Os Contos de Anima - Capítulo 97
— Então você só está interessado em poder? — Lucet rebateu — Sinceramente, é um pouco… como posso descrever… ganancioso demais não acha?
— Ora criança — Lucis deu de ombros — Que espécie de líder seria eu se não procurasse o melhor para meu povo?
Ainda que quisesse contra-argumentar, desta vez não havia falhas na fala do rei. Tal como esperado alguém em posição de liderança, era algo um tanto obvio que o monarca deveria buscar o crescimento e prosperidade de seu povo, por tal, sua ambição em torna-lo uma arma mais poderosa era algo compreensível.
Entretanto, não pretendia ser usado, afinal, quando impôs a clausula dos cem anos, tinha certeza de que iria se libertar das amarras deste contrato e se tornar alguém independente.
Ser um aliado dos alfae não era algo que ele detestava, pelo contrário, considerando suas origens, bem como sua mãe, o garoto não pretendia abandonar o povo de Lumina, ou mais especificamente, aqueles que mais aprecia, então, ser uma ferramenta, ao menos por agora, era algo tolerável.
— Que seja — Lucet resmungou, um tom irreverente em sua voz — Vamos logo com isso pois todos temos muito o que fazer, não?
— Correto — Desta vez, Kaella interrompeu na conversa.
A alfae então baixou seu corpo, sentando em frente a Lucet enquanto segurava o baú contendo o elixir. A estrutura era um tanto curiosa, sendo aparentemente antiquíssima, feita de madeira um tanto esverdeada adornada com algumas flores brancas que cresciam em partes do elemento, além disso, as porções metálicas do objeto pareciam severamente enferrujadas ainda que fossem de um material conhecido por sua durabilidade contra as areias do tempo, que o jovem rapidamente reconheceu graças as suas aulas de metalurgia.
Ele não estava exatamente impressionado com a aparência do objeto fechado a sua frente, mas, sendo este um item precioso o bastante para ser armazenado nos cofres reais, ele certamente continha alguma capacidade extraordinária, portanto, Lucet optou por aguardar a revelação.
Kaella então aproximou sua mão do feixe do baú, sua única tranca sendo uma espécie de botão adornado com alguma joia. Neste instante, Elysia interviu no ato ao se aproximar da guardiã.
— Minha velha amiga — ela disse, um sorriso sereno decorando suas feições — Não está em condições ideais para abrir isso, permita-me desfazer o selo.
Lucet notou que o monarca estava prestes a impedi-la, dando um passo a frente e abrindo sua boca para falar, porém, Kaella sacudiu a cabeça em negação antes de mostrar um de seus tão incomuns sorrisos e responder.
— Isto é uma coisa que faço questão em realizar, vossa majestade — ela então olhou diretamente nos olhos do filho — Ele é meu precioso pupilo afinal, é meu dever como sua mestra executar a completude deste procedimento.
A rainha então retesou, voltando a sua posição original, cravando suas orbes claras no par, observando com atenção os próximos eventos. Luna, seu rosto um pouco enrubescido, dedicou um foco particular para o garoto, coisa que era replicada por seu pai, mas, por motivos de vasta diferença.
Era um tanto incomum para a jovem observar alguém desta maneira. De certa forma, ela compreendia que possuía um certo interesse, talvez até mesmo um fascínio pelo corvo, mas, nunca pudera observá-lo de tão perto quanto fazia agora.
O corpo de Lucet era definido, carregando grande força em seus membros, mas sem exageros musculares. Seu rosto era um tanto delicado se comparado as ferozes imagens pintadas pelas lendas de grandes e poderosos guerreiros, mas, em seu olhar heterocromático era fácil notar que existia a mesma espécie de ferrenha determinação, algo que era incomum de se notar em alguém tão jovem, algo quase mórbido, como se toda sua existência estivesse lentamente se separando de uma rota comum para dedicar cada faísca de sua vida em busca da destruição de Puritas, isso preocupava a garota.
