Passos Arcanos - Capítulo 274
— Nunca gostei dos Forwe por conta daquele mestre deles – disse Oliver com Cassiano ao seu lado. — Ele pode não ter aquele mesmo físico de anos atrás, mas é um guerreiro que chamava atenção. Tem certeza que vai querer uma luta ao invés de outra tática, filho?
O espelho refletia o reflexo de Orion Baker. Sua túnica vermelha ainda descia pela lateral, rasgando o solo cinzento, contaminando as tonalidades dos arredores. Diferente dos dois, não usava um casaco grosso nem botas pesadas para a neve.
Num inverno forte que se iniciara havia poucas semanas, Orion não sentia o frio que os moradores diziam sentir. Sua pele praticamente não aceitava a baixa ou alta temperatura, e indiferente, sempre encontrou razões para não se destacar.
Um líder deveria ser forte, mas possivelmente passivo de se conectar por meio de qualquer situação com seus subordinados. Agora, ele tinha cerca de dois mil Baker para cuidar.
— Lutar não é o correto, eu sei. — Orion prendeu a fita de sua cintura, deixando apenas mais uma cair para a lateral. — Lafel diz que seu pai não irá ser tão razoável comigo quanto é com os outros, mas a falta de misericórdia dele não me afeta em nada.
— Depois do Feiticeiro, essa será sua primeira luta. — Cassiano mantinha os dois braços atrás das costas, fitando-o pelo espelho. — Posso ver que seu ferimento ainda não está completamente curado. Como pretende prosseguir?
— Eu tenho uma pessoa que está se dirigindo para cá agora mesmo. Tenho confiança de que com o que aprendi da última vez, ela pode me ajudar.
A porta foi aberta lentamente e um dos mensageiros passou com uma velha senhora o seguindo. Orion esperava justamente por ela, mas quando Cassiano a encarou, ele rapidamente fez uma curvatura igualmente realizada quando era para Orion.
A formalidade dele o deixou curioso.
— Levante sua cabeça, Espada Carniçal. — A senhora do bosque passou pela porta. Estava coberta por um gorro, cachecol e casacos fortemente protegidos pelo frio. — Faz mais de vinte anos. Não precisa ser tão formal.
Cassiano manteve-se na mesma postura.
— Nunca te agradeci o suficiente.
— Para de graça. — Seus olhos passaram para Oliver e decaíram para sua perna na mesma hora. Orion ficou mais impressionado ainda. Poucos poderiam saber que seu pai tinha um problema sem que o conhecesse perfeitamente ou o visse usando a bengala. — Está fazendo muita força nesse ferimento.
Pego de surpresa, Oliver abaixou a cabeça e a deixou passar. A senhora retirou o gorro, revelando os cabelos negros intocados pela neve. Tirou uma bolsinha da cintura e pôs em cima da mesa de madeira no canto. Observou o local e depois a Orion.
— Seu núcleo ainda está bem disposto mesmo depois da última vez que nos vimos. Ouvi dizer que lutou contra algumas pessoas bem diferentes e isso resultou nesse seu pedaço de carne – apontou ligeiramente com o dedo para o membro enfaixado. — E agora quer saber como curar.
— Tenho uma estranha percepção de que você pode fazer isso.
— Sou uma curandeira, não faço milagres. Se sua carne tiver sido infectada pela mana, os poros ficam corroídos e param de absorver energia mágica. Posso conhecer as condições, mas como falei, milagres são apenas com os Sacerdotes.
Orion deu uma risada fraca e concordou levemente.
— Tem muitas coisas que os Sacerdotes sabem fazer. Milagres, acho que ainda não chegaram nesse patamar. Acha que existe alguma coisa que eu possa fazer para melhorar isso?
— Talvez algum medicamento Élfico. — O balançar de cabeça dela foi pragmático. — Um sumona de contenção e reversão de mana. Tem muitos auxiliares capazes de deixar um membro em perfeito estado. Houve bloqueio de mana, obstrução e dispersão. Seria interessante procurar um Grande Mago especialista em conversões atemporais, algo que possa trazer pelo menos sua pele de volta a cor normal.
