Purificação - Epílogo
Epílogo – Regresso:
A inevitabilidade de se deparar com o desconhecido assombrou por muito tempo as mentes humanas, o medo que torna a aparecer, como um bote de um monstro das profundezas, atacando e encurralando a chance de raciocinar, e dando lugar ao desespero puro, o instinto mais poderoso e que torna a existência plena a mais vulnerável.
Alguns momentos Charlie questionou a sua realidade, mas não houve nenhum dia, nenhuma noite em que deitasse a cabeça no travesseiro, questionando não a sua vida, mas a própria existência, a própria realidade que leva uma pessoa a acreditar de modo tão veemente em seus dogmas, tornando-a cega para os principais valores que permitiram uma evolução tão grande da espécie humana.
Mas não, o medo, o terror, eles não evoluíram, afinal, para que precisariam? A fragilidade humana é tamanha que a emoção atua como um martelo, um impacto que traz à pessoa o que ela sempre foi: mísera, frágil, inútil. Essa sensação tomava conta de Charlie enquanto ele corria galpão à fora. Uma voz tentou impedi-lo:
— ESPERE, SE SAIR, NÃO TEREMOS ESCOLHA…
Ele já tinha saído, atravessando as portas do galpão, moribundo, desesperado como uma criança, a verdadeira criança que morava no condomínio rico e acabara de ouvir sobre a morte dos pais. Um vampiro emocional sugava todas as suas energias, mas ele ainda se apegava a chance de poder recuperar seu estado mental.
Charlie foi treinado para apreensão, tiroteios, roubos, estupros, sequestros, assassinatos, mas nada poderia prepará-lo para aquilo, como se Platão quebrasse suas correntes e o levasse para fora de uma caverna, mostrando não a luz de uma nova realidade, mas o verdadeiro motivo por eles terem entrado naquele lugar.
Como uma escuridão, uma aflição invisível que acompanha-o durante toda a sua jornada e impedia-o de se orientar. Charlie não estava correndo para sair dali, ele estava correndo para voltar para a caverna, para os braços da esposa, os abraços e risos de Sophia, para o campo de beisebol com os alunos, para o jantar na casa dos amigos, ele corria, ignorando a casa, ignorando as trilhas, ignorando a própria lógica.
Mas ele se agarrava a apenas uma coisa, o celular. O celular permitiria voltar para a caverna de onde nunca deveria ter saído, as mãos tremiam e por um instante quase deixou-o cair no bolso, ¨bateria: 3%¨. O sinal estava fraco, bem como a sua mente, então só restava correr, correr como um covarde à procura de sua caverna.
Muitas horas depois…
O mar, Sarah olhou para praia, estava deserta; a água estava calma. Ela queria afundar-se e ver quanto tempo conseguiria ficar sem fôlego. Deixou-se afundar, conseguia ver o fundo cristalino com algas, corais, peixes e tubarões, baleias, golfinhos. Ela estava com medo, mas nenhum deles a atacou, e ela não sentia falta do oxigênio. Poderia ficar ali para sempre, mas entre as algas estava um garoto, a pele escura, os olhos mortos. Era Lucas.
Sarah tentou nadar para longe, mas não conseguia, seu corpo estava preso em uma corrente que arrastava-a em direção ao menino. Sarah tentou gritar, mas nenhum som saía de sua boca, somente bolhas de ar que subiam em sua infinita rota à procura da superfície. Tentou virar o rosto, mas seu corpo era jogado novamente para a direção que o destino quisera que ela encarasse, e então, teve de encará-lo, frente a frente, seu rosto deformado e estraçalhado estava a centímetros dela, a maré havia parado no último instante de uma colisão iminente. Ele disse:
— Fala pra minha mãe que eu amo ela, tá?
E de repente, o medo se foi, ela estava livre, poderia nadar para onde quisesse, e o menino continuava ali, parado, fitando-a sem expressão. Ela não se afastou, em vez disso, voltou a ser quem verdadeiramente era, dizendo:
— Eu vou, pode deixar que eu vou.
Sarah acordou. Jimmy e John estavam em poltronas ao lado da maca, ela sentia-se dolorida, fraca, mas ao vê-los ali, principalmente John, com uma cópia de O Iluminado (ele sabia que Sarah realmente leria o livro e decidiu não ficar para trás), Sarah deixou as lágrimas escorrerem por seu rosto pálido:
— John… Jimmy…
Eles levantaram de súbito, John beijou sua testa e se encheu de alegria, bem como Jimmy. O namorado disse:
— Sarah, tá tudo bem, você já passou pela cirurgia, quer que eu chame um médico? Precisa de água? Tá confortável?
Ela riu, mas foi interrompida por uma dor no peito, mas ainda estava feliz. Caralho, como é bom ter vocês aqui! você conseguiu Sarah, conseguiu! Em vez disso, disse:
— Tá tudo bem gente, daqui a pouco… e a Laura?
Foi Jimmy quem respondeu:
— A menina é uma guerreira, fez questão de ficar acordada e relatar algumas coisas pros policiais enquanto estava recebendo os pontos. Depois recebeu o descanso merecido e tá dormindo até agora, os pais dela já chegaram. Os do outro menino…
— Eles estão aqui?
— Sim, mas estão muito abala –
— Preciso que chame-os.
Nenhum pestanejou. Apenas John perguntou:
— Tem certeza?
— Sim.
Depois de um tempo, um casal arqueado de pais na casa dos trinta, mas com postura de quem tinha sessenta, débeis, os olhos marejados de incerteza, entraram na sala. Estavam ainda com suas roupas de trabalho (pela aparência, não deviam ter tirado desde a noite do desaparecimento). Foi Sarah quem começou:
— John, Jimmy, deem suas poltronas pra eles sentarem e esperem lá fora, por favor.