Kaella então moveu seus dedos sobre o cristal límpido que decorava a trava do baú e, no instante em que seu dedo médio tocou a superfície da joia, uma torrente de mana sombria se manifestou ao redor da alfae, todo seu poderio mágico irradiado em uma sombria flâmula tão escura quanto tinta.
Um brilho próprio surgiu no cristal, dando inicio a um combate de resistência entre os dois. Por um lado, a guardiã usava sua imensa reserva de mana para atacar o cristal, fluindo como uma avalanche de poder na direção da pequena estrutura cristalina e, em contrapartida, o objeto devorava avidamente a energia, seu brilho intensificando gradualmente e, como Lucet percebeu mais tarde, mudando de cor.
O processo de abertura levou um tempo, mesmo para a habilidosa Kaella. O cristal absorvia o sombrio poder arcano com voracidade, feliz em consumir tudo que viesse em sua direção. Aos poucos, a expressão da alfae começou a exibir sinais de esforço, uma crescente palidez sendo adicionada a sua própria, ainda assim, a mulher persistia sem sequer piscar ou grunhir, sua respiração tão tranquila quanto como no início do digladio.
Quando as reservas parcamente recuperadas da guardiã estavam prestes a serem zeradas, o cristal que servia como lacre do baú por fim se tornou completamente negro, seu lustro intenso e radiante. Ao passo que a energia da mulher diminuíra, o requerimento da joia decaiu e então, com um som quase indetectável, o selo se quebrou, o cristal se despedaçando, indicando o fim de sua utilidade.
Chegara o momento, uma crescente tensão pairando no ar. O mecanismo de selamento fora formidável, requerendo uma considerável de mana apenas para abri-lo e, provavelmente, algum outro método que o garoto não fora capaz de reconhecer, afinal, Kaella também mexera seus lábios constantemente durante todo o processo.
Foi então que, com um movimento severamente mais lento que o normal, a mulher dispersou sua mana e tocou a madeira florescida diretamente, puxando com muito cuidado a parte superior do objeto. O metal rangeu em protesto, trincas surgindo em sua estrutura metálica, ameaçando uma quebra a qualquer instante.
Da fresta que se criou com a abertura, um potente cheiro floral exalou, uma aura colorida esvaindo. Olhar para a cena era algo surreal para qualquer um dos presentes, mesmo considerando seu histórico fantástico em lidar com os aspectos mais potentes e complexos da magia.
Como se névoa, a aura cor arco-íris rapidamente se espalhou pela sala do trono. Qualquer um tocada por ela podia sentir os poros abrirem e seu corpo ficar mais leve, cheio de energia. A complexão de Kaella, momentos atrás empalidecida pelo uso extenso de seu poder arcano, instantaneamente recuperou-se, um leve rubor surgindo em sua face.
Lucet, que estava diretamente a frente da liberação iridescente de energia, já havia recuperado sua força graças as poções anteriores, mas, a mera aura remanescente do objeto contido naquela caixa já se mostrava suficiente para sobrepor os efeitos dos líquidos, agitando seu corpo e fazendo o talento da vida dentro de si despertar, flâmulas escarlates escapando de seu físico sem que notasse.
A família real, por sua vez, tinha seus próprios comentários e reações diante do acontecimento essencialmente histórico que ali ocorria.
— Que curioso… — comentou a rainha, pensativa — Sabia que este item existia nos cofres reais, mas vê-lo pessoalmente em ação é… Formidável.
— Essa energia! Quanto poder! — a princesa exclamou, incapaz de conter a agitação em seu corpo, bem como a recuperação explosivamente acelerada de sua mana.
— Tellaris, meu pai, como pode esconder isso de mim! — Lucis demonstrou por um breve instante uma mistura de ambos surpresa e indignação, frustrado em sua nova descoberta — Você realmente tomou um elixir, velho trapaceiro!
Com a fala do monarca, ambos princesa e rainha viraram sua atenção para ele, lembrando-se de suas interações com o antigo rei, inevitavelmente concluindo que aquele que um dia fora o líder de Lumina realmente exalava uma intensa e poderosa aura vital, mantendo uma jovialidade surpreendente até para os padrões alfae, conhecidos como eternos em poder e beleza.