— Acha que o tempo poderia reverter isso? — A Senhora do Tempo, suas memórias e treinamentos estavam enfincados em sua mente como uma estaca. — Conhece esses procedimentos?
— Conheci. Lembro de ter estudado com um homem, quando ainda era uma jovem. Era considerado um gênio com talento altíssimo. Infelizmente, na minha época, o prego que mais se destacava era martelado primeiro. Ele disputou um torneio de Arche-Magos, sendo o único Mago de Quinto Núcleo, e chegou bem longe. Depois disso, desapareceu no continente. Nunca mais vimos ou ouvimos falar dele. A Ordem sempre foi culpada pelo seu sumiço. O Masquerati estava chegando ao seu auge e muitos dizem que a ordem dele foi a sentença do rapaz.
Cassiano bufou, em desdenho.
— Como sempre.
— Masquerati sempre foi um desses que não precisou estar presente para matar – disse a Senhora do Bosque. — Os Grande Magos são comandados pela Ordem dos Magos, mas nos tempos de crise, são aqueles homens quem atuam nas surdinas. Desde aquele homem, ninguém mais controlava o tempo. Não que eu tenha conhecimento.
Orion olhou para sua mão. Abriu e fechou a mão algumas vezes. Depois, ergueu o olhar para seu pai e Mestre Cassiano. Nenhum dos dois mostrou sinal de incerteza. Precisava da aprovação desses homens para contar algo tão importante.
E a Senhora do Bosque notou.
— Pode ser que… você conheça alguém que possa fazer isso?
— Primeiro. — Da palma esquerda, uma runa de dez pontas se formou. Ela desceu lentamente. Ao tocar o chão, se expandiu por todo o cômodo e o fechou por completo. — Não preciso que ninguém saiba desse assunto.
— Posso me sentar para ouvir?
Orion a deixou escolher um lugar no sofá e ficou em uma cadeira a sua frente. Retirou as faixas, ataduras e também as gazes. O odor de elixires, as misturas de substâncias tão estranhas. Tinha se acostumado com elas há muito tempo, mas viu a face dos três se contorcerem juntas.
A Senhora do Bosque se inclinou e deu mais uma olhada. A precisão dela era notável. As piores partes, as mais prejudicadas, ela tinha notado no mesmo instante.
— É ainda pior do que imaginei. Os medicamentos estão mantendo essas marcas escuras na superfície. A carne não foi tão afetada. O maior problema seria o tempo de uso.
— Quando estive treinando a Escola de Partículas, aprendi que as células fazem parte de uma parte ainda menor. Ela poderia ser modelada, reconstruída. — Orion a encarava. — O BioArcanismo teria esses mesmos efeitos?
— Não posso dizer que sim. Conheci poucos Elfos na minha vida, mas um deles foi a esposa do Antigo Rei Elfo. Esmer Soifon conseguia reconstruir pedaços de membros perdidos, mas foi a única que se aprofundou com tanta força nesse meio. Não é por menos que foi contada por Espíritos Maiores.
Orion supriu a pergunta para continuar no assunto.
— O Espaço e o Tempo são duas partes da Escola de Partículas. O Espaço poderia remodelar meu braço?
— Ainda não entendeu os efeitos – disse ela. — Precisaria de dois Mestres. Um precisaria selar seu braço no espaço, e outro converteria o tempo através dele, retrocedendo os efeitos e conjurando células novas para formar o tecido.
— E isso levaria quanto tempo? — perguntou Oliver ao passar para o lado de Orion. — Seria permanente?
— Talvez uma vez a cada três ou quatro anos deveria refazer o processo. — Ela não tinha clareza e nem curiosidade estampada. — Tenho certeza que dois Mestres nesse quesito hoje estão apenas dentro do círculo do próprio Masquerati. E pelo seu sobrenome, eles nem mesmo cogitariam em ouvi-lo.
Orion sabia disso. Precisar de homens tão podres o faria ser mais podres ainda. E nem precisava deles.
— Uma magia passiva resolveria. Talvez, uma conversão de partículas e modelagem?
Ela lhe deu um olhar vago.
