Sina de Guerra! Ou Como uma Garota Projetava Fantasias - Capítulo 3
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- Capítulo 3 - A Nova "Líder" e a Capitã
Mapa do Vice-reino da Platina
26 de março do Ano Santo de 1847 | Academia Provincial das Armas em Trinidade (APAT)
Por que eu estou aqui? Não. Mas que tipo de pergunta abstrata é essa? Eu sei o porquê. Mais bem, a pergunta deveria ser, o porquê do porquê estou aqui. Não, não. Assim é pior do que antes. Uhg, eu sou tão estúpida… não deveria ter tirado aquele papel primeiro…
Os dormitórios da APAT não eram ruins, para nada ruins. Tinham armários espaçosos o suficiente e beliches bastante confortáveis. Pelo menos… se comparados com aqueles dos viris quartéis. Rumina estava bastante ciente da realidade, mas ainda assim algo a incomodava.
Eu não queria estar nessa situação… O pior é que, Lília provavelmente diria algo do tipo: “é bom pra você!”. Ah, vá se lascar! E outra, duvido que metade das gurias que estão aqui teriam vindo se não fossem obrigadas. Metade é muito! Diria… um quarto! Não, nem sequer um oitavo!
Como lidar com o serviço militar obrigatório? Não existia um manual para isso. Pelo menos, nenhum do qual ela tivesse conhecimento. E, mesmo que existisse, provavelmente só o descobriria em última instância. Em matéria de coisas escritas, o único que ela tinha interesse de verdade eram novelas angelinas.
Mais importante, outro manual que não existia era: “como lidar com pessoas em situação de serviço militar obrigatório”.
— Cadete Florência Solacio reportando, senhora! — Uma bela garota enunciou ao enrijecer o corpo, batendo as botas uma na outra e estendendo o braço direito em direção ao horizonte.
Cair como líder logo na primeira semana, isso é pior do que o infortúnio de encontrar um nume depravado. E ainda chamam isso de “academia”. Isso é apenas um quartel relativamente mais confortável, só isso! Claramente, ela estava em uma fase de negação. A fase de depressão tinha chegado um par de semanas antes, quando descobriu que a iriam separar de sua melhor amiga, que havia passado o primeiro ano do curso juntas como aspirantes. Mas assim eram as coisas, agora que ambas tinham rango equivalente a 1.° cabo, não poderiam ficar juntas na mesma esquadra, teriam de compor com as cadetes mais novas no curso. Assim que o pessoal militar lhes informou que serviriam em esquadras diferentes no segundo ano do curso militar, Rumina teve de aceitar. A reversão de fortunas não fez mais do que trazer à tona a negação da posição forçada que lhe fizeram tomar no exército, mais agora, como líder de esquadra. Não era algo que alguém da administração diretamente decidia, era simplesmente isso: fruto das regras da hierarquia militar, uma fortuna do destino. Ainda que para a mais nova “líder” fosse totalmente o contrário.
— Hum… Cadete dispensada…
Florência revelava um pacote que escondia nas costas.
Essa guria. É a segunda vez que me entrega doces. O que eu deveria dizer? Obrigado? Sei lá… Ela parece ser daquele tipo de pessoa que é legal com todo mundo, não importa quem. Não que isso não desmereça o que ela faz…
— Obrigada.
— Não há de que. Eu faço eles em casa, e afinal, companheiras de esquadra deveriam se dar bem, não é mesmo?
— Suponho…
A garota mais alta dava as costas e movia o corpo em direção ao portal do dormitório.
Final de turno, assim se referia ao último descanso dos turnos de posição. Florência, como segunda no rango, era supervisora e tinha apenas acabado de relatar que as outras duas garotas que faziam parte da esquadra cumpriram seus devidos turnos: o de faxina e o de sentinela. Rumina, como líder da mesma, precisava anotar e fazer elas cumprirem os turnos, por isso, ficava no dormitório à espera da supervisão nesta parte final da ordenança da manhã.
“Grande dia!”, não era necessariamente o que ela tinha em mente, mas pelo menos, agora, podia fazer algo que sim gostava do currículo acadêmico-militar: balística.
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O estalido de um tiro de fuzil ecoou pelo céu. Como se não fosse nada, um buraco floresceu instantaneamente na parte de trás do anel mais central de um alvo.
— A garota de cabelo curto, a que acabou de atirar. Como me disseste que se chamava?
— Zugravescu, seu primeiro nome é Rumina.
