Os Contos de Anima - Capítulo 99
— E então? — Luna subitamente questionou enquanto atravessavam os corredores do palácio — Para onde vamos primeiro?
— Bem, para início de conversa — respondeu o jovem — Tenho quatro missões ainda a cumprir para angariar todos os fundos necessários para minha prótese — ele então ergueu suas mãos, destacando o indicador — Duas delas se passarão em Jungla Iroko, a capital do continente Faeram — ele então adicionou o dedo médio — enquanto que as outras duas se passarão em Concordia, a capital da federação humana.
Na primeira menção, Luna até se mostrou um pouco mais animada, considerando algumas coisas e consultando informações em sua memória, porém, quando Lucet mencionou o segundo lugar, sua expressão se tornou séria.
— Concordia? — a princesa questionou, um tanto incrédula, virando seu rosto a ele ao diminuir seu passo para acompanhar o ritmo do jovem — Tem certeza disso? Você não é procurado por lá, com recompensa e tudo mais?
Lucet suspirou, dando de ombro.
— Infelizmente, isso é um fato — ele admitiu, sua mão sobre a face — Entretanto, já aceitei as missões e por tal, devo cumpri-las, afinal, esse é o jeito mais fácil de conseguir os recursos necessários — Sua mão inconscientemente indo em direção ao ombro desconexo, imaginando o retorno da funcionalidade daquela parte.
— Mas se a questão é dinheiro — Luna interrompeu seus pensamentos — Porque não pede ao meu pai? Vocês estão em uma aliança certo? Tenho certeza que algumas centenas ou milhares de peças de ouro não são um problema para os cofres reais.
O garoto soltou um breve riso, virando sua atenção para a princesa, um largo sorriso decorando suas feições.
— Primeiro que a prótese vai custa por volta de cento e cinquenta mil peças de ouro apenas para angariar os materiais — ele comentou, assustando a garota com o preço — Isso sem falar no preço de produção que, felizmente o mestre Iogi se ofereceu a fazer de graça para poder estudar e testar a técnica de construção em mim.
Sim, obviamente a nação alfae era perfeitamente capaz de produzir uma quantia como essas, afinal, a raça não era reconhecida por seus feitos diplomáticos e mercantes a toa, contudo, considerando que era apenas uma prótese, Luna jamais imaginara que seu preço seria tão alto.
— Ainda assim… — ela tentou contra-argumentar.
— De jeito nenhum — Lucet interrompeu, sua voz firme — Já fui presenteado com coisas demais em minha vida — Sua expressão lentamente se tornou mais pesada enquanto falava, um sorriso gentil pendendo em seus lábios enquanto sua visão se direcionava ao chão — Alguma coisa eu tenho que fazer por conta própria, não acha?
Depois que desenvolveu seu interesse pelo corvo após seu primeiro duelo contra ele, a garota passou a estuda-lo em busca de compreender sua força, bem como sua história. Em suas pesquisas, especialmente ao ler os relatórios elaborados pela guardiã sobre as capacidades do jovem, Luna entendeu que sim, o garoto era abastado em sorte, especialmente devido ao seu fatídico encontro com Kaella.
Contudo, mesmo que não fosse mentira o fato dele ter sido abençoado com as graças da alfae, dizer que ele não havia feito nada em sua vida por si só, isso era um extremo exagero. A princesa abriu sua boca para refutar a fala melancólica do garoto, porém, antes que tivesse a chance de fazê-lo, ele subitamente parou em um frente a uma porta, abrindo-a e prontamente entrando.
— Entre — ele disse sem cerimônias — Sei que já conhece o lugar, afinal, mesmo sendo meu quarto, ainda está localizado no seu castelo.
Sem hesitar, ela adentrou, porém, Lucet dificilmente ficou parado ou deu qualquer oportunidade para o surgimento de uma conversa. Ele moveu-se rápido e, após fechar a porta e fechar as cortinas, destacou uma parte particularmente mais escura do lugar.
— Irei até o ninho, estarei de volta em uma hora no máximo, infelizmente não posso leva-la até lá por sua segurança, do contrário, isso seria muito mais rápido.
A princesa apenas acenou com a cabeça, afinal, não era uma ignorante nos assuntos dessa profissão, especialmente com a presença e extensa documentação compilada pela guardiã, bem como a própria Lybra que a séculos já estudava a organização dos corvos e seus meios.
