Purificação - Capítulo 15
Capítulo 15 – Purificação:
Sarah pisava fundo no acelerador, rota quarenta e dois. O latejar no seu braço e a ferida na perna já faziam parte dela como o ato de respirar. O desespero de ambas cessou, mas a aflição de olhar para trás e imaginar as luzes de um farol que não pararia de persegui-las até que estivessem frias e enterradas nas profundezas de uma terra amaldiçoada não parava de assombrá-la.
Também não soube exatamente como conseguiu se manter acordada. Sarah nunca dirigiu bêbada, mas sabia que a sensação não deveria ser muito diferente, a única condição era o braço estraçalhado que fazia-a sentir-se tonta cada vez que encarava-o e a ferida na perna, e claro, todo o terror das últimas horas. Mais um pouco, Quarter Town, mas eu não conheço a cidade, só Dawn City, direto pro hospital, o Jimmy ainda deve estar lá, vai me socorrer.
Sarah disse, já perdendo as forças:
— Laura, preciso que seja forte, tá bom? Já é muito corajosa, mas eu não vou poder ir para a delegacia tão cedo, e talvez fique sedada no primeiro pronto socorro, a sua perna ainda dói?
A voz dela era triste, chorosa:
— Tá, tia, mas o coração também dói…
Porra, Sarah, respira, continue acelerando. Quando a placa ¨Dawn City: 60Km¨ apareceu na estrada, ela quase chorou. Foi quando o brilho do farol de uma caminhonete surgiu no retrovisor, na estrada deserta. Poderiam não ser seus captores, mas há uma intuição na alma daqueles que sofrem de qualquer tipo de abuso, uma intuição precisamente espiritual de quando o mau está a caminho, e estava…
— Porra… não… Laura, coloca o cinto…
A caminhonete se aproximava, mas Sarah não ficou satisfeita com o marcador no 100Km/h, ele ainda subia; o alívio ao sentir o movimento refrescante do vento no interior do carro era palpável, pelo menos se ignorassem o cadáver de Lucas, há pouco tão animado, tanta vontade de viver, agora jazido como uma tralha de praia que escapole do banco e balança de um lado para o outro, banhando o couro da caminhonete em vermelho. A caminhonete atrás de si estava mais próxima.
Sarah olhou no retrovisor novamente, alguém estava colocando o braço na janela, estava armado. Ela enterrava o pé no acelerador:
— Laura, são eles de novo, abaixa!
Dois tiros. Um acertou no para-brisa e outro na lataria. Os pneus. As primeiras plantações surgiram, Sarah percebeu que estavam no norte da cidade de novo, as estrelas se evanescendo e as primeiras árvores do bosque do lago surgindo como pontos esverdeados e distantes em meio às primeiras casas rurais. Estavam próximos da residência dos Robbinson, ela tinha certeza.
Mais tiros. Eles não têm medo de serem percebidos, ela pensou com pavor. Ao longe, Sarah viu, reconheceu a estrada e observou pequenos tons de bege e luzes azuis e vermelhas brilhando, só mais um pouco. A caminhonete estava na cola delas. Será que eles já conseguem nos ver? Começou a buzinar, o pé permanecia no acelerador, as luzes estavam ainda mais próximas, a dor no braço espancava seu moral e a mente cansada emitia seu desespero através de arfadas incessantes e arquejos moribundos.
De repente, ouviu-se um Poouf sonoro. O controle lateral do carro simplesmente parou, a velocidade diminuiu bruscamente, e a trajetória do veículo entortou-se de tal modo que o braço de Sarah pareceu na direção correta por um momento, então, o rastro do pneu falhando no asfalto e o brilho de faíscas desesperadas observadas através do espelho esquerdo.
A caminhonete se equiparou a ela, um dos homens apontava uma espingarda em sua direção. Sarah virou o carro neles em um impulso de adrenalina e dor, ela não ia morrer depois de ter lutado tanto, ela não ia morrer depois de ter batalhado tanto para ter a vida que tinha, a família que tinha, os amigos que conquistara, um bando de fanáticos à lá ¨Ku Klux Klan¨ não faria sua coragem diminuir, Sarah não era somente o alicerce das crianças, dos milhares de adolescentes que todos os anos se viam menos vivos com abusos, ela não era somente a protetora deles, Sarah era o maior alicerce de si mesma.