— Hum…
De longos cabelos dourados e um penetrante olhar esmeralda, uma garota segurava metade do rosto com a mão, enquanto fixava sua atenção, através da vidraça do corredor, em uma das cadetes estiradas na terra carregando um fuzil nos braços.
— Sendo justo… ela é bastante medíocre, capitã. Para dizer o mais, a garota tem conseguido notas suficientemente boas para se manter na média. Balística, no entanto, é uma exceção. Por alguma razão, ela vai bem, mas não se destaca, de igual maneira. Além disso, algumas cadetes me informaram que ela é solitária e não se dá bem com uma das companheiras da sua esquadra.
— Tu não és muito sensitivo, não és, Héctor?
— O que se supõe que isso…
— Isso significa, que tudo não se define, ou se entende, utilize a palavra que quiser, através de métricas objetivas e pranchetas — disse, ao relançar o olhar sobre o que Hector segurava nas mãos. — Estão também, as coisas que vão além daquilo que o olho nu pode captar, coisas que só podem-se interpretar sentindo a realidade de forma mais interior e íntima. — A garota soluçou. — Humanos são seres com potencialidades sensíveis, Héctor. Não as vê quem não quer, ou por alguma razão está cego.
Héctor não se deslumbrou. Ele gostava de acreditar que sua comandante tinha momentos de desvario. Mas ainda assim, como cadete, ele nunca ousaria negar uma ordem ou objetar uma sugestão de forma desrespeitosa. Entendia que sua chefe sabia muito bem o que fazia, ainda que de maneira duvidosa, quer dizer, se não o fizesse tão melhor quanto aparentava seu semblante, não seria capitã do novo pelotão[2] feminino, e isto, muito apesar daquilo que os generais do diretório da APAT gostavam de praguejar sobre ela. No final do dia, no fundo dos gabinetes de documentos oficiais, qualquer um podia verificar que a garota tinha bons precedentes.
O rapaz encarava o cantil na mão da capitã com seriedade.
— Vou designar a esquadra da garota à lista de cadetes para transferência imediata.
A prancheta que Héctor levava nas mãos, com mais nomes riscados do que outra coisa, naquele momento, circulava mais quatro nomes em vermelho.
— Vamos, Héctor. Ainda há muito o que fazer para que o projeto seja bem sucedido. — Dando meia volta, a capitã acenou, chamando o subordinado para acompanhá-la pelos corredores. Dessa maneira, guardou o cantil na algibeira do casaco e continuou com um tom tranquilo. — Preste atenção ao que lhe vou dizer agora — asseverou, relançando o olhar para trás — Como bem sabe, os generais não aguentam minha presença no exército, mas vosmecê sabe o porquê?
— Por que você é filha do vice-rei… e-
— Retórica Hector, lhe fiz uma pergunta retórica. — A garota suspirou. — Enfim. Sim, mas não só por isso. Veja bem, as colônias têm ganhado alguma autonomia durante os últimos 14 anos e os generais, digamos que, se acostumaram com essa relativa autonomia que Toleto garantiu após as revoltas do passado. A maior parte deles são de origem crioula, castelhana ou lusitana. Começas a entender meu ponto? O sangue nobre de uma visigoda pura como eu, no símbolo último do poder militar e da autonomia da colônia platina, é sinônimo de que a capital ainda os têm de olho através do vice-rei. — Ela começou a zombar dos velhos generais como se ela fosse um deles. — “Na nossa tão querida APAT que conseguimos depois de tanto esforço, dedicação e sacrifício a Toleto! Como poderia o imperador ainda duvidar de nós?!”
— …Mas você não tem nada a ver com isso, não é?
Seguindo a capitã pelas costas, o rapaz viu a cabeça dela balançar em negação.
— Eles ainda acreditam que estou contra eles… Tolos — dizia ao tomar outro gole —, mal sabem eles que sou a única maneira deles serem verdadeiramente autônomos…
O rapaz se perguntava quando foi que ela tinha retirado o cantil do bolso novamente.
— Uff! Terei de repor isto depois…
A capitã provavelmente queria ter chegado a algum ponto com o começo dessa tangente em relação aos generais, mas agora já estava perdida em outros pensamentos, e assim seguiu seu rumo pelos corredores da APAT, junto com seu subordinado completamente desimpressionado pela atitude de sua capitã.
Nota de Rodapé
[2] O pelotão é uma das unidades mais básicas dos exércitos, geralmente composta por quatro (4) ou mais esquadras.