Kaella então prosseguiu a abrir mais do baú, cuidadosamente abrindo-o até que o conteúdo interno se revelasse por completo. Quando o fez, uma forte névoa iridescente se formou no salão real, dando ao local uma aparência fantasiosa, fazendo com que todos os presentes vibrassem enquanto seus respectivos poderes eram afetados pela aura vivaz do item.
A essa altura, o talento da vida presente em Lucet já havia sido restaurado a sua completude, todo o dano do combate havendo sido revertido, mas, com a aura intensa exalada pelo elixir, a mesma agora escalava a novos níveis de potência, o corpo do garoto gananciosamente atraindo a energia para si, alimentando as chamas rubras que surgiam ao redor de si, devorando a névoa arco-íris que se aproximava.
Enquanto isso ocorria, o meio-sangue conseguia sentir seu corpo sendo continuamente fortalecido meramente pela presença do item, mas, com um acontecimento curioso sendo executado fora de seu conhecimento. Parte da energia que era atraída para si, adentrava seu corpo no intuito de beneficiá-lo, porém, antes que pudesse fazê-lo por completo, era então forçosamente redirecionada ao seu braço.
O garoto, entretanto, não era capaz de dar muita atenção ao fato. Estar diante de um tônico tão poderoso afetava não apenas seu corpo, que explosivamente recuperava suas capacidades totais, regenerando sua mana sombria e aura da fé em tempo recorde, além de reforçar as capacidades do talento da vida, como também afetava sua mente, que ansiava por embeber o liquido que agora avistava.
Era um frasco um tanto simplório se comparado a tudo que já vivenciara antes, Lucet não pode deixar de concluir. Até onde era capaz de perceber, o objeto era composto de algum cristal simples, provavelmente frágil em composição, protegido pelo baú de estrutura formidável. O recipiente era longo e afinado, o suficiente para um único gole, o que aumentava ainda mais a dificuldade de possível produção, o garoto intuiu.
Quase que como em um transe, o garoto não pode conter seu crescente fascínio pelo item. Ainda que tão simplório em contenção, o conteúdo dentro era o realmente impressionante. Era como observar um metal aquecido até se tornar liquido ou ver o próprio arco-íris condensando em gotas, sua aura imponente contendo a fragrância fresca e intoxicante de tantas coisas diferentes que o corvo sentia grande dificuldade em manter a concentração.
— Vamos, meu filho, você não tem todo o tempo do mundo para ficar admirando o elixir — Kaella o relembrou.
Lucet soltou um breve riso, chacoalhando a cabeça para tentar dispersar os pensamentos randômicos que surgiam. Ele então prosseguiu a esticar seu braço na direção do item, cuidadosamente capturando-o com os dedos antes de aproximá-lo de seu corpo. O frasco continha uma rolha, esta que devido a influência do liquido já havia sido revivida ao ponto de florescer. O garoto então aproximou o objeto dos dentes, mordendo a rolha conseguir abri-la.
No instante que o fez, uma fragrância dezenas de vezes mais potente foi irrompeu do objeto, inundando a sala por um instante. Esta breve fração de tempo foi fatal para os planos dos presente. Todos que foram atingidos pelo aroma ficaram momentaneamente incapacitados, paralisados pelo cheiro da mais pura condensação de vida que qualquer um deles já presenciara.
Assim, nenhum deles foi capaz de reagir quando a marca no braço de Lucet irrompeu em luzes e exibiu o pequeno Draco, um integrante que até agora permanecera dormente, mostrando suas escamas escarlates e corpo diminuto, suas asas com pequenas garras nas juntas que serviam como mãos.
Sem perder um segundo sequer de sua oportunidade, a criatura saltou na direção do objeto iridescente, agarrando-o com todas as forças, extraindo-o dos dedos do meio-sangue antes de aproximar a abertura do frasco a sua boca e, diante da visão atônita de todos os presentes que agora despertaram de sua incapacitação, engolir todo o conteúdo em alguns pequenos goles.