— Sua pergunta me dá a resposta que não conhece nada do Núcleo Draconiano que tem. Eu vim porque tinha certeza que perguntaria como usar a Natureza Arcana para se curar. Mesmo conhecendo os quatro pontos formados da mana, ainda se prende ao seu Arcanismo Comum.
— O que Carsseral tem a ver com isso? — Cassiano cruzou os braços. — Ele ainda está se curando. A luta com o Papa Oculto lhe deixou bem abalado.
— Ele pode perder os braços e as pernas – ela respondeu. — E ainda teria como se recuperar completamente. O núcleo dele converge a mana natural e lhe dá força por uma fissura, garoto.
Como ela conseguia saber até mesmo isso?
— Você está com medo de romper esse limite por alguma razão, mas hoje, o que eu sinto não é Orion Baker, é Carsseral. Sua presença não existe, sua vida não existe. O que vejo na minha frente é o receptáculo do próprio Dragão de Prata, apenas isso.
Em silêncio, Orion ouviu Cassiano e Oliver ergueram sua voz contra. Orion continuou fitando-a, como se os dois sequer estivessem ali. Ele jamais tinha sido lido assim, mas se a fissura em seu núcleo fosse maior, mais mana converteria, mais poder teria, mais rápido estaria no topo.
Medo, essa palavra não fazia sentido algum se fosse dito de maneira tão grosseira.
— A limitação que tenho tem sentido. — Sua voz cortou os dois Mestres.
— Para poder utilizar completamente o poder Draconiano, teria que acessar a Natureza Arcana. Hoje, você tem a capacidade de fazer algumas coisas, mas nada que seja completamente diferente do que um Sacerdote ou Feiticeiro que chegou na base da concepção do que é a mana. Alguns homens na história tiveram a chance de mudar o mundo, mas precisariam fazer isso a partir de si, e escolheram não mexer nas estruturas. Ainda não era a hora, ouvi muitos Grandes Magos na minha vida dizerem isso. Nunca vai chegar, mas um homem precisa apenas de um objetivo verdadeiramente sincero para querer algo. Sua família, amigos, esposa, conhecimento… vingança. Tudo isso são palavras. E muitos já choraram por não ter poder de conseguir o que você tem hoje. Quer ser mais forte ou mais inteligente? Sua verdadeira natureza está estampada na sua cara. Não importa se for esses dois homens ao seu lado ou sua família inteira atrás dessas paredes, se um deles for tocado, você levaria o inferno ao mundo inteiro. Se existe força para fazer, então faça.
Houve um estalo. Dentro de si, Orion voltou-se para lá. A imensa parede que protegia os Cinco Sóis do Núcleo Draconiano rachou mais uma vez. Ela era imensa, e havia apenas uma fissura ali. Aquele pequeno espaço era a sua atual força.
— Se limitar para que possam te alcançar ou para que te achem normal. — Orion deu um passo para trás, vendo a figura da Senhora do Bosque do seu lado com um semblante sereno. — Pode não ser a hora, mas quantas almas se limitaram para não perder os outros? Entretanto, Orion Baker, existe algo no ser humano ainda mais forte do que o poder. É a humanidade.
— Você entende bem do assunto.
Ela esboçou um sorriso, o primeiro que viu.
— Uma mulher capaz de ver através do corpo, feridas na alma, nos órgãos, através da mana. Quantas vezes neguei atender ou dar um diagnóstico correto apenas para um colega meu acertar? Muitas vidas se perderam por minha ignorância e limitação. Você não pode fazer o mesmo. Posso não ver o seu potencial, mas isso aqui. — Sua mão tocou a parede e a fissura se esticou ainda mais. — Quanto mais atrasar, mas eles vão ficar chateados quando chegar a hora. Você tem inimigos demais e gente demais para proteger. Quem sabe quando isso vai colidir?
Já tinha acontecido tantas vezes. Cristina, a filha de Poulius Qujas, o Papa Oculto – esses combates foram acirrados, mas todas as vezes, a mesma lembrança aparecia: Omar. Desde que o viu na Costa Congelada, soube que teria que lidar com seu irmão.
E tinha medo, sim, dele ser mais forte.
