Pacto com a Súcubo - Capítulo 37
No chão, parcialmente coberto pelas folhas secas, à sombra de uma árvore tão grande quanto todas as outras naquela floresta, estava algo que destoava de todo o resto: a porta metálica e quadrada de um alçapão.
Clara deu um sorriso e guardou o Mapa de Sortilégios no bolso da calça e, usando o pé, tirou as folhas da frente.
— Chegamos!
Havia uma inscrição da porta do alçapão.
— A Grande Masmorra das Luzes, em honra a seu conquistador Lúcifer, o Portador da Luz, o Grande Rei dos Demônios — disse Renato, lendo a inscrição. — Conquistador? Mas não foi ele quem a construiu?
Clara suspirou.
— Às vezes, Renato, suas muitas perguntas irritam a gente, sabia?
— Ah, foi mal por perguntar tanto! É que eu descobri há pouco tempo que demônios, magia e monstros existem! Foi meio chocante pra mim, tá ligada?! E eu meio que tô no Inferno. Ir para o Inferno tão cedo não estava nos meus planos, sabia? E quer saber mais ainda? Eu não tô entendendo é quase merda nenhuma de nadica de nada. Mas foi mal por fazer tantas perguntas, ó sem paciência súcubo!
Clara franziu o cenho.
— Quer saber, Renato? Você tá muito estressadinho pro meu gosto! Você tá precisando transar um pouco, sabia? Menino estressado!
— Então transa comigo, caraio!
— Beleza!
— Beleza então!
— Então ótimo!
— É! Ótimo!
Clara sorriu.
— Mas só depois que você vencer a Tercina. Usa isso como motivação, vai.
Ela deu três tapinhas no ombro dele.
— Humpf! Só porque é gata fica se achando!
Ela gargalhou.
— Poder se achar é uma das vantagens de ser gata. Aliás, é “conquistador” porque Lúcifer não construiu a masmorra. Ela já tava aqui quando Ele caiu. Ele só precisou explorar e conquistar, e depois transformar no que é hoje. No início isso era apenas um labirinto subterrâneo cheio de monstros. Bom, agora que te respondi, vamos indo, ó virgem perguntador!
“Você vai ver. Na hora que formos pra cama, eu desconto minha raiva! Vou te pegar de jeito e botar pra… ” pensou Renato.
Ele, entretanto, nunca foi muito bom em esconder o que estava pensando; Clara, por outro lado, sempre foi excelente em ler as pessoas, acumulando, inclusive, grande parte de sua riqueza na terra apenas jogando poker. Sendo assim, não foi difícil para ela compreender completamente o que ele estava pensando.
Clara apenas fez um olhar de pena e achou graça da inocência do garoto. “Vai ficar mais apaixonado do que já tá” foi o pensamento dela.
Ela desenhou, com os dedos, um círculo mágico na porta do alçapão, destrancando-o. Pegou a maçaneta e puxou, revelando um túnel gigantesco e escuro que descia reto para as profundezas. Era impossível ver seu final.
Clara abriu os braços.
— Vamos, vem pro colinho da mãe!
Renato olhou desconfiado, esperando alguma trolagem sucubiana.
— Vamos! Não tenho o dia todo, Renato! Não tem escadas, então você vai precisar descer comigo.
Renato obedeceu. Clara o segurou no colo como se ele fosse um bebê e então pulou pra dentro do túnel.
Foram centenas de metros em queda livre. E, quando o chão começou a ficar próximo, o escuro se dissipou e Renato pôde ver o chão se aproximando perigosamente. Ele se segurou firme em Clara.
— Não se mexa! Um erro de cálculo e você se espatifa lá embaixo.
E, assim que o chão ficou próximo o suficiente, Clara jogou Renato para o alto com força, diminuindo sua velocidade de queda.
Os pés dela tocaram o chão com suavidade, sem qualquer resquício da queda violenta e, em seguida, aparou Renato em pleno ar.
— Ainda bem que faz horas que eu comi — disse o garoto, saindo do colo de Clara e pondo a mão na boca para evitar qualquer incidente envolvendo devolução de comida pro mundo.
Estavam num grande pátio subterrâneo com formato circular, com as paredes se erguendo formando uma abóbada até o buraco no teto por onde caíram. Era estranhamente iluminado, mesmo que não houvesse lâmpadas ou velas. No centro, havia uma estátua gigantesca de uma criatura com seis asas e três chifres, sendo um de cada lado da cabeça e outro na testa, e uma grande coroa ornamentada com pedras. Segurava uma espada numa mão e um livro na outra.
