Sina de Guerra! Ou Como uma Garota Projetava Fantasias - Capítulo 11
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- Capítulo 11 - Incumbências
15 de junho do Ano Santo de 1847 | Academia Provincial das Armas em Trinidade (APAT)
Depois daquele fatídico dia em que descobriram a existência do secreto projeto visigodo, a vida das quatro garotas teria mudado para sempre. Dizer que aqueles dois meses e meio foram exaustivos seria eufemismo para o inferno que elas tiveram que passar sob a tutela da sempre-bêbada, capitã Victorica.
— UUUHHG, eu não aguento mais ficar dentro daquela lata de aço! É quente demaaaaais! E a gente sempre sai de lá suando que nem cavalo! — dizia Nañary ao esticar os braços atrás da cabeça enquanto caminhava ao lado de Dolores.
— Olha pelo lado bom, dizem que lá na Yuropa é muito mais frio do que aqui. Quando mandarem a gente para lá daqui a duas semanas, pelo menos vamos estar quentinhas dentro do nosso próprio caixão pessoal! Hahaha!
— Tá mais pra uma lata de sardinhas, isso sim.
O dia mal tinha começado, contudo as garotas todas já estavam nos corredores indo de um lado para o outro em direção a suas aulas, já que de tarde eram os turnos de guarda que as faziam tomar, como de costume. Vendo dessa forma, parecia que tudo estava ocorrendo nos conformes, mas para muitas ali o tempo que lhes sobrava, que às vezes poderiam usar para aulas optativas ou para simplesmente relaxar, tinha sido roubado por Victorica dois meses antes. Apesar disso, ironicamente, não foram os barris e sim a descoberta de que seriam mandadas para o velho continente que as tomou totalmente de surpresa. Quer dizer, embora fosse normal que o exército visigodo utilizasse tropas provenientes das colônias para suas expedições mundo afora, isso não era uma verdade quando se tratava da Yuropa continental.
— Pois é… quem diria que estaríamos sendo enviadas para o continente “sagrado” dos visigodos? Só pode haver uma razão pra isso…
— Patrulhar os banheiros públicos para oferecer papel higiênico aos visigodos? Heh.
— Se eles sequer utilizassem! — As duas se entreolharam e gargalharam juntas.
Contudo, depois de um tempo caminhando juntas, Ñanary começou a mostrar uma expressão preocupada no rosto, apesar de ainda estar solta e relaxada, e trocou de tema rapidamente.
— Ei, não acha que já é hora de fazer as pazes com a Rumina? Já faz mais de dois meses que a gente tá junto… e ela até que tem sido bastante competente como comandante do barril.
Dolores fechou sua expressão.
— Tsc. Me poupe. — Separando-se da sua amiga, acenou para ela e entrou em uma das salas no corredor. — Até mais, sua camundonga.
Ela parecia estar menos reticente em relação à líder de esquadra, afinal, não podia fazer nada em relação a hierarquia militar. Rumina havia chegado meio ano antes dela, em todas as circunstâncias seguia sendo sua superior. Apesar disso, ainda não tinha nenhum interesse em manter qualquer tipo de relação amigável com a garota. De fato, a única pessoa com quem ela parecia ter uma boa relação de verdade era com Ñanary.
— Hm… a Lola deve estar confiante por achar que quando a Rumina finalmente se atrapalhar, ela “vai colocar” a garota no “lugar que ela merece”. Clássica Dolores — disse Ñanary para si mesma, ao continuar para a sua aula. — Ai, ai…
Depois de um “tranquilo” dia de estudar por horas, escutar gritos de instrutores e marchar ao som de hinos imperiais, os finais de tarde não deixavam por menos; tinham virado exaustivas aulas de mecânica, direção e artilharia para as garotas. Mas hoje era diferente, a capitã tinha anunciado que haveria um importante anúncio para todas as garotas que haviam sido reunidas para conformar o 6º esquadrão de barris armados de batalha.
Entardecer do mesmo dia | Arsenal T-2 do complexo militar da APAT
Na frente do poeirento armazém do pátio de testes de barris, o sol baixo no horizonte já alaranjava o rosto das 47 cadetes fardadas de branco. Organizadas em três colunas, elas encaravam para diante, com uma certa seriedade que parecia mais cansaço.
Caminhando com as botas em alto e braços nas costas, a capitã do esquadrão, deu meia volta e parou de frente a todas. Por um momento as olhou e em seguida começou a bater palmas.
— Parabéns! Em contra de todas as expectativas — dizia Victorica ao insinuar de forma burlesca um bigode no rosto — vossas mercês todas conseguiram, em menos de três meses, controlar as máquinas e colocá-las ao seu serviço; ao serviço do Império. Entretanto, como vossas mercês já sabem, é ordem de cima que seremos mandadas em poucas semanas para a yuropa continental. Nós não sabemos o que nos espera no continente, mas parece-me óbvio que não iremos lá para sermos recebidas com flores e elogios, como muitas princesas aqui esperam. Por isso… — E outras infelicidades… tsc. — Hoje temos um convidado muito especial… — Victorica deixava o tom da voz desentoar um pouco.
A chefe do esquadrão encarou para o lado, na medida que o capitão Gervásio apareceu. Ele parecia ser um homem relativamente jovem, de aparência fina e robusta; o que mais o marcava era seu olhar afiado, cabelo desarrumado e largas sobrancelhas peludas.