A derrapada determinada obrigou a caminhonete maníaca a desacelerar para evitar uma batida, e surtiu efeito. Mas Sarah esqueceu de colocar o pé no freio. A derrapada persistiu, perdendo o equilíbrio e depois disso, um balanço mortal.
Os gritos de Laura ficaram abafados, Sarah ouviu o som da lataria na beira da estrada, olhou no retrovisor e por um milésimo de segundo observou o cadáver de Lucas em câmera lenta, parado no ar enquanto rodopiavam, os olhos mortos do garoto abriram-se por um instante e Sarah jurou que ouviu-o dizer ¨fala pra minha mãe que eu amo ela, tá?¨. O corpo foi jogado para lá e para cá (tinha se esquecido de pôr o cinto de segurança) como um brinquedo em uma caixa de mudanças, só que de carne e osso. E então, tudo ficou preto.
…
Aqui estamos nós, senhoras e senhores, essa temporada foi difícil, Charlie faria bem em se aposentar depois de um jogo como esse. Faria? O escuro pareceu ser o novo dia, lembrava-se de ter recebido mais um golpe na cabeça achando que era uma bala e que morreria, assim, o sofrimento cessaria e o descanso merecido poderia ser aproveitado.
Mas não, Charlie estava errado de novo.
A sala não ficou escura por muito tempo, mas o pouco de consciência que lhe restava usou para verificar se ainda tinha o celular debaixo da cueca, ainda estava dentro da casa, em um cômodo (provavelmente o porão), mas isso não importava, só o celular poderia salvá-lo naquele momento. Jesus Cristo. Tinha. Dessa vez amarraram-no completamente, a corda áspera roçando em sua pele suada e a ferida quente em seu braço.
Ouviu o barulho de passos acima de si, no teto mofado, depois à frente traçando um L perfeito, então, o barulho do ranger de uma porta à sua frente. Houve um click. Quando a luz lasciva cegou-o por um momento, uma forma escura surgiu à sua frente, lá vem a porra da mulher de novo. A voz gutural anunciou:
— Acorde, não temos muito tempo.
— Quem é você?
A garganta não estava mais seca, pois ficara pior ainda, havia virado basalto, Charlie nem ao menos sentiu sede, com medo de que se pedisse para que lhe dessem água morreria engasgado. A mulher no manto falou:
— Sou uma profeta, assim como a minha mãe foi, e minha avó…
— Onde tá o Alex?
— Ele está bem, mas o Robb, Bob, Roy e Larry estão mortos, por sua culpa.
— Tá faltando um…
A sombra se levantou de espanto:
— Quem?
— A porra da Lessie.
O alívio em seu semblante foi palpável. Charlie riu, mas logo os risos foram interrompidos por um aceso de tosse. A mulher continuou, recomposta:
— O velho Robbinson também se fora. Mas essa rede é muito grande e logo Sarah, Laura e Lucas não poderão escapar.
¨Logo¨, até o ¨logo¨ chegar, muitas coisas podem acontecer. Charlie se divertiu com a ideia de vê-la frustrada:
— É, mas a puta da Mary Wood não vai abençoá-los pra capturar ela, não vão conseguir.
— Sim, sabemos disso, não vamos mais capturá-los, agora a ordem de morte foi dada, não precisarão chegar nem perto da cidade, já temos apóstolos perseguindo a caminhonete dela e morrerá antes de chegar a algum hospital ou delegacia. Além disso, também temos companheiros por lá.
Charlie sentiu um arrepio subindo pela espinha:
— Mentira, você não nos matou por que achava que as coisas ainda poderiam ir pra debaixo do tapete, mas não vão escapar, também temos os nossos contatos e a polícia interestadual logo será acionada.