Sentados aos pés da estátua, três demônios com aparência de adolescentes, estavam sentados. Eles bebiam algum tipo de bebida dourada fluorescente. Assim que Clara e Renato caíram, eles se levantaram e olharam com suspeitas.
— Olá, garotos — disse a súcubo. — O reitor está?
— Está sim — disse um deles, depois de um tempo de hesitação.
Da parede circular, vários túneis podiam ser vistos, se aprofundando ainda mais na terra ou indo horizontalmente. A maioria era grande o suficiente para que um homem adulto andasse a pé, mas alguns exigiriam que andasse encurvado para não bater a cabeça no teto.
Clara os analisou por um tempo, até escolher um.
— Vamos!
Entraram num dos túneis. Para Clara foi fácil: ela só precisou virar névoa e flutuar pra dentro; Renato teve que escalar alguns metros daquela parede áspera, mas conseguiu.
O túnel nada mais era do que um longo corredor com vários outros túneis se ramificando, alguns para ainda mais fundo no solo, outros para cima, outros para os lados, lembrando um ninho de formigas gigante. Era um labirinto.
Fizeram algumas curvas nas ramificações, se aprofundaram no solo, depois subiram. Vários demônios passaram por eles, voando, indo e vindo. Olhavam-nos com suspeitas, principalmente para Renato, mas iam embora sem os incomodar.
Renato sentiu arrepios ao imaginar esses corredores estreitos e subterrâneos cheios de monstros.
Fizeram algumas curvas pelo labirinto gigante, até chegarem numa porta circular metálica. Clara abriu.
Entraram num gigantesco salão. Cristais fluorescentes flutuavam no ar, garantindo iluminação. Havia prateleiras com livros antigos e pergaminhos, e outras com muitos objetos que Renato nunca tinha visto em sua vida.
E, num dos cantos, estava um balcão. Era um tipo de recepção, na qual uma garota de óculos, pele bronzeada levemente alaranjada e olhos muito pretos estava sentada lendo um pergaminho que, pela aparência, era muito antigo.
— Olá. Sou Clara Lilithu, uma das antigas alunas. O reitor está?
— Ah… ele… ele está sim!
— Poderia chamá-lo?
A garota deu uma olhada desconfiada para Renato.
— Só um minuto. — Ela enrolou o pergaminho e guardou embaixo do balcão. Depois pegou um notebook e o abriu.
Fuçou por mais algum tempo embaixo do balcão, até encontrar o que procurava.
— Aqui. Se importa? — disse ela, e entregou uma agulha para Clara.
A súcubo pegou a agulha e espetou o próprio dedo, depois a devolveu com uma gotinha de sangue na ponta. A garota pegou a agulha e a pôs sobre o Touch Pad.
Algumas informações apareceram na tela.
— Oh, sim. Uma súcubo. Descendente direta de Lilith. Clara. Entendo. Identidade confirmada.
Clara apenas sorriu gentilmente.
— E quanto ao garoto? — A secretária se abaixou pra procurar outra agulha.
— Ele tá comigo.
A secretária ergueu uma sobrancelha.
— Sinto um cheiro diferente nele.
— Deve ser sangue de aranha. Ou de Orc.
— Que nojo!
— Pois é. Poderia chamar o reitor?
— Claro! — A secretária digitou alguma coisa no notebook. — Ele está vindo.
— Obrigada. Enquanto isso… acho que vou dar uma olhada nos liv…
Um grande círculo mágico brilhou no centro do salão como fogo, e chamas alaranjadas se ergueram do chão, e do meio das chamas o reitor apareceu.
— Ele é rápido — disse Renato.
— Clarinha! — disse o reitor. — Que saudades!
Ele correu para abraçá-la. O fogo se apagou atrás de si.
— Reitor Phenex! Também senti saudades!
— E por que não veio me visitar? Onde estava?
— Eu tava na terra.
O reitor enrugou o cenho.
— Na terra? E por que estava naquele lugar sem graça?
Clara riu.
— Isso é uma longa história. Depois eu conto. Reitor, eu quero te apresentar alguém.
O reitor Phenex direcionou seus olhos amarelos para Renato; e então sorriu.
— Humano?
— Ah, eu sabia! Eu sabia! O cheiro dele era tão diferente! — berrou a secretária. — E ainda por cima vivo! Por que tem um humano aqui?!