— Seu braço – disse a Senhora do Bosque. — Não precisa da minha ajuda para conseguir consertá-lo, mas quer ser humano o suficiente para pedir ajuda. O seu título diz isso por si só. O Homem Quem Conjura as Estrelas.
— E eu perderei essas pessoas que tanto confiam em mim.
— Perderia? — Ela retirou a mão da parede. Os dois se encararam. Orion sentia-se limpo, sem amarras ou proteções para defender-se dela. — A confiança é importante, mas ninguém confia em pessoas fracas. Quando você não tinha nada, eles ainda faziam o mesmo?
— Não mesmo.
— Entenda esse fato. Os Cinco Sóis foram feitos para serem um só. Eles deveriam trabalhar juntos, mas nesse momento, o que você está fazendo é apenas alimentando o primeiro. O Sol Negro tem essa função, alimentar os outros quatro. O Sol Branco, a pureza. O Sol Amarelo, a destruição. O Sol Azul, a leveza. E o Sol Vermelho, o final.
Mais uma rachadura arrastou-se como um relâmpago desenhado no céu em dias de tempestades. Orion observou novamente as cinco imensas esferas uma em cima da outra. E depois olhou para trás, para seu núcleo e a matriz que o protegia, convertendo a pequena porcentagem de Natureza Arcana que adentrava.
Seria sensato ser mais forte, mas aos poucos sentia que seu senso se perdia nessa quantidade. Ele estava apenas no nível de Arche-Mago. Ainda era um Escolástico. Ainda tinha…
— O Papa Oculto teria me matado – ouviu a voz em sua mente. — O que ela disse está certo. Você se limita mais e mais. Um Dragão não se diminuiria para ser bem recebido por um cachorro ou gato. Sua ignorância é gigante, Orion Baker.
Carsseral estava lhe observando, como sempre.
— Eu preciso me distanciar tanto dos outros?
— Quanto mais subir, mais caminhos irá abrir para eles. — Carsseral também apareceu dentro de sua alma, naquele mundo escuro. Estava em sua forma miniatura, sobrevoando a frente. — Quanto mais alto chegar, mais degraus terá percorrido. Ao olhar para trás, verá que eles o seguirão.
A Senhora do Bosque também aceitou esse comentário.
— Mais nova, minha chance apareceu. E por não querer me desgrudar daqueles que me ajudaram um dia, fui rebaixada mesmo tendo essa… técnica. Posso ver muito, mas não vi que quem estava me delimitando era eu mesma.
— Fugi da minha mãe quando era um idiota – disse Carsseral. — Queria viajar e me conectar com as criaturas mais fracas por desejo de me tornar mais… humilde. Um dragão será um dragão. Eu perdi minha família naquele dia que fui congelado.
Proteger os outros ficando ao seu lado – proteger sendo mais forte que todos. Era uma decisão tão drástica. O braço enfaixado, Orion encarou-o novamente. Inconscientemente queria mantê-lo para que vissem que até mesmo ele, forjado das batalhas anteriores, não poderia fugir das consequências.
Queria que vissem o quão humano ele era, o quão iguais eles eram. Desde quando? Orion praguejou para si. Desde quando era igual aos outros? Ele lutou contra sua própria família, lutou contra os Feiticeiros e também todas as contraposições de um mundo cinzento.
Ele fechou a mão fortemente e bateu contra a parede negra. Ela estalou. Os fios se esticaram sem limites para todos os lados. Bateu mais uma vez. Teias se formaram. Orion tinha muitos para cuidar. Ele socou a parede. Tinha que manter as famílias seguras. Abriu a palma e enfiou os dedos dentro dos rachados. Inimigos deveriam ser derrotados. O Masquerati tinha que ser morto. O Clero e a Ordem seriam punidos caso fizessem algo contra eles. Tudo isso seria… feito. Ele puxou os fios para baixo.
A parede se abriu.
I
Wallace e Tito caminhavam a cavalo nas estradas. Fora da cidade de Keifor, os dois tinham Heivor atrás de si. Faziam uma ronda simples a fim de encontrar os pontos onde novas torres poderiam ser construídas.