A mão asquerosa da velha veio de encontro ao seu rosto pálido, sua pele gelada contrastava a psicopatia em sua voz de pena enquanto acariciava-o estranhamente:
— Querido, só deixei eles vivos até agora em respeito a eles mesmos, mas principalmente a você. As crianças não entenderiam as coisas que temos para ensinar a elas, mas aceitariam a realidade intransigente com o passar do tempo depois que vissem o extraordinário. A jornalista demoraria mais, e você mesmo a convenceria depois de ter sido convencido por nós. Por quê acha que deixamos você em um local separado? Liberaríamos todos vocês com revelações fora da concepção mesquinha que os seres humanos têm sobre sua realidade.
Charlie estava confuso:
— O que vocês querem com as crianças e conosco, afinal? Por que não me matam logo, PORRA!?
— As crianças foram curiosas demais, as pessoas de hoje não entendem a proporção de nossas atividades e nossos encontros tornam-se cada vez mais arriscados devido a popularização da internet e vazamento de informações sigilosas, logo, seria a oportunidade perfeita para conseguir novos apóstolos. E com relação a matá-los, não fizemos isso em respeito à senhora Cate Richard e ao senhor Donald Phillips…
Um gelo atravessou a alma de Charlie:
— Como… você sabe…. os nomes?
— Explicaria isso, mas você negaria todos os fatos, então é melhor mostrar a você…
— Essa merda de Mary Wood é faixada, vocês acreditam que são privilegiados, que essa porra de mulher vai salvar todo mundo e que podem abusar de qualquer um…
— Não acreditamos na Mary Wood, ela não existe nem na Bíblia, meu bem, não damos nome às mentiras que as pessoas chamam de religião. Só precisávamos de um símbolo humano para definir a nossa localidade, mas se religião fosse de fato proveniente do divino ou à semelhança dele, então os humanos se contentariam em buscar eternamente pelas respostas, e não tecê-las como uma segunda pele sobre seus espíritos e usá-la como pressuposto para conquistar interesses próprios. O que você define como abuso pode ser o sagrado para outro.
— MENTIRA, ISSO É TUDO É MENTIRA!
¨Charlie, querido, perceba que não há diferença entre o real e a mentira, no fim das contas, é um pretexto, é a tentativa humana de racionalizar suas decisões e suas expectativas. Não importa, no final todos acreditamos em uma mentira pois é isso que nos torna mortais, não estamos dispostos a morrer pelo conhecimento divino por que ele não é real aos nossos olhos, e quando o fazemos, basta observar a História, e ela dirá que sempre foi um reflexo do aspecto humano, não o contrário, que nos levou a tal ponto, e só não é real por que é proveniente de nossa própria espécie. As pessoas seguem suas vidas acreditando em farsas, não existe cristão no mundo que esteja vivo sem o auxílio da ciência hoje, não existe ateu no mundo que negue o poder do dinheiro, mas no final das contas, ambos vivem a mesma mentira, acusando e separando uns aos outros por ideias conclusivas e justificando seus dogmas inconclusivos com a filosofia. Entende por que é tão difícil convencer alguém? Não é por causa de suas crenças, é por que elas acham que já chegaram à conclusão de seus ideais e medo. Não há como eu explicar qualquer pensamento passível de justificação se eu utilizo a própria linguagem humana para descrever o indescritível, é por isso que ainda tenho fé em você e em Alex, o menino tem medo, você, raiva, tão diferentes em idade e maturidade, mas eu sinto a curiosidade atemporal nos olhos de vocês, uma peça que não se contentou em ser um peão, que move-se apenas em uma direção e quando progride é somente para prejudicar o outro, eu vi em você algo mais, e é isso que vou estimular, abrirei os seus olhos.¨
Me dê a menor oportunidade e verá que também posso abrir um buraco em sua testa. Ouviram o barulho de uma porta se abrindo e uma voz feminina (provavelmente Margaret):
— Estamos prontos.
Ela respondeu:
— Desamarre os pés dele. Alex e Lúcia estão prontos?
— Sim, mestre, Lúcia está chorando mas ela é assim mesmo, vai passar. Alex tentou morder o Carl mas já dopamos ele, precisa ficar calmo.
— E os outros?
— Já estão no púlpito aguardando sua presença. Os outros mestres… vão comparecer?
