Os Contos de Anima - Capítulo 95
Em primeiro momento, os olhos do grupo foram direcionados pelas palavras do monarca a focarem sua atenção na guardiã, com a exceção obvia de Lucet que sabia dos intuitos do rei.
Não era nenhuma novidade que dificilmente qualquer coisa ocorria no continente, e especialmente em Alta Lustra, que o alfae não ficasse sabendo. Sendo o líder da raça renomada por seu poderio arcano e sua diplomacia, era de praxe que sua rede de informações fosse igualmente poderosa, se não até mais potente, que seu poder mágico.
Kaella, sendo quem era, não deixou passar este pequeno teste.
— Existem maneiras menos explicitas de questionar minha lealdade, Lucis — uma tinge gélida adentrou as palavras da mulher — Mas, se insiste em fazê-lo, saiba que ela permanece, bem como meu dever ao meu povo, independente da minha posição — a face da alfae se fechou em uma expressão de distinto desgosto —Quanto ao conhecimento dos eventos, creio que ele seja tão limitado quanto o seu.
O monarca soltou um pequeno riso. Seus desejos pareciam cada vez mais distantes de serem cumpridos, contudo, isso não o parecia desanimar. Luna observava o pai agora, e para sua surpresa, ao invés de enxergar qualquer mensura de desapontamento no rei, avistou uma crescente ambição, algo que ela jamais esperava ver ao vê-lo ser rejeitado repetidamente por qualquer que fosse o ser.
— Que assim seja, minha cara guardiã — disse o alfae por fim, cruzando uma das pernas sobre o joelho, unindo os dedos em frente ao rosto antes de olhar para Lucet — Diga-me criança, que relação você possui com os assassinos? Pensei que fosse totalmente oposto a Puritas, especialmente considerando o seu histórico.
Vendo que Kaella não estava disposta a cooperar com sua vontade, Lucis virou suta atenção para o meio-sangue, talvez este fosse mais simples de lidar, mas o monarca não ousava subestimá-lo mais, afinal, com o crescente poderio a disposição do garoto e seus ensinamentos com a guardiã, não seria nada incomum que o jovem pudesse resistir a ofensiva do rei.
— Com exceção daquele que surgiu para os salvar — Lucet disse com algum esforço para focar seus pensamentos na questão atual, lutando contra seu cansaço com alguns suspiros doloridos — Conheço a garota que tentou matar a princesa, bem como o homem que lutou contra minha mãe, entretanto, não possuo qualquer relação além desta — a expressão do jovem gradualmente se fechou enquanto gelo escalava suas próximas palavras — eles são definitivamente meus inimigos.