar, provavelmente já teria te matado. Você sabe o que aquele Galgalim, ou melhor, aquele olho voador com anéis pipocados de olhos, faz, né? Ao formar um pacto com um deles o concessor do pacto adquire a capacidade de… — Um condor miniatura saia da penumbra abrindo suas asas ao simular um susto. — Evaporar qualquer matéria do plano existencial!
— Porque tu fica tão tranquilo ao falar essas coisas pra mim? Não deveria estar mais preocupado comigo? Eu tô aterrorizada! — Na verdade nem sei mais o que eu tô sentindo… — Aconteceram tantas coisas hoje…
Sentada na cama, seu corpo perdia rigidez e desabava pelo mal-estar que sentia. Sob a luz do luar, com os cabelos esparramados nos cobertores, a garota parecia querer irromper em lágrimas.
— Rumina. — O condor largou de jocosidade e, de cima do marco da janela, se dirigiu com a seriedade e o tom amargo de um tutor preocupado. — Eu sei que pode ter sido difícil todos esses anos… mas, você realmente pretende desistir agora, depois de todo esse tempo que a resistência se deu ao trabalho de te proteger da Inquisição? Essa atitude derrotista não ajuda em nada…
— Inquisição… ha, ha ha… Aquela visigoda já deve ter mandado um telegrama para eles, é só questão de dias para que encontrem esse prédio, matem minha família, me coloquem num calabouço e façam o que quiserem comigo pra tentar tirar alguma informação, e depois me matem também. — Após uma pausa dramática, ela continuou com uma voz murcha e desesperançosa. — Acabou Kuntur. Como eu deveria saber que aquela guria tinha um pacto com um anjo? Ela só parecia mais uma nobre esnobe que casualmente decidiu entrar no exército pra, sei lá… se sentir superior, ou algo assim. Eu vi aquele anjo com meus próprios olhos, e ele me viu também. — Sua mente disparava a lembrança do sentimento bizarro de presenciar dezenas de olhos se retorcendo em sua direção.
O condor cruzou as asas em contra da ideia e franziu a testa, querendo começar a inspirar a sombra da dúvida na garota.
— Ele pode ter te visto, mas, você tem certeza que ele soube que você viu ele? — Kuntur levantou voo e sentou no braço da garota, que ainda estava deitada, continuando seu argumento. — Se o Galgalim tivesse notado que você estava olhando para ele e não para outra coisa, não acha que ele teria avisado a visigoda em vez de simplesmente desaparecer? Além do mais, você não me disse que ela estava mexendo com o código de um livro? Nessa situação, você realmente acha que ela estaria fazendo isso se estivesse realmente atrás de você e não de outra coisa? Não faz sentido. É óbvio que ela já tinha armado a transferência da sua esquadra à dias, talvez semanas! É muito provável que tudo o que aconteceu foi uma coincidência infeliz.
O silêncio se instalou no quarto, interrompido ocasionalmente pelo barulho e luzes de carros que passavam na rua.
— Então, por que minha esquadra, por que eu?! Eu não tenho nada de especial. — É que nem Dolores disse. — Eu sou uma inútil… O único de “especial” que tenho é poder interagir com… pássaros, — dizia ela ao encarar Kuntur — espíritos inferiores e outros numes… mas isso é mais uma sina do que uma dádiva. Pensa um pouco, e daí que essas coisas burocráticas demoram? Nada me garante que ela poderia ter descoberto muito antes e estaria agora simplesmente me levando para uma armadilha para me relatar à Inquisição “por crime de heresia”. Que outro motivo ela teria? Ela é uma condessa ariana visigoda! Eles sabem de tudo e de todos.
— Primeiramente, respeito. Eu não sou um “pássaro”, eu sou o deus das hierarquias. Em segundo lugar, você tem que parar de ser idiota. Sua lógica não faz sentido algum, se eles “soubessem de tudo” você não estaria aqui e eu também não estaria aqui. Isso porque nós não deixamos, e continuaremos a não deixar, que você seja levada pela Inquisição, pelo Papa ou seja lá quem for… Muito menos por uma condessa mixuruca de um território colonial. — O condor apontou ao rosto dela com a extremidade da asa, de forma acusatória. — Você tem que seguir em frente e encarar os problemas alguma vez na vida! Isso é uma desculpa esfarrapada que você mesma está fazendo para fugir da sua missão a favor da causa, e você sabe muito bem como tudo isso acaba sem nossa proteção.
Rumina torceu o rosto em uma profunda negação.
— Pfft! É fácil dizer isso quando se tem milênios de anos em liberdade sem estar preso ao mundo material, fazendo as coisas aqui embaixo! — Ou em cima, realmente não havia forma de saber. — O que tu espera que eu faça, hã? Simplesmente. O que tu espera que eu faça?! Que me converta em uma revolucionária modelo que nem os outros piás, do nada? O que eu tô dizendo não é uma desculpa. Fazer amizades com pessoas. Planejar. Liderar. Não é pra mim! Eu não consigo, ponto! Eu nunca vou conseguir fazer o que esperam de mim. Além do mais, quem realmente sabe é tu! Tu sabe que se eles vierem e descobrirem que não só faço parte da resistência como também prático permutação e me relaciono com numes e espíritos… tudo acaba pra mim. Pelo menos, se eu escapar… eu ainda tenho uma chance, fora desse continente amaldiçoado.
Colocar razão na cabeça de Rumina era algo complicado, Kuntur perdeu completamente a paciência com a negatividade, falta de noção e senso de obrigação da garota. Tinha muito mais no prato a considerar. Mas, “tudo bem”, ele sabia como essas conversas acabavam. No final, ele tinha consciência de que o melhor que podia fazer era deixar ela se acalmar para resolver as coisas depois, com a cabeça fria. Ela sairia logo de suas crises juvenis de negação da realidade e voltaria para ele com força de vontade e convicções renovadas.
O condor tomou vôo novamente e se encostou na guarnição da janela, pronto para ir embora.
— Garotinha, você precisa se recompor. Minha conversa contigo acaba aqui, se precisar de mim, você sabe como me convocar. — Kuntur tentava evitar pensar nas razões de estar cuidando da garota até aquele dia, mas às vezes suas tentativas eram em vão. Se não fosse aquele velho… provavelmente nunca teria aceitado fazer um pacto com essa menina. Com os anos, a compaixão pegou o melhor de mim…
Com um sorriso lenitivo, ele levantou voo e desapareceu nas nuvens escuras da noite.
E assim, finalmente, teria sido o breve encontro de Rumina com Kuntur no seu apartamento.
Ela teria passado para avisar à sua mãe que sairia com as colegas de esquadra ao famoso bar das classes médias da sofisticada capital da colônia visigoda, mas para sua surpresa, sua mãe não teria visto nenhum problema nisso. De fato, ela esperava poder criar uma situação onde poderia inventar uma desculpa para não ir, caso sua mãe desse uma brecha. Mas no fim, tudo foi água abaixo. Sua mãe ficaria extremamente feliz ao saber que sua filha “que não saia de casa nem para comprar novelas” finalmente teria conseguido fazer novas amigas. Ou mais bem, o que a mãe achava que eram amigas, para além daquela que vivia no mesmo prédio que viviam há três anos: Lília.
Nota de Rodapé
[3] Uma companhia é equivalente a um esquadrão, não procure a diferença entre os dois se não quiser indicação para spoilers. Agora, se você já sabe, você sabe aonde isso tá indo.