Os Contos de Anima - Capítulo 96
— Eu!? — Indignado, Lucet exclamou.
O garoto sabia melhor do que ninguém a condição atual do seu corpo, entretanto, seja por puro orgulho ou confiança em sua hipótese, o jovem simplesmente se recusava a admitir que necessitária de tamanho auxilio quanto lhe estava sendo oferecido, muito menos que precisaria de proteção.
Agitado, o garoto tentou dar um passo a frente para encarar o monarca. Era um simples movimento, algo que em qualquer outro dia seria a coisa mais fácil do mundo de se fazer, porém, este não era um dia qualquer e, como esperado, ao encostar o pé a frente, o meio-sangue sentiu o corpo inteiro protestar com dores e náuseas, suas pernas chacoalhando enquanto sentia suas parcas forças sendo drenadas quase que instantaneamente, uma palidez severa atingindo-lhe as feições.
Contorcendo a face em indignação, Lucet tentou falar, mas o mísero pensamento de fazê-lo não tinha condições de ser realizado. O jovem sentiu um gosto azedo subir a garganta enquanto o vômito escalava a garganta a velocidades recordes. Rapidamente, ele ergueu a mão e tapou a boca, contraindo os músculos do tronco para tentar segurar, e eventualmente devolver o regurgito ao seu devido lugar.
— O que foi, garoto? Onde está sua bravura de segundos atrás? Ficou enjoado? — o monarca questionou, uma voz de distinta diversão diante do sofrimento do rapaz escapando-lhe os lábios enquanto os mesmos formavam um sorriso zombeteiro — Não consegue ficar de pé?
Em meio a tontura e desorientação que sentia, Lucet ainda conseguia ouvir distintamente as perguntas escarnias do rei que apenas alimentavam as flâmulas iradas que queimavam no peito do garoto.
“Desgraçado!” pensou, forçando-se a endireitar seu corpo e ajustar sua postura, olhando diretamente nos olhos azuis do líder alfae “Só espera eu me recuperar que você vai se arrepender!”
Como se pudesse ler seus pensamentos, Lucis desatou a rir, provocando ainda mais o garoto.
— Ai que medo do pequeno Lucet — ele começou a cantarolar, laçando os dedos ao redor da costa — Tão bravo, tão mal, parece um animal! O que foi passarinho? Vai fazer o que? Me bicar?
O gargalhar do monarca, acoplado com as provocações cantadas elicitaram uma resposta agressiva do rapaz. Lucet até tentou conter sua ira, afinal, mal conseguia dar um passo, quem dirá desferir um ataque contra um oponente tão mais poderoso que ele, mas, no fim, a impetuosidade da juventude tomou conta de seus atos e ele ergueu sua mão à frente do rosto, formando um punho que rapidamente sentiu aquecer, prestes a irromper em fogo sangrento.
Porém, no momento em que tentou avançar contra o rei, contraindo seu braço para o lado do corpo, a porta se abriu. No espaço que surgiu apareceu Luna, varinha em mãos, sua expressão um tanto agitada, pronta para apartar uma aparente briga. Traços de alivio adentraram as feições da garota quando ela avistou que a luta ainda não havia ocorrido.
Mas, o que ninguém ali esperava é que logo atrás surgisse uma mulher que outrora não estava presente na sala do trono ou fizera parte do planejamento.
Altiva, ela caminhava com graça e firmeza, seus passos quase inaudíveis, mesmo que estivesse vestindo trajes combativos. O equipamento era de uma tonalidade verde, bem mais escuro que as roupas que Lucet identificara na última vez que avistara a mulher. Em sua mão direita, um cajado de madeira pálida e retorcida, um orbe violeta em sua ponta, tocava o chão com cada par de passos, criando uma espécie de ritmo em seu caminhar que contrastava com o brilho da esfera.
Seus cabelos eram alvos, brancos como a neve, sua pele quase tão clara quanto, porém, carregando uma distinta tinge de vida em sua palidez, um leve rosado que chamava a atenção ao seu rosto, este afinado como o de um felino acoplado com orelhas pontudas e olhos violetas que emanavam uma luz sábia, porém perigosa. Ao falar, sua voz soou um tanto melódica, quase como um canto, mas suave e baixa, próxima a um sussurro, contudo, inexplicavelmente audível a todos mesmo levando o tamanho do espaço da sala em consideração.
— Lucis — a mulher iniciou o assunto, um distinto tom de insatisfação em sua voz — Acredita este ser o comportamento adequado para alguém de sua estatura, poder e posição?