A neve caindo sobrepunha seus ombros. Heivor e alguns da Tribo Mestiça apenas utilizavam as calças, como de costume, recebendo os ventos frios sem proteção.
— Os Baker faziam guerra? — Heivor perguntou de repente. Estavam em silêncio quase uma hora. — Como a família de vocês lutava?
— Depende – respondeu Wallace da frente. — Meu pai sempre falou que o campo de batalha deveria ser visto como um tabuleiro. Peça por peça, você faz a vitória sacrificando algo. Algumas vezes, homens. Outras vezes, lugares.
— E aquela cidade onde fomos, VilaVelha, vocês lutaram lá?
— Meu pai, sim. — O cavalo do Comandante do Batalhão Carmesim diminuiu o ritmo, quase parando. Esperou Heivor ficar ao seu lado. — Ele disse que os Magos e Arche-Magos tinham funções diferentes. Mas, na nossa família, nós todos aprendemos a lutar desde cedo. Desde nosso primeiro Mestre, temos essa fama. Servimos bem a estrutura que montaram de guerra. Soldados sem medo de morrer, algo parecido.
Heivor se inclinava no cavalo com um braço acima do outro.
— Então, vocês foram mais fortes antes do que são hoje com tudo o que ganharam?
— Do ponto de vista técnico, sim. — Wallace balançou a cabeça, convencido.
— Existe outro ponto de vista. — Tito manteve-se mais a frente. Não se virou. — Um ponto que acreditamos ser meramente ilustrativo. O destino atuaria, como fez todos esses anos. A morte já nos abraçou demais, e sempre voltamos bem. Perdemos poucos na guerra, mas tudo por um ótimo motivo.
Heivor esperou a conclusão, mas não veio. Encarou Wallace, nem ao menos refutou.
— Está falando de um futuro onde serão mais fortes? E como chegariam a isso? Alguma forma de ataque, conquista, dominação?
— Não depende da gente – disse Tito. — Assim como nossos pais eram antes. Nós somos soldados. A única diferença é que quem comanda agora é um homem com uma multidão dentro de si. Pode ser que veja Orion como um jovem talentoso, alguém que se destaca, mas não é como nós vemos. A guerra dele é diferente da nossa, sabemos isso desde cedo.
— A guerra dele é interna – explicou Wallace para Heivor. — Algo que somente ele poderia resolver. Por isso, nós esperamos.
Quanto drama. Heivor sabia que Orion era imensamente forte. Todos sabiam. Ele tinha juntado pessoas extremamente poderosas ao seu lado, mas achar que ele chegava a outro nível? A confiança deles deveria ser alta, mas tanto assim os deixaria decepcionado caso não acontecesse.
— Quando eu aprendi a atirar – disse Tito —, Orion já sabia. Quando Wallace aprendeu três estilos, Orion sabia os dez. Quando os Anciãos abriram vaga para um Escolástico, ele já era graduado em cinco matérias. Você pode não saber, Heivor, mas o Mestre Baker cresceu sem poder usar magia. — E olhou para trás. — Faz apenas três anos que ganhou a oportunidade de fazer isso. Outros como Martin Crons fazem isso a vida toda. Entende o que estou dizendo?
— Ele é um gênio? — Heivor riu. — Eu conheci muitos assim.
— Você pode ter conhecido muitos. — O cavalo de Wallace acelerou a passada. — Ninguém como ele.
Houve um estalo. O cavalo de Tito e Wallace pararam na mesma hora, sincronizados. E eles olharam para trás rapidamente. Heivor e a tribo fizeram o mesmo, mas não sentiram ninguém os seguindo.
Então, uma pressão descomunal os pegou de surpresa. Seus corações aceleraram, os dedos se fecharam nas rédeas. Um frio descomunal os acertou. Heivor ficou de olhos arregalados. Aquele sentimento, fazia muito tempo que algo parecido não os deixava tão medroso.
Seu pai, na última vez que lutaram, lhe deixou assim. Não conseguiria o derrotar, não. O medo de perder a luta, o próprio pai, a vida. O medo, a dor, a perda. Aquela aura, presença, poder rugia tanto ao mesmo tempo – tanto sofrimento, sorrisos, amarguras.