— Não, não este ano. Lúcia entenderá, chame o Carl e mande-o vigiar Charlie, quero que você cuide das crianças. E Margaret… eu sei que está ansiosa, e sinto muito pelos outros mestres não estarem presentes nesta purificação, afinal, é a sua filha, mas saiba que sua ascensão não é menos importante do que qualquer outra. Agora vá.
— Sim, mestre.
…
Um clarão, não sentia direito uma das pernas, as costas doíam, mas a dor estava longe, como se ela estivesse boiando nas águas calmas de um mar de começo de manhã, observando as nuvens… mas algumas delas de repente ficaram escuras… fumaça. O barulho de sirenes… um homem, policial; depois, uma voz:
— Senhora, você está… Jesus Cristo, são as crianças… chamem uma ambulância imediatamente!
De novo, tudo ficou escuro. Sarah estava sonolenta, prestando atenção apenas no ar que saía e entrava de seus pulmões. Percebeu que estava ficando mais difícil de respirar. Outra sirene, uma outra pessoa, um outro problema. A voz:
— Me ajudem, ela pode ter fraturado a espinha, vocês aí, imobilizem a menina.
Uma dor excruciante, uma onda agitada no mar calmo, Sarah grunhiu. Tentou falar mais alguma coisa, mas o ar escapou, a onda que trouxe a dor também afogava-a:
— Afogando… afogando…
A maca parou, um rosto de um homem jovem veio de encontro a seu peito (Sarah lembrou-se de John), depois, uma voz de preocupação:
— O pulmão, está entrando em colapso…
O breu das águas de sua mente a desmaiou de novo. Ouviu um tuc no lado direito de seu peito em um som molhado e angustiante, um chiup, chiup, chiup. Começou a recobrar um pouco da consciência e enquanto levavam-na para a ambulância, um homem se aproximou:
— Ei, ela é amiga de um colega meu. Jornalista?
O enfermeiro repreendeu-o:
— Lamento senhor, mas preciso que saia do caminho.
Sarah reuniu forças, a voz saiu em uma rouquidão:
— São eles, os Robbinson… o Charlie… o Alex… vão matá-los.
Já estava no veículo, Jacob estava de pé na ambulância com os ouvidos próximos de seu rosto, sem ligar para as reprimendas. O espanto ao receber as informações seguiu-se de uma rápida pergunta:
— ONDE?
— Rota quarenta e dois, à segunda estrada de terra… tem muitos…
O enfermeiro fechou a porta, expulsando o policial, e dizendo para o motorista:
— Vá para o hospital do centro. Senhorita, vamos levá-la pra lá pois é próximo e você pode ter uma hemorragia interna a qualquer momento, percebemos algumas costelas quebradas.
— A garota…
— Ela está bem, também está indo pra lá, deve ter quebrado o braço, mas está bem. Agora evite falar…
Evitar falar é o cacete. O enfermeiro já tinha espetado um soro nela, mas sabia que depois da morfina ela apagaria de vez. Lutou contra a dor:
— Não, ainda não… sem morfina…
— Fique calma, senhorita, vai ajudar na dor…
— Um celular, preciso…
— No hospital, quando você estiver recuperada…
— Por favor, agora…
Ela havia começado a chorar. O enfermeiro compadeceu da situação, removendo um celular do bolso.
— Tá, vou avisar a algum parente seu. Fale o número e a pessoa.
Ela disse com dificuldade e depois que a ligação começou, sentiu a morfina acalmando a maré de novo. Porra, vou desmaiar. Mas viu que o enfermeiro conversava. A sensação de vitória por escapar, a felicidade em saber que teria uma segunda chance, uma nova vida, uma nova página, tudo isso não sobrepujam a angústia de saber que Alex e Charlie ainda estavam naquele lugar maldito, sejam fortes, gente, só mais um pouco. Dessa vez, Sarah voltou para o mar sem previsão de saída.
Momentos antes…
Carl era duas vezes maior que ele. Charlie não se deixou intimidar, se tivesse qualquer oportunidade de lutar, agarraria, já não tinha medo de morrer, tinha medo de sentir a sensação que tanto o acompanhou durante a vida: a sensação de mediocridade, intolerância, a sensação de covardia, o medo de tentar as coisas de um jeito diferente.