— Calma, Hoopoe! É só um macaco de barro. Por que trouxe isso aqui, Clarinha?
— Ah, como eu posso explicar? Ele vai lutar uma tercina nas Areias da Segunda Morte.
— Então é assim que estão dando a ração pros monstros agora? Onde será que eles veem graça nisso?
— Não. Ele não vai ser comido… — pensou um pouco — … eu acho… — pensou mais um pouco — …eu espero. É por isso que estamos aqui. Quero ensinar o Renato a manipular a energia hermética. Ele é forte. Talvez até aprenda a conjurar feitiços.
O reitor Phenex fez uma cara de pena.
— Fazer o bichinho treinar dessa forma só pra ele ser comido é meio cruel, não é?
— Ele não vai ser comido!
O reitor riu.
— Entendi, entendi. Bom, se é o que quer, então não vejo problemas. Já fez o teste de afinidade elemental?
— Ainda não.
— Então é por aí que precisamos começar. Hoopoe! Traga o cubo elemental!
— C-certo, reitor!
A secretaria se levantou e foi correndo até as prateleiras. Voltou de lá trazendo um cubo metálico com símbolos entalhados. Tinha um símbolo alquímico em cada uma das faces.
O reitor pegou o objeto, pôs no chão e olhou diretamente para Renato.
— Agora, garoto, você precisa fazer seu sangue cair sobre o cubo.
Renato franziu o cenho.
— Mas como eu vou… tem mais algum daqueles alfinetes sobrando aí?
Phenex balançou a cabeça.
— Não pode usar nenhum objeto cortante ou perfurante.
— Então como…
— Use a criatividade — o demônio sorriu de forma sádica.
Renato olhou para Clara, procurando alguma ajuda, mas só obteve o silêncio.
Pensou um pouco e não ficou feliz com a única solução que tinha conseguido.
Levou a mão à boca. Phenex lançou um olhar interessado. Renato fechou os olhos, se preparou para a dor que sentiria, e mordeu. Quase não conseguiu continuar. A dor terrível se espalhando por sua mão alucinava-o. Recuou. A respiração estava descompassada. Olhou para a mão. Ali estava a marca de seus dentes, mas nenhuma gota de sangue.
— Mas que merda!
— Algum problema, humano? — disse Phenex. — Gostaria de desistir?
— Não.
Levou novamente a mão à boca e apertou os dentes. Quis fazer rapidamente, sem que desse tempo de ele desistir, e assim o fez. O gosto metálico de sangue tocou sua língua junto do sabor de carne crua. Ele tirou a mão da boca rapidamente, com uma careta de dor, e deixou o sangue pingar sobre o cubo.
Phenex sorria de forma satisfeita.
— Ele conseguiu! — disse Hoopoe. — Eu não achei que conseguiria, mas conseguiu!
— Agora, é só esperar — disse Phenex.
Um dos lados do cubo começou a brilhar, emitindo uma luz alaranjada. Phenex ergueu uma sobrancelha.
— Isto é… — disse Hoopoe.
— Fogo — completou Phenex. — Você tem afinidade com o mesmo elemento que eu, humano! Não envergonhe o melhor elemento!
Clara deu um tapinha nas costas dele.
— Fogo, hein? Quem diria?! Isso é bem raro entre os humanos.
— É mesmo? Então eu posso fazer magia de fogo?
— Se treinar bastante, é possível.
— Espera! Tem algo estranho! — disse Hoopoe, segurando o cubo.
— O que é? — perguntou o reitor.
— Eu não sei. Tem algo…
Nessa hora o lado do ar também começou a brilhar, numa luz azul clarinha.
— O quê? — Phenex pareceu chocado. — Mais um?
Em seguida, o lado da terra e da água começaram a brilhar também, em luzes marrons e verdes.
— Mas como é possível? — Phenex ficou ainda mais chocado.
— Clara, isso não era pra acontecer?
— Mas é claro que não, Renato. É normal ter apenas um elemento com alta afinidade. Os outros ainda são acessíveis, mas ainda assim…
— Não acredito! — Os olhos do reitor estavam completamente arregalados.
Hoopoe já tinha largado o cubo no chão e se afastado.
— Os elementos escuridão e luz também se ativaram! — disse ela, com espanto.
— Clara — disse o reitor —, quando mesmo que vai ser a tercina dele?
— Daqui a duas semanas e alguns dias.
— Eu estarei lá para assistir.