— Saudações, garotas — cordialmente entoou o comandante do 3º esquadrão de barris do décimo terceiro terço. — Não deve ser uma nova notícia para vocês que o projeto de barris se destaca como um que é vital para a projeção militar do Império no continente yuropeu. Isto é porque pela primeira vez nossos barris terminarão de uma vez por todas com a desvantagem de atacar em campo aberto. Mas, sobretudo, porque os blindados ajudarão a inviabilizar as pesadas fortificações e a penetrar densamente as linhas inimigas com nossos terços, destruindo a coesão do exército inimigo. — Apontando ao céu, o capitão prosseguiu. — Sem dúvida alguma, a artilharia móvel é o futuro da guerra! Entretanto, todos sabemos que o único que nos impede de dominar as planícies leste-rutenas e de retificar a miserável ilhota angelina é nossa incapacidade de coordenar uma armada competente em um império tão extenso. — Olhando para Victorica, o capitão deu seu veredito. — Dito isto, eu não acredito que nenhuma dessas mocinhas que se me apresentam tenha o que é suficiente! O que precisamos é de homens preparados, não de senhoritas incapazes e imprudentes lideradas por uma princesinha bêbada que não sabe o mínimo de logística e desrespeita a propriedade de outras unidades militares. Enquanto eu estiver aqui, seu comando irresponsável sobre uma unidade crucial do exército não será tolerada.
De trás de onde teria vindo o capitão, surgiu um carro blindado a vapor que freou bruscamente. Dele saíram quatro homens militares de fuzil e bandas azuis nos braços com um símbolo em branco estampado com as siglas“FMP” e transpassado por uma faixa, igualmente azul.
— El fisco declara que existem provas o suficientes para impor a destituição da capitã Victorica como comandante da unidade. — Escoltado pelos outros três fiscais apontando fuzis, o quarto tomou a dianteira apontando um papel cheio de notas e carimbado em direção a visigoda junto aos fuzis. — Vossa mercê está sendo incumbida a comparecer no tribunal de contas militar da província platina no exato momento em função dos crimes de fraude fiscal, apropriação de propriedade militar, irresponsabilidade administrativa e outras 39 infrações de caráter fiscal e de decoro flagrados por evidência na atuação do cargo de capitã do décimo terceiro. Uuuuaa, uaaa, uaaa! Eu sabia que isso iria acontecer! Galore entrava em pânico ao lado de sua capitã. — Dito isto, vossa mercê está exaurida a partir deste instante como comandante efetiv- — O homem de farda cinza foi interrompido pelo som de um cantil se abrindo.
Victorica levou o cantil à boca e bebeu um gole. Tsc, já estava a esperar que ele fizesse alguma coisa estúpida quando disse-me sobre “encontrar uma resolução adequada” às nossas incumbências, mas não pensava que iria trazer o fisco militar provincial junto. Parece que não encontrarei paz muito cedo nas colônias…
— Pff! — Ela relanceou o olhar despreocupada para o capitão. — Hoje vosmecê levantou um tanto insubordinado para acusar uma nobre de tais crimes infundados, capitão. Lembre-se a quem pertencem estas terras que vosmecê pisa. No mais, hilária apresentação! Vejo que realmente pensaste bastante ao elaborar esta palhaçada de performance. Pois bem, agora, eu não gostaria de acreditar que o senhor seja contra a lei de alistamento expandido de 1834, pois se começar a ficar muito político e a ter demasiadas opiniões subversivas, acredito que terei de acionar o Santo Ofício para resolver seus problemas de conduta. Mulheres são obrigadas a servir, senhores! Da mesma forma que vossas mercês. — Victorica apontou para Gervásio. — Espero que não se esqueça também o que o P do fisco militar provincial significa e o que o I do tribunal imperial supremo do Santo Ofício significam… É inútil capitão. Seu circo é inútil. Inútil — alardeou Victorica, enquanto passava caminhando pelos fiscais provinciais. — Na realidade, capitão, eu adoraria acreditar que na verdade o senhor está propondo uma maneira de resolver nossas diminutas incumbências burocráticas através de… quiçá, um combate entre barris? — Finalizou, ao colocar uma mão no ombro do capitão de uma forma estranhamente sedutora para seu esquisito jeito de agir.
O clima tenso fez com que algumas garotas tivessem se intimidado com a posição do capitão, mas também fez que outras tivessem ficado extremamente irritadas com seu discurso discriminatório. Entre elas estava Rumina, Nañary e Dolores, junto com Galore e os outros membros da esquadra liderada pela capitã Victorica. E ainda que todas as 44 cadetes novatas tivessem achado desanimador e incompreensível o treinamento levado a cabo pela sua capitã sempre-bêbada que ao mesmo tempo que era exigente era desleixada, havendo situações onde ela se dormia de tão bêbada em uma cadeira à distância no meio dos treinamentos, pela primeira vez nos três meses que estiveram sob seu comando, as garotas sentiam que ela de verdade as defendia de coração. Naquele momento o sentimento que surgia era orgulho e respeito da comandante, em contra daquele capitão esnobe que colocava em risco todo o esforço que elas desempenharam para dominar aquelas máquinas de metal e fogo.
Uma cadete de cabelos curtos e rosados deu um passo à frente vociferando para o capitão rival, com seu ameaçador olhar escarlate e um sorriso presunçoso na cara.
— Não vai me dizer que o capitão tá com medinho que umas “senhoritas incapazes e imprudentes” façam do seu esquadrão picadinho? Hahahaha — dizia Picota, a mais baixo em comando na esquadra de Victorica, ao inclinar o quadril e sua figura para o lado.
Era perceptível a frustração surgindo no rosto do capitão que não tinha conseguido se sair com a sua e agora indicava para os fiscais militares que baixassem as armas.
— Tsc! Maldições.
— Então, capitão… Que tal começarmos a discutir agora como “encontrar uma resolução adequada” e justa às nossas incumbências?