Uma mão fina coberta por uma manopla ergueu-se as têmporas da alfae enquanto um suspiro era liberado através de seus lábios finos.
— Sei que tens diversas preocupações e estratagemas a considerar enquanto constantemente testas as capacidades do rapaz — ela prosseguiu, traços de cansaço em suas feições — Mas não acha que basta destas frivolidades? Temos coisas mais importantes para lidar do que apenas o potencial deste jovem.
— Elysia, minha querida — o alfae respondeu com um tom mais sereno, porém com o mesmo sorriso zombeteiro no rosto — Não vê que isso é extremamente divertido?
— Pai! — Luna interviu subitamente, sua voz um tanto mais elevado que o normal — Você sabe que ele está machucado e não pode ficar usando esse poder à toa!
— E porque está tão preocupada, filha? — o monarca virou em direção a garota, seus olhos emanando um distinto luzir triunfal, como se um plano em particular estivesse se desenvolvendo espetacularmente bem — Por um acaso gosta do garoto?
Neste momento, até Lucet não pode evitar parar e virar seus olhos outrora enfurecidos na direção da jovem alfae. Diante dos olhares questionadores, traços enrubescidos escalaram o rosto da princesa, dando as suas feições belas um destaque ainda mais charmoso.
Por alguns instantes, ela tentou se defender e pronunciar um retruco, mas, no fim apenas virou os olhos em outra direção, bufando em frustração. Um suspiro longo e suave adentrou a discussão.
— Honestamente Lucis, já chega — a rainha comentou, caminhando em direção ao monarca — Não basta apenas atormentar o garoto, também fará o mesmo com nossa filha? Pensei que havia deixado para trás estes teus traços vergonhosos quando seu pai partiu em busca de aventura.
O meio-sangue reparou um distinto desdém quando a alfae mencionou a identidade do rei anterior, ficando um pouco curioso sobre o assunto, porém, antes que pudesse explorar suas ideias, ouviu os passos suaves da rainha andando em sua direção.
Quando virou sua atenção para ela, percebeu que ainda que seus passos soassem em um ritmo constante, havia uma velocidade anormal em seus movimentos, como se cada passo cruzasse diversos metros além da extensão das pernas da mulher. Após algum tempo, a rainha se aproximou, estendendo uma de suas mãos ao rosto do garoto antes de demonstrar um breve sorriso.
— É bom vê-lo uma vez mais, criança — ela disse em um tom gentil — Fique sabendo que seus esforços para salvar minha filha não foram ignorados — Elysia prosseguiu a se ajoelhar em um dos joelhos até que estivesse um pouco mais baixa que Lucet — Como rainha e como mãe, eu agradeço em meu nome e de Lumina, você salvou muito mais que uma vida rapaz, esteja orgulhoso de seu feito.
O ato enviou Lucet em uma onda de confusão, descrente do que estava vendo, porém, as surpresas estavam longe de acabar.
— Minha querida, era mesmo necessário que apressasse a formalidade? — O monarca suspirou em uma pequena frustração — Estava me divertindo tanto…, mas sim, garoto, sou grato a você.
Lucis então prosseguiu a se ajoelhar da mesma forma que sua esposa, paralisando a mente do corvo ao ponto que ele não podia fazer muito mais que observar o ocorrido, completamente embasbacado com o ocorrido, entretanto, o mais surpreendente de tudo foi quando Luna se aproximou.
Ao invés de se ajoelhar, a garota foi muito mais audaz do que se esperaria da situação, caminhando diretamente até ele, seus olhos abaixados até que estivesse a meros centímetros do rosto do garoto, subitamente erguendo sua face.
Naquele instante, ela podia enxergar refletido naqueles olhos heterocromáticos os seus próprios. Os corações do jovem par dispararam na presença um do outros, fortes traços enrubescidos surgindo em seus rostos, porém, a princesa manteve seu olhar alinhado com o dele, sem retesar um milímetro que fosse e então, em um movimento corajoso e, provavelmente inapropriado, ela rapidamente roubou um beijo do rapaz.
O toque foi veloz, os lábios se conectando por um instante tão mínimo que sequer parecia existir, mas para Lucet, aquilo foi como receber um relâmpago no suave tecido, todos os pelos do seu corpo arrepiando enquanto seu estômago congelava. Se afastando mais rápido do que chegou, mas sem quebrar o contato visual, Luna enfim disse.
— Você salvou minha vida — sua voz era suave, quase sussurrada, ainda mais baixa que a da mãe — Obrigado.