E assim, após se posicionar acima da sombra, Lucet guiou seu poder arcano pelo corpo como já fizeram tantas outras vezes, sentindo o familiar puxo da dimensão de Noctis antes de, em um piscar de olhos, desaparecer em meio a uma névoa cinzenta.
Mesmo sabendo dos hábitos e técnicas dos corvos, observar um em ação com tantos detalhes era interessante para a princesa. Já vivenciara antes, mas apenas em situação de combate, bem como nas breves demonstrações da guardiã, portanto, não teve tempo de analisar o agir da mana.
Por mais bem estudada que fosse a jovem, ainda assim, tentar replicar o feito do corvo com seu próprio elemento era algo bem complexo. Enquanto manipulava sua energia e formulava mentalmente métodos para imitar a capacidade de transporte das sombras, Luna acabou por severamente decrescer o calor do ambiente. Isto continuou por vários minutos até que notasse o estrago.
Agora, o aposento se encontrava com as janelas embaçadas com o frio, as cobertas repletas de flocos de neve ao passo que todo e qualquer recipiente que continha água ali havia sido transformado em gelo junto com seu conteúdo.
— Aiai — Luna suspirou ao circular sua mana, atraindo o frio para si — A empolgação é inimiga da eficiência, só leva a distrações.
Ela então realizou alguns gestos, manipulando o gelo acumulado com sua aura azulada que reluzia ao redor de seus dedos. Por vezes, os cristais se expandiam e tornavam-se formas geométricas belas e complexas, em outros, eram reduzidos e multiplicados antes de serem colididos uns com os outros, compressos e então combinados em esferas para formar um boneco de neve.
Fazia um bom tempo que a garota não tinha um espaço para si, um momento para aproveitar o silêncio e permitir que sua mente espaireça dos afazeres reais, treinamento, estudos e todas as outras questões que tinha de lidar diariamente desde que atingira a idade apropriada para iniciar os tantos preparativos para seu futuro cargo de liderança na nação alfae.
O quarto onde agora estava não era desconhecido a si. No período em que Lucet estivera desacordado em seu coma prolongado, a garota teve de realizar algumas visitas a guardiã, esta em uma vigília incessante para proteger a criança. Nestas ocasiões, a princesa nunca exatamente prestou atenção ao garoto desacordado, olhando em sua direção apenas brevemente, sempre surgindo no aposento por questões de pura necessidade.
Após dispersar os traços de sua manipulação arcana, a garota então começou a andar pelo quarto, observando os sutis rastros da existência do rapaz. Na mesa onde outrora trabalhava a guardiã, era possível ver agora rastros de escrita sobre a madeira entalhada, bem como de tinta e alguns cortes e danos sobre o material.
No chão, marcas de uma única palma, bem como riscos de unhas desta mesma acompanhando as pontas e as vezes os dedos inteiros. Era possível ver até mesmo ver gotas de sangue ressecado e traços de queimadura sobre o piso, este que era certamente reforçado com toda sorte de proteção.
Um pequeno sorriso conflitante surgiu nas feições da alfae. Ela sabia da história. Para salvar a guardiã no evento que destruiu Elysium, Lucet, naquela altura com meros doze anos, se ergueu em desespero e lutou ferozmente contra um oponente impossível, incinerando sua própria força vital, bem como sacrificando seu braço direito, para acertar um golpe decisivo, partindo o crânio do paladino Alexander com sua garra.
Os esforços que ele fizera desde então para se adaptar a nova realidade de faltar-lhe um dos membros, não deixando que isso diminua sua capacidade, isto era louvável aos olhos da descendente real de Lumina.
Enquanto ela analisava um rastro incinerado particularmente profundo ao lado do pé da mesa, uma presença adentrou seus sentidos, fazendo-a virar o corpo em tremenda velocidade, sacando sua varinha automaticamente, irradiando a ponta cristalina com seu poder azulado.
Em resposta, a nova presença simplesmente aparou seu movimento com a mão, desarmando-a com sua própria ofensiva ao agarrar e torcer o pulso da jovem, instantaneamente forçando-a a dispersar a energia ao ser confrontada com uma escura e viscosa feito tinta que facilmente sobrepujava sua energia gélida.
A intrusa era ninguém menos que Kaella Rubrum, a mãe deste que ela aguardava o retorno, a motivação do grande sacrifício que ela acabara de recordar.
— Ele partiu para o ninho primeiro, correto?
A princesa apenas acenou com a cabeça, não vendo necessidade de dar uma resposta sonora, pensando ao invés disso na dor que estava recebendo.