Eles se sentaram, foi a mãe, chorosa, quem perguntou:
— Já ouvimos os relatos da Laura, mas ela é uma criança, e… ah, Brad… – as mãos do casal se apertaram umas nas outras, de consolo, para reunir coragem. – eu gostaria de saber… ele sofreu muito?
— Seu nome é?
— Maria.
— Maria, Brad… o filho de vocês é o menino mais corajoso que eu já vi, até o último momento ele lutou, ele tinha… – Sarah viu-os chorando a perda e se emocionou de novo, foi difícil de continuar. – ele se preocupou até o último momento, ele queria que eu dissesse pra senhora… queria que dissesse que ele amava você… Brad, Maria, mesmo com… com as feridas, ele perguntava a todo momento, ¨cadê o tio Charlie?¨, ¨cadê o Alex?¨, ele me salvou, se não fosse por ele, eu e Laura estaríamos mortas antes de sair daquele lugar.
A mãe havia desabado no colo do marido, Brad olhou-a, aos prantos, e meneou a cabeça, seus olhos diziam um simples ¨obrigado¨. Eles saíram da sala, conseguiu ouvir o choro de felicidade dos pais de Laura no outro lado do corredor, e o dela quando reconheceu-os. Ouviu também o choro de tristeza ao ver os pais de Lucas abraçarem outro rapaz negro que acabara de chegar às pressas, aterrissando nos braços uns dos outros, o alicerce de um e do outro. Lembrou-se do rosto de Charlie, de Alex, orou por eles, Sarah logo seria interrompida pelo doutor que aguardava na saída do quarto junto com o namorado e o amigo, então ela orou, pois sentia que devia fazer alguma coisa por eles. Obrigado, Lucas. Charlie, Alex, sejam fortes, e que daqui a pouco vocês estejam voltando pra casa.
Muitas horas antes…
O bosque não tinha fim, a corrida não tinha fim, Charlie tentara se esconder dos tiros, mas um pegara de raspão em um sua perna. Estavam a pé, Charlie começou a discar o número do celular de Rebecca, já não queria ser salvo, só queria ter a perspectiva de que a caverna não tinha desaparecido.
Cruzava um riacho quando outro tiro o acertou no ombro esquerdo, estavam longe, mas um dos malditos tinha boa pontaria. Charlie já não conseguia correr mais, mas continuava. O sinal estava médio, o celular começou a tocar.
Atende, atende, atende.
Atravessou um barranco e se esgueirou em uma rocha, então se ajoelhou atrás dela, procurando cobertura.
Ainda tenho algum tempo, por favor, atende, atende, atende.
— Alô?
Charlie já estava chorando quando ouviu a voz de Rebecca, mas tentou se manter calmo (a bateria estava em 1%). Deus, me ajude a terminar essa ligação:
— Oi Rebecca, é o Charlie.
Estava sorrindo, cheio de dores, com frio, suado, febril, zonzo e sangrando, mas estava sorrindo. A voz dela invadia sua alma como uma fagulha de esperança em um abismo gelado:
— Charlie, oi, tentei te ligar ontem à noite. Tá tudo bem? Sua voz tá estranha.
— Pois é, ha… Rebecca, eu não tenho muito tempo, eu peço desculpas…
— Pelo quê?
— Por tudo, por ter sido um babaca quando você tentou ajeitar as coisas… por ter ficado longe… por não ter sido o pai que eu deveria ter sido… você é incrível, Rebecca, e só percebi agora…
Um silêncio, Charlie horrorizou-se ao imaginar que o celular tinha desligado, mas o alívio retornou quando ouviu a respiração da esposa, sua voz já estava mais afetada:
— Eu fiz o teste de DNA nela, Charlie…
— Rebecca, eu não ligo pro teste de DNA mais, independente dela ser ou não minha filha, eu agradeço a Deus por ter tido a oportunidade de ficar junto de vocês, de me sentir como um pai de verdade…
A voz no outro lado já estava chorosa:
— Mas você é Charlie… deu positivo… vem pra casa…
O sorriso e o choro de alegria não abandonava ele:
— Desculpa, Rebecca, eles já estão próximos, não vou conseguir…
— Quem, Charlie? Onde você tá? Tá me preocupando…
— Não fique assim… obrigado por ter me dado essa chance… eu devia ter aproveitado.
— Charlie…
A bateria tinha se esgotado, bem como o resto das forças espirituais e físicas dele. A caverna, estava lá. Eles já se aproximavam. Charlie fechou os olhos, imaginando-se junto com seus amigos de novo, sua esposa, sua filha, e preparou-se para morrer quando o barulho de passos cessou à sua frente. Ele abriu os olhos.
Carl estava com uma espingarda apontada para sua cabeça e do lado… do lado… não era possível, o gelo atravessou-o novamente, sua alma vacilou, seu corpo vacilou, o terror tomara conta de si:
— Lúcia?
Ela estava ali, tão bem quanto aqueles ao seu redor. Não havia sangue no seu vestido, seu semblante era tão vivo quanto a de qualquer criança que ele já vira. Charlie não acreditou, seus braços e pernas estavam moles, sua cabeça pendia de confusão e tormento:
— Ma-ma-mas… eu vi… eu sei que vi você morrer… como isso é possível?
A voz dela era suave, o olhar malicioso, a postura ergonômica e estranhamente familiar, a voz, apesar do timbre infantil, era mais familiar ainda:
— Ah, Charlie, tem muitas coisas que você ainda não sabe…
E o tiro foi disparado.