Sina de Guerra! Ou Como uma Garota Projetava Fantasias - Capítulo 4
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- Capítulo 4 - Labirinto de Livros
Naquelas cabecinhas adolescentes de duas amigas de escola que só pensavam no próximo drama colegial, nunca lhes teria passado a ideia de que, aos 19 anos, estariam servindo ao império. Mas ali estavam, e se estavam, pelo menos estavam juntas. Rumina confiava nisso. Se elas estivessem juntas, tudo ficaria bem.
Não acho que eu deveria pensar muito nisso… mas é difícil, ainda mais vendo ela se afastar dessa maneira.
Faltava um par de minutos para a próxima aula, e ela tinha que devolver alguns livros. Afortunadamente, não estava muito longe da biblioteca.
Se tu pensar por um lado, até faz sentido. Os turnos, as aulas e essas coisas… mas, ainda assim… ela poderia separar um tempo para mim.
Poderia…
— Ei, Lía!
Entre uns cadetes masculinos, era sua amiga, encostada na coluna do saguão.
— Ei… — Lília virava para trás. — Como estão indo as coisas?
— Bem… eu acho! Quer dizer, se é que posso definir bem como: “conseguindo lidar de alguma maneira”.
— Hum…
— A ruivinha é a mais legal, já as outras duas… Sabe… — Rumina foi interrompida.
— Esses livros, vai devolver? — Lília olhava para o que sua amiga carregava nos braços. — Pode levar os meus para a biblioteca também?
“O que era isso que havia acabado de acontecer?”, um martelo pregou de vez o pensamento na sua cabeça.
Pela primeira vez, ainda que sem ter pensado diretamente naquilo, por dentro, os sentimentos de Rumina começaram a se aglutinar, tomando uma forma no coração. Era como um soco no peito. Um pequeno sufoco que indicava que algo, definitivamente, não estava bem.
— Sim, claro! — Foram as únicas palavras que conseguiram sair de sua boca.
Quando foi que Lília começou a tratá-la dessa forma? Será que ela tinha feito algo errado e, em algum momento, não resolveu conversar sobre? Não podia ser, Rumina se lembrava, as duas sempre foram amigas e sempre se contariam tudo para todo o sempre. Lília lhe tinha prometido isso. “Certo?” Seu coração hesitava.
— Certo. Obrigada. — respondeu Lília, de forma seca.
A garota entregou dois livros pequenos, seguidos de um último, que era enorme: “Volume 1, Sobre a Guerra. Von Dawnswitz”, a capa mostrava.
Von Dawnswitz, é? Devem estar fazendo ela se esforçar bastante… só pode ser isso.
Lília está cansada, talvez, ela só precise de um tempo para si mesma. Qual é o problema? Seria muito arrogante da minha parte pensar que só eu, de todas as pessoas, seria a única com verdadeiros problemas. Verdade, verdade. Rumina, sua idiota!
— Então… — Rumina perguntou, apesar de Lília já ter voltado a conversar com os rapazes. — Nos vemos mais tarde?
Fazendo uma expressão de lástima, ela pareceu negar, mas em seguida gesticulou um balanço de incerteza com a mão.
Ela não conseguiu evitar o suspiro preenchendo seu peito, mas seguiu adiante, balançando o braço em adeus.
Ainda que seu coração apertasse, precisava entregar os livros antes que o sino tocasse, essa era uma questão que teria que resolver mais tarde.
Podia não parecer quando conversava com sua amiga, mas a verdade era que lidar com o serviço militar obrigatório estava sendo um desafio bastante complicado para ela. A razão não devinha de que o serviço fosse coercitivo, que o ambiente militar restrito demandasse submissão que ela não aguentasse ou a algo do gênero, não, ela não tinha problema algum em seguir regras bem definidas, com maiúsculas no início e pontos no final. De fato, ela sabia muito bem desse tipo de coisas, afinal, uma pessoa como ela deveria saber muito bem delas e tê-las em mente sempre. O que a incomodava eram as pessoas, em mais de um sentido.
A garota entrou pelas portas do que surgia como uma labiríntica e enorme biblioteca. No balcão de recepção, uma mulher magrela remexia uma montanha de papéis sem paciência.
De qualquer forma, melhor devolver isso antes que o tempo acabe. Rumina relanceava o relógio da parede ao empurrar timidamente os livros em direção à mulher.
— Você vai colocar esses no lugar onde estavam você mesma — asseverou a bibliotecária, sem olhar para ela, como se estivesse repreendendo um fantasma.
Hã?! Qual é o teu problema, sua… Se não quiser trabalhar, se demite!
— Não adianta me olhar assim, garotinha, se vira, estou sem tempo. Uma certa “alguém” decidiu que hoje era um bom dia para dormir em casa. Tsc!