— Vejo que ele ao menos aprendeu a por prioridades em suas ações — Kaella disse ao liberar o pulso — Peço desculpas, pequena, ossos do oficio e tudo mais.
Luna sorriu, mas chacoalhando a cabeça antes de dizer.
— Sem problemas — ela respondeu com um breve suspiro ao se erguer — Eu que ataquei primeiro, então, não era errado que você se defendesse.
Kaella então tornou sua atenção para a cama, onde prontamente se sentou no momento seguinte, batendo algumas vezes no móvel, indicando a Luna que se aproximasse, o que a garota hesitou por alguns momentos em fazer, mas, por fim, acabou por aquiescer a sugestão.
— Notei, sua alteza, que tens desenvolvido certo… interesse no meu filho — Kaella iniciou o assunto sem hesitar, firmeza e calma em sua voz — Estou correta?
Luna de certa forma já aguardava ser confrontada com este assunto em algum momento, mas, certamente não esperava que isso ocorresse tão rápido. A franqueza e falta de escrúpulo no questionamento da alfae chacoalhou a princesa por um instante, desarmando as parcas defesas mentais que tentou conjurar em preparo para a conversa.
— É… eu… — a voz da garota se tornou quase um murmúrio enquanto ela se encolhia, segurando suas palmas — sim, eu estou.
Kaella achou o gesto ambos engraçado e carinhoso, adquirindo uma certa mensura de pena pela jovem, mas, pressionou seu ataque mesmo assim.
— Você sabe quem e o que ele é extensivamente, correto?
A princesa apenas acenou com a cabeça, um tanto cabisbaixa, mas com mais firmeza em seu movimento, conjurando lentamente alguma coragem em sua mente.
— Então conhece os riscos que ele corre apenas por estar vivo, mesmo dentro das paredes deste castelo, não é? — Ela começou, erguendo uma de suas mãos, chamando a atenção da jovem enquanto enumerava com os dedos — Ele é um meio-sangue, alvo de segregação no mundo caso descoberto — ela então demonstrou o indicador — além de ser um corvo, uma profissão de péssima reputação — ergueu então o dedo médio — e, como bem sabe, já se opôs a Puritas diretamente para me salvar, matando um de seus paladinos mais renomados — juntou a eles o dedo anelar — isso sem falar no fato de que ele é filho de um paladino traidor — e mostrou por último o mindinho.
Luna sabia de todos estes fatos e, para qualquer outra pessoa, um deles já seria problema o suficiente para que evitassem o garoto com todas as forças, mas, ela não uma jovem simples, muito menos tinha medo de represálias de qualquer que fosse o juiz. Erguendo a cabeça em desafio, a garota cravou a vista diretamente nos olhos da alfae, suas orbes ardendo com chamas de rebeldia.
— E?
Um leve, porém, notável e radiante sorriso surgiu nas feições da guardiã, uma miríade de questões em sua mente sendo tranquilizadas com essa única letra.
— Era exatamente isso que queria ouvir — ela acenou com a cabeça — espero que consiga manter essa decisão pelos tempos que virão a frente, os desafios serão numerosos em seu caminho.
Dali a frente, as duas começaram a conversar sobre a vida de Lucet. Sem que o assunto estivesse próximo, Kaella revelou peculiaridades, manias e até mesmo algumas falhas em seu padrão de combate para caso a princesa necessitasse domá-lo. Trocaram por algo que pareciam ser horas ideias, histórias e risos, até que finalmente, as sombras no quanto do aposento se mexeram, e delas, saltou o próprio, um tanto confuso pela visão.
— Huh? — ele avistou-as, um tanto incerto do que ocorria — Mãe? Princesa? O que está acontecendo?
As mulheres se entreolharam, compartilhando um breve riso.
— O que foi? — Lucet questionou — Por que estão rindo?
As duas, entretanto, apenas sacudiram as cabeças em uníssono.
— Não é nada de mais — Respondeu a guardiã — Vá, você ainda tem muito o que fazer filho.
— Exatamente — Luna então se ergueu da cama, liderando a saída do aposento — Vamos, temos vários assuntos a discutir e resolver.
— Okay? — O garoto concordou, duvidoso, seguindo a garota para fora do quarto.
E então, sob a liderança da princesa, o par desatou em direção a um teleportador, indo então para terras distantes. Enquanto isso, Kaella, que ficou sentada sobre a cama, refletia, um sorriso gentil em sua face, tantas preocupações em sua face quanto existiam certezas em segurança em sua mente.
— Lute, meu bravo guerreiro.