Quando subiram os degraus e chegaram na sala, ele percebeu que a casa estava completamente vazia e escura, mas um caminho de tochas serpenteava através das árvores em seu caminho tortuoso até o galpão para onde estavam indo. Carl também estava com um manto. Ao saírem da casa, o vento cortou o corpo moribundo de Charlie, que fraquejou e rangeu os dentes pelo incômodo do frio. E estava mais frio do que o normal.
A chuva tinha passado, e uma neblina tomou conta do chão. Atravessaram o caminho em um silêncio sepulcral, que foi dando espaço a um leve ronronar de vozes abafadas, depois, o longo galpão no meio do nada, as portas semiabertas.
— Chegamos.
Carl elucidou a palavra como um náufrago em uma ilha deserta falaria ao receber uma resposta de resgate. Entraram calmamente, lá dentro havia a luz de um holofote que percorria o salão como uma lanterna angelical. E onde havia luz, havia vida, um coro de apóstolos encontravam-se reunidos em círculo ordenado e síncrono, os capuzes de suas cabeças virando uns para os outros para verificar se as partituras diabólicas que era suas mentes estavam prontas.
No teto, uma carcaça de porco estava pendurada, esse vai ser o meu deus ex machina, Charlie pensou ironicamente, imaginando o gosto da última refeição, pelo menos estava bom. Um círculo de sal e ervas traçava um caminho em espiral até o centro de um novo semicírculo, onde um púlpito se encontrava. Lá em cima, a mestre em um manto negro; uma outra figura em um manto branco encontrava-se no sopé, à direita da profeta; e à esquerda, Lúcia, em seu vestido branco.
Charlie parou, admirando em um misto de medo repulsivo e consternação para a conjectura do ambiente. Algumas figuras partiram à frente, Lúcia estava chorosa, e… Alex, o garoto estava com dois braços grandes que o envolviam em um gesto paterno, mas Charlie sabia que era para forçá-lo a ver. Alex não o tinha percebido, o menino tinha os olhos atônitos.
A profeta começou seu discurso, em uma língua fora da concepção daquilo que Charlie poderia definir como exótico. Como aquelas sílabas estavam sendo pronunciadas el não fazia ideia; a própria estrutura expressiva das frases não soava humana, mas lá no final, no fundo, ele sentia algo vindo de gente. As figuras que partiram à frente se despiram, duas mulheres, dois homens, um senhor já de idade, e Lúcia (não reconheceu nenhum). A profeta tirou o capuz, olhando Charlie com aqueles olhos escuros e cinzentos, o cabelo grisalho liso como seda e o formato da boca esticado. A outra mulher no manto branco tirara o capuz, era Margaret.
Os cantos de novo. E as outras vozes se juntaram, repetindo o que a profeta dizia, Carl permanecia como pedra segurando-o, e Alex tremia. Os fiéis que se encontravam nus começaram a andar em círculos, seus corpos tinham tatuagens singelas, mulher foi de encontro a homem, homem foi de encontro a mulher, o velho foi de encontro a Lúcia, despindo-a cuidadosamente.
Charlie não acreditava:
— É ISSO? VAI SER ASSIM?
Começou a se debater, foi quando um soco atingiu a sua nuca e ele caiu de dor. Os homens enfiaram-se nas mulheres em uma posição quase aracnídea, seus braços davam suporte ao encontro das genitálias como verdadeiras patas de aranhas, para depois, um dos homens ficar acima de uma das mulheres, e a outra dupla com a ordem contrária. O velho senhor pegou na mão de Lúcia, já chorando, que fora acalmada por sua mãe em um doce e malévolo ¨tá tudo bem, querida¨, e as vozes começaram a deixá-lo zonzo.
À medida que se enfiavam uns nos outros, a profeta entoava cânticos dignos de eras onde a língua comum estava longe da concepção homo sapiens. E eles agiam com vigor, o velho andava de mão dada com Lúcia, por cima e entre os casais, jogando seu sêmen entre os corpos, que retribuíam com as secreções de seus corpos e que eram passadas para Lúcia (parte de mulher, parte de homem). Charlie rangia os dentes, contorcia-se deitado no piso tentando achar uma forma de sair dali, e então os corpos levantaram (Carl estava tão hipnotizado com o rito que se esqueceu dele). Charlie afrouxava o máximo que conseguia.
