Pacto com a Súcubo - Capítulo 36
Renato estava no alto de uma árvore. Dormia sobre um calibroso galho, com os ombros apoiados no tronco. Uma corda, que trouxeram na mochila, dava voltas em torno de seu abdome e em volta do galho, mantendo-o bem preso.
Clara dormia num galho ainda mais alto, na copa da árvore. Acima dela, uma lua gigantesca, avermelhada, brilhava sobre um fundo escuro salpicado de estrelas.
Volta e meia, um animal passava embaixo, no solo. Farejava, olhava em volta, e seguia seu caminho, procurando uma refeição fácil. Alguns eram gigantescos, como caracóis-pescadores, escorpiões do desespero ou lobos-negros. Esses últimos eram os piores. Por sorte, não escalavam árvores.
Havia muitos insetos também. Antes de dormirem, Clara vasculhou por todo o terreno para se certificar de que não tinha nenhuma colméia de abelhas. Se tivesse uma por perto, teriam que ficar o mais longe possível. Ao contrário da maior parte dos animais da Floresta Perdida, elas não eram gigantes. Tinham o mesmo tamanho que na terra, mas eram caçadoras ativas e quando avistavam uma presa, milhões delas se juntavam para cravar seus ferrões venenosos e matar a vítima. Não morriam após o ataque como as abelhas da terra. Depois comiam o animal inteiro, deixando apenas as partes duras ou não comestíveis, como ossos, pelos, unhas ou garras. A rainha comia primeiro, é claro. Um único enxame poderia acabar com um caracol-pescador em menos de uma hora.
Renato era um rapaz acostumado a dormir sozinho em uma cama de casal. Mexia-se muito durante a noite e, como imaginava, teria problemas para dormir sobre um galho de árvore, não importava o quão calibroso fosse. Ele rolou para o canto e caiu. Acordou com a dor no abdome e o puxão da corda. Estava tão alto que sequer viu o chão, apenas o escuro infinito.
Se contorceu todo, tentando voltar para a parte de cima do galho. Ficar ali, caído, pendurado pelo abdome, estava deixando-o tonto. Conseguiu se ajeitar.
Assim que estava na parte de cima do galho de novo, ajeitou a corda para aliviar o incômodo no abdome. Olhou para o alto e viu uma parte da lua, por entre os espaços das folhas. Suspirou.
— É linda, apesar de tudo.
Desejou que Clara estivesse ali junto dele, mas ela havia escolhido um ponto mais alto da árvore porque, segundo ela, se alguma ameaça se aproximasse, ela veria com mais facilidade.
— Até que faz sentido, mas ainda assim é solitário.
O cheiro de carne podre estava mais forte. Isso significava que estavam bem perto do cemitério, o que trazia outro problema: carniceiros voavam por perto. Um já tentara fazê-lo de almoço antes e não foi muito agradável. Também significava que estavam, finalmente, perto da Masmorra das Luzes.
Pensou em Mical e Jéssica. Queria saber se elas estavam bem. Ficou imaginando mil coisas que poderiam dar errado: A Cruz do Atalaia poderia encontrá-las; ou talvez…
— Abigor. Tomara que ele não faça mal a elas.
E, pra piorar, lembrou dos assassinatos em série que estavam acontecendo na cidade. “É possível que agora mesmo alguém esteja morrendo nas mãos dele”. Tudo parecia tão perigoso e ameaçador na terra que fazia ela parecer não muito diferente do Inferno.
— Arimã, hein? O irmão esquecido de Deus.
Tentou enviar seus pensamentos a ele, como já fizera antes, mas não obteve resposta. Arimã estava totalmente calado desde que Renato chegara ao Inferno.
“Eu consegui vencer Satanakia.” Sentiu um pouco de orgulho. Ainda estava dolorido e, dependendo da forma que se mexia, sentia uma pontada de dor nas costelas.
Enquanto estava absorto em pensamentos, incapaz de recuperar o sono perdido, viu, passando na frente da lua, aquela ave de rapina monstruosa. Estava muito alto. Estaria seguro ali no galho, oculto pelas folhas. Provavelmente. Por instinto, sua espada apareceu na mão.
Ouviu um uivo fraco. Parecia bem distante e, de uma forma bizarra, bem próximo, como se fosse sussurrado em seus ouvidos. Seus pelos se arrepiaram. Fechou os olhos.
“É só o medo. Não deve ser nada demais.” Quando abriu os olhos, tinha um rosto o encarando, a poucos centímetros dele, flutuando no ar. Era esquelético, com sombras se dobrando a sua volta e algumas quase intangíveis linhas de luz se contorcendo. Tinha expressão do puro sofrimento. Era como se sentisse dor.
No susto, Renato tentou se afastar, e novamente sentiu o puxão da corda, que o manteve no mesmo lugar.
Que tipo de pesadelo seria esse? O rosto fantasmagórico se aproximou, emitindo um sibilo quase inaudível e um uivo distante. Era como o som da brisa; mas também era como um choro de lamento.
Dos pés à cabeça, seus pelos ficaram de pé. Aquele pesadelo que ganhara vida estava se aproximando. Renato o golpeou com a espada, e ela passou por ele como se não existisse, foi como tentar cortar o ar. O rosto nem a notou. Só continuou seu lamento silencioso e se aproximando cada vez mais. Lento, porém imparável.
Então Renato olhou dentro de seus olhos vazios e sentiu profunda pena.
— Meus Deus.
— Não chegou nem perto.
Era Clara que surgira ali, de pé no galho. Ela meteu a mão no rosto do pesadelo e o segurou pelas próprias sombras que se agitavam em volta dele.
— É um espectro.
— Espectro?
— Estamos perto do cemitério, então tem um monte deles.
— Ele está sofrendo?
— Está sim. Bastante.
— Tem como ajudá-lo?
— Não.
Ela ergueu a mão e soltou o espectro, jogando-o para o alto. A coisa sumiu, se misturando à escuridão da noite.
— Há muito tempo, as almas condenadas ao Gehenna tinham que passar pelo cemitério do Inferno; só depois eram conduzidas ao destino final. Quando esse caminho parou de ser usado pelos ceifeiros, várias almas que aguardavam por aqui foram abandonadas e esquecidas. Elas vagam pelo cemitério e a floresta em volta eternamente. Não encontrarão descanso nunca. — Clara suspirou, e bateu a mão uma na outra, como se tirasse a poeira. — Bom, não é como se fossem encontrar descanso no Gehenna também. Aquilo lá é o verdadeiro Lago de Fogo. No fim, o sofrimento sem fim seria a única opção pra essas pessoas, chegando no destino ou não.
Renato se soltou da corda que o prendia ao tronco e ficou de pé. Olhou em volta e viu vários outros espectros, centenas, talvez milhares, flutuando pela floresta noturna, sem rumo, todos com a mesma expressão de dor e desespero.
— Estão todos sofrendo, né?
— Sim.
— É muito injusto. Sofrer para sempre dessa forma não faz sentido!
Clara deu de ombros.
— Não reclama comigo. Não fui eu quem fez o mundo assim. Já peguei o barco andando.
Renato abaixou o rosto.
— Talvez o mundo pudesse ter sido feito de um jeito melhor.