O que se supõe que uma bibliotecária faz além de colocar os livros em seus respectivos lugares e retificar o estoque de acordo? Tsc, digo eu… Vadia.
— Então… pode me dar o código?
Eu mereço… “Garotinha”, quem essa velha caquética acha que ela é? A garota caminhava segurando um papel escrito balançando na mão.
Eram poucas as vezes em que algum palavrão escapava de seu pensamento, ou sua boca. Isso quando dizia mais de quatro palavras para alguém que não conhecia. Mesmo assim, quem achasse que a conhecesse não deveria se enganar, ela realmente era uma pessoa tóxica por dentro. Até ela mesmo não sabia muito bem por que, mas sabia que não lhe fazia bem.
Eu realmente deveria seguir sendo assim?
Explorando o labirinto de livros, Rumina começou a debater consigo mesma, algo assim como se fosse duas pessoas em uma. Era o monólogo interno que se repetia todos os dias sobre diferentes temas acontecendo, e agora, começava mais uma vez. Era sua marca registrada: remoer pensamentos.
Que tipo de mudança isso vai fazer agora de qualquer forma? O que importa é o que as pessoas veem, não o que você guarda por dentro. O que importa é o que elas acham que sabem sobre você.
Ainda assim, no final das contas, faz sentido se amargar tanto constantemente sobre coisas minúsculas assim?
Ah, lá vamos nós de novo…
Que outra solução existe? Levar as coisas na boa e ser perfeita até na mente? Não existe crime de pensamento… ainda… Não vejo razão para parar de ser assim. Como se já não fosse ruim, desde que eu cheguei aqui minha vida só piorou e nem foi por culpa minha. Eu considero isso como uma forma barata de distensão… não posso?! Já não basta que me colocaram aqui, no lugar mais perigoso que eu poderia estar?
Ah! Tenho que lembrar de dizer obrigado a aquele pássaro, por me fazer bisbilhotar tudo para a resistência.
Bem, de todas formas, é estúpido pensar que a vida de alguém melhoraria ao entrar num quartel, ops! Eu quis dizer, “academia militar”.
O corredor de livros se alongava a cada passo de Rumina, parecia não acabar mais.
Tsc, entrar aqui foi a única outra opção que nos deram… Depois de 1833 instauraram aquela lei, sem sentido algum, onde mulheres da colônia deveriam se alistar obrigatoriamente aos 18. Sem saber se iríamos ser selecionadas ou não, o que se supõe que a gente deveria ter feito além de se esforçar para estudar e entrar na academia militar? Se entregar ao quartel com todos aqueles caras? Não duvido que existem inúmeros bons rapazes no meio dos inúmeros infelizes que são enviados todos os anos para lá, mas as histórias que vem dos quartéis? Dão terror… Tenho pena das gurias que não conseguem passar nas provas.
Agora, quem em sua sã consciência acharia que ser obrigada a servir, ainda que em um lugar menos decadente, é algo melhor e louvável? Isso é simplesmente absurdo. Porque eu deveria me sentir bem ao servir um império que quer me ver morta?!
Eu não sou masoquista.
Realmente… Lília é a única que me entende. Pelo menos, em parte…
“Teoria de Guerra”. Jazia encaixada na prateleira uma placa de metal com a essas palavras inscritas. Rumina havia encontrado a seção correta.
Ela conferiu o papel e a lombada do enorme livro para ver se o código escrito batia com aqueles que descansavam separados pelo único vão da prateleira. Entretanto, ela logo notou algo fora de lugar. Ao espiar pelo vão, não intencionalmente, percebeu que outra pessoa estava justo na sua frente.
Era uma garota loira.
Qual era seu nome mesmo? Victórinha? Era algo assim… Bem, de qualquer forma, isso não me importa. Essa guria não é meu problema, e também não quero que seja. Ou, teria avaliado precipitadamente? Rumina parou seu braço na metade do caminho para cima, antes de alcançar a prateleira do livro.
Não pode ser.
O que ela tinha acabado de ver era… um anjo, mas não era um anjo qualquer. Um Galgalim…
Tá bom, essa guria é um problema.
Ao perfurar a realidade da qual era feito o livro que segurava, a garota na sua frente inscrevia com os dedos algum tipo de verso que brilhava em letras godas. Ela parecia estar fazendo algum tipo de código de bloqueio antes de colocar o livro de volta no seu lugar.
Como isso era possível? Rumina não sabia explicar. Visigoda ou não, andar por aí com um anjo não é coisa de alguém normal… Até onde eu sei, só clérigos de alto nível e alguns generais… quiçá a realeza também? Quem é ela?!
O anjo que levitava ao lado da garota, quase como parte de um reflexo, moveu um de seus inúmeros olhos em direção à fenda; dilatando as pupilas, os outros seguiram. Rumina estava na mira.