Os casais reuniram-se ao redor de Lúcia, inclusive o velho, e centralizaram-se na espiral de sal e ervas, o círculo contraiu-se, um cheiro forte de incenso surgiu (um cheiro anômalo, não-natural). A carcaça foi aberta com o auxílio de um arame farpado que encontrava-se preso ao animal pendurado. Deus, Charlie percebeu de súbito que o porco ainda estava vivo, o som do roncar desesperado do fio atravessando seu pescoço enquanto em vão tentava escapar daquele lugar desesperador. Sangue foi derramado em uma cachoeira macabra enquanto a profeta entoava e cantava em na língua que parecia não se repetir, o timbre de sua voz alcançando sons agudos, mas, ao mesmo tempo, graves. Só mais um pouco, Charlie!
Então, o círculo abriu-se, o semblante vermelho de Lúcia era de pavor, mas Margaret indicou o altar com o olhar de ternura que só uma mãe psicopata pode dar, e ela subiu, quase escorregando nas poças de sangue brilhosas. Alex observava tudo com olhos de coruja. A profeta continuou na língua estranha, e empunhou uma faca. Margaret se aproximou do púlpito.
Não, não é possível, ainda há gente que acredita nisso? Não, deus, me dê forças. Aquilo realmente aconteceria? Será que não se tratava de uma grande peça e de repente as cortinas seriam fechadas anunciando o fim daquilo, mas Charlie estava errado.
Lúcia pegou a faca, e Margaret sorriu para ela. Alex começara a chorar de desespero, os olhos vidrados, os outros apóstolos também choravam, mas de uma felicidade. Não havia nome próprio nas frases que emitiam, soavam como adjetivos horríveis, mas tinham que cultuar alguma coisa, aquilo tinha que ter alguma justificativa. Será que tinha mesmo? O policial entrou em desespero com a reflexão enquanto lanhava sua pele tentando desfazer o nó. A profeta elucidou, como uma rainha:
— Faça.
Lúcia estava chorosa, seus braços fraquejavam, ela é só uma criança. Então, Margaret avançou sobre a faca, o sangue escorreu pela vestimenta vermelha, e ela caiu escada a baixo. Charlie ficou atônito:
— Mamãe!
Charlie grunhiu, os cantos continuaram, a profeta chamou Lúcia:
— Deite-se Lúcia.
E ela o fez. A mestre empunhou a faca, Alex gritou. Quem é ela pra decidir o que é e o que não é divino, porra? Faz diferença, no final das contas? Eles não enxergam o quanto de sofrimento causam com suas práticas? Não, Charlie, você sabe que não, e ainda insiste como o verdadeiro covarde que é que em algum momento poderia convencê-los do contrário, veja, aprecie o preço do pecado. A lâmina refletia o brilho da luz em um vermelho lustroso. Charlie gritou:
— NÃÃÃO, SUA PUTA, VOCÊS TÃO FODIDOS SE FIZEREM ISSO, A POLÍCIA JÁ TÁ –
Um chute, e o breu momentâneo, Charlie olhou de relance, já estava conseguindo deslizar através da corda, mas parou, bem como o coração, quando viu a profeta descendo com a faca na barriga da garota. Carl avançou, aos prantos, junto com os outros, que se ajoelharam enquanto a profeta terminava seu canto, dilacerando o estômago da menina com olhos desesperados, por um momento, as entranhas de Charlie se reviraram ao imaginar Sophia no lugar de Lúcia.
Puro terror era o que Charlie sentia no momento, queria matar todos eles, mas ficou com medo quando conseguiu afrouxar a corda o suficiente para escapar, por que não viu no olhar deles e daquela profeta a maldade, não viu no semblante deles o fanatismo, ele sentiu medo, por que viu o desconhecido, não sabia o que estavam sentindo, e com esse sentimento, Charlie correu, correu para qualquer lugar longe dali, uma eterna corrida na eterna incerteza que era a vida.