A essa altura, ambos os líderes do continente arcano haviam se erguido, afastando-se por alguns passos. Eles se entreolharam, sinais faciais mínimos sendo trocados a velocidades impressionantes enquanto Lucet e Luna pareciam ter congelado no tempo, sem ao menos ousar respirar na presença um do outro.
Lucis sorriu, triunfante, enquanto que Elysia ergueu a mão novamente as têmporas, um tanto desapontada com a mente ardilosa do marido.
Demorou algum tempo, uma fração cronológica que parecia durar uma eternidade para ambos os envolvidos, mas, quando finalmente este pedaço das horas passou, Lucet, usando o mínimo fôlego que ainda restava em si, disse em uma voz igualmente baixa, contendo sua necessidade por ar sem perceber, jamais ousando perturbar a tempestade silenciosa de emoções que era trocada entre os olhares.
— Sem você, também não estaria aqui.
Muito poderia ser dito, tantas possibilidades e tantas conversas apenas aguardando para serem realizadas, porém, antes mesmo que qualquer um dos dois pudesse dar continuidade, as imensas portas de cristal se abriram uma vez mais, provocando uma reação instantânea do par que se virou de costas um para o outro, parcamente tentando esconder a cena que acabara de ocorrer de Kaella que havia acabado de entrar trazendo um baú e algumas bolsas em seus braços.
Sua percepção infalível, a guardiã facilmente captou que havia algo suspeito ocorrendo no local, mas, ao ver os rostos avermelhados do par, decidiu manter o silêncio, ao invés disso optando pela sensibilidade de abordar assuntos mais urgentes que este mistério ao dizer:
— Lucet, venha cá — ela falou, sinalizando para o garoto que prontamente veio ao seu encontro — Sente-se em meditação, prepare o corpo e a mente.
O garoto rapidamente obedeceu aos comandos, sentando-se sobre o chão de cristal, rapidamente adentrando, ainda que com alguma dificuldade, o estado meditativo que utilizara tantas vezes no treinamento de suas diversas capacidades. Kaella então abriu as bolsas, colocando os conteúdos um a um a frente do rapaz.
Ao todo, eram quatorze frascos coloridos, selados por rolhas de diferentes materiais e fios, as vezes metálicos, outras tecido e até mesmo partes orgânicas. Por último, a alfae colocou cuidadosamente atrás deles o baú, este permanecendo fechado.
— Consuma as poções em qualquer ordem, todas possuem o mesmo efeito, só que com materiais e gostos variantes — ela então ordenou, cautelando em seguida — Mas, quando for tomar uma, quebre o selo rapidamente e a beba o mais rápido que puder, quando exposta ao ar, as propriedades medicinais fortalecedoras se dispersam facilmente.
Lucet assentiu com a cabeça e abriu os olhos, sua respiração e corpo mais calmos antes de dar inicio ao processo. Após isso, tudo foi um borrão para o rapaz. Cada uma das bebidas possuía um gosto peculiar e cheiros fragrantes que confundiam seus sentidos devido a imensa potência vital que continham, entretanto, com os constantes lembretes de sua mestra, ele prosseguiu, tentando o seu melhor para ignorar a enxurrada de estímulos que adentravam seu corpo.
Com um grande esforço e cinco horas de resistência, o garoto superou o processo. Quando o fez, existia uma poça de suor ao redor do seu corpo, suas roupas molhadas enquanto seu corpo enviava uma miríade de sinais, tanto de dor quanto de alívio. Por um lado, o stress de forçosamente aumentar sua vitalidade havia sido intenso, causando uma grande quantia de dano, entretanto, por outro lado, a recuperação de sua vitalidade em tamanha velocidade permitiu com que seu corpo reagisse e absorvesse melhor os nutrientes, explosivamente incrementando sua regeneração e fortalecimento.
Com todas as poções, Lucet já havia se recuperado ao ápice, o que o fez então olhar para o baú restante com certa dúvida. Curioso, ele então virou seus olhos para o monarca, indeciso sobre o que fazer a seguir.
— Minha vitalidade retornou ao normal, me sinto ótimo — o garoto disse, sem quebrar sua postura — Qual o propósito desse elixir?
O monarca então sorriu e respondeu.
— Para suas missões futuras, vai ser extremamente necessário que tenha todo o poder que tiver e, se esse item permitir que meu aliado se torne mais forte — ele então gesticulou em direção a si mesmo — Obviamente eu beneficiarei deste crescimento, portanto, não é um preço tão alto, mesmo que seja algo essencialmente inestimável, afinal, não existem mais que vinte destes em toda Anima, sendo quase impossíveis de produzir mais devido a complexa natureza dos ingredientes.