— Finalmente. — Ouviu Tito passar por ele de um lado e Wallace do outro. — Parece que ele acordou.
— Omar poderia aparecer agora e ele seria massacrado – disse Wallace, rindo. — Temos que ir saudar o Mestre Baker.
Heivor ficou atônito. Esse era o poder de Orion? Desde quando? Nem quando o viu soltar sua fúria em VilaVelha daquela vez sentiu esse poder tão descrente. Era imensurável, descomunal. E vendo Wallace e Tito apenas indo em sua direção, o peito de Heivor estremeceu.
Ele está em outro nível.
I
Faltan engoliu em seco quando adentrou o pátio. Centenas de figuras ajoelhadas apontavam seus peitos para a figura distante deles. Não era o espaço. Aquele era o mesmo Orion Baker de antes, a mesma feição, o mesmo homem vestido com as túnicas de sangue. A distância era de presença, de aura, de profundidade.
Suas pernas não aguentariam ficar esticadas por mais tempo daquele jeito. Quando buscou Wilson, o Arche-Mago já estava ajoelhado e de cabeça baixa. Ela não esperou e fez o mesmo.
— Senhora – a voz dele tremulava —, por favor. Eu nunca pedi nada a senhora todos esses anos. Nunca falei dessa maneira com seu pai. Nunca questionei uma ordem. Mas, se puder, com todas as suas forças, considere a proposta do Mestre Baker.
— O que aconteceu para ele estar desse jeito? — sua voz ficou fraca. — Por que estamos assim?
— A senhora nunca treinou seu corpo para absorver ou liberar mana. — O suor escorria da sua testa, mesmo estando no lugar mais frio do continente. — Um Mago aprende a fazer isso quando é jovem. Os Arche-Magos absorvem mil vezes mais. Um Grande Mago faz isso quase que cem mil vezes mais. Lembra do Velho Rei Artrax que nos visitou uma vez? Aquela era a presença esmagadora dele. Mas isso… — ele olhou com esforço para cima. — Isso é completamente insano.
Orion ainda se mantinha esperando. Mais gente estava aparecendo e se curvava para ele. As famílias Pelsyn e Fandon também chegaram. Eles se ajoelharam. Magos e mais Magos surgiram. Ela não sabia de onde eles vieram. Não tinha visto essas pessoas pela cidade. Até mesmo uma garotinha foi para perto de Orion e ajoelhou-se bem em sua frente.
— Aquela é a discípula do Mestre – ouviu um Baker falar. — Ela já é uma Mago de Quinto Núcleo.
Impressionante. Ainda não tinha conhecido ela, mas a jovem parecia ter sua idade.
— De onde essas pessoas são? — Um Cavaleiro questionou ao ver mais e mais gente entrar no pátio. — O Mestre Baker tem isso tudo de gente como seu exército?
— E não acaba.
Mais cem entraram por outro portão, e pararam ali. Dava para ver que existia outra centena do lado de fora.
Orion olhou ao redor e abaixou o dedo. As paredes que os separavam foram direto para o solo, abrindo ainda mais espaço. Foi que ela entendeu, Faltan Mideroni estava no meio de mais de cinco mil pessoas.
Não eram apenas Magos ou Cavaleiros, moradores e comerciantes, os Baker e os próprios animais curvavam-se diante Orion Baker. Naquele silêncio frio, ninguém ousou erguer a voz para questionar. Era uma eternidade, uma que Faltan ficava abismada em admiração.
Esse poder, tão diferente e tão protetor, essa era a verdadeira face do Mestre Baker?
— Hoje – a voz de Orion soou em suas mentes – suas vidas estão sob minha proteção. Não sou um Rei tampouco Imperador, mas sou um Baker. E nesse instante, o conflito com a Ordem dos Magos irá se intensificar. O Clero virá. Os Feiticeiros, inimigos ocultos nesse mundo. Mas, não se preocupem. Hoje, eu irei remodelar uma ordem antiga. Há vinte e dois anos, minha família teve sua mana revogada. Nós servimos aqueles que nos mataram, fizemos aquilo que nos foi mandado. Eu estou cansado. O continente mudou, as pessoas mudaram, mas eles não. Tudo que pertence a minha família pertence a minha família, então, como Mestre Baker eu quero revogar a Lei Desonrada.
As famílias ficaram pasmadas. Se qualquer Mago ou Arche-Mago ouvissem estariam tremendo e ansiosos para irem de volta para VilaVelha.
— No entanto, o que eu quero não é a guerra. Eles podem se divertir querendo se enfiar dentro de lutas e mais lutas, mas a minha guerra está aqui. — Ele apontou para o próprio solo. — Quero que entendam de uma vez por todas, eu não sou igual a vocês. Não sou como eles. Não sou como o Masquerati. Quero tocar o céu, mas farei isso criando degraus para aqueles que me seguem. Quero que vejam a minha família, a minha cidade e toda a história como um verdadeiro lugar. Hoje, eu decidi isso. Aqueles que me seguirem terão a possibilidade de tocar esse mesmo céu.
Faltan respirou fundo. As palavras dele não eram covardes, autoritárias. Ela sentia a verdadeira emoção que se libertava ao falar, e apostava que todos conseguiam também. Era a solidão. Wilson não tinha essa aura, não tinha essa característica. Um Mago ou Arche-Mago não conseguiria se desprender da sua presença.
O braço direito enfaixado de Orion veio a se levantar. E chamas vermelhas a incendiaram de uma vez. O calor os golpeou com força. Wallace e Tito tocaram seus peitos, assim como os Anciãos e Mestres.
A quantidade de mana que fluía para Orion era extremamente alta. Cada Mago presente usou aquele momento para aumentar a sucção natural, se alimentando da energia densa. Eles se observavam, entendendo que aquelas centenas de Magos estavam ultrapassando seus níveis, expandindo seus núcleos, saindo de Sexto para Sétimo, entrando no domínio dos Arche-Magos.
Alguns como o próprio Mestre Cassiano utilizava da energia para purificar seu sentido, indo além do que estava acostumado a ir. Wilson também, Faltan sentiu que ele estava se aprimorando. A mana que fluía dele era mais límpida, brilhante.
Isso tudo por conta de Orion Baker.
— Lá fora, eles temem os Baker – disse com leveza. — Nós seremos mais rápidos, mais letais e mais precisos. Para tomar Archeboom, para tomar a Travessia novamente. Para tirar os Sacerdotes das rotas mais preciosas. Para isso, seremos capazes de dialogar com Elfos e Anões. Seremos velozes, seremos frios.
A chama congelou rapidamente ao redor dos braços. O gelo escureceu, transformando-se em placas de pedra. E depois, a pedra se transformou em areia, caindo lentamente. Ao tocar o solo, mudou para uma poça de água.
Orion pisou na poça e ela se ergueu em fragmentos brilhantes e escuros. Arrastou a mão por cima deles, eletrificando-os. Não era mais Arcanismo Comum, aquilo era Natureza Arcana.
— Se os Baker não podem usar Arcanismo Comum, faremos isso do jeito que as Tribos massacradas, pelas criaturas perseguidas, por aqueles que foram chamados de monstros. Nos transformaremos naqueles que mudam as regras, mas permanecem dentro da Lei. É isso que eles querem, então faremos isso.
Uma onda de energia ressoou dele para os Baker. Aqueles de pé não suportaram a pressão e voltaram a ficar de joelhos. Faltan pensou que todos eles estavam fadados a cair, mas os dois braços de Orion, Wallace e Tito, Martin Crons, Heivor Lobo tremularam, mas não cederam.
Mestre Cassiano tinha sua espada na frente do peito, de olhos fechados e respirando pesadamente.
— Nenhuma família no continente consegue usar Natureza Arcana – disse Wilson baixinho. — Mais de duas mil pessoas podendo usar, e não só eles. — Ao esticar a mão, os fios elétricos se esticavam facilmente. — Cada um aqui recebeu uma parcela do que ele sabe, senhora. Isso mudaria o continente por completo. Tudo o que a gente segue pode mudar.
Se tudo podia mudar, então ela seguiria o que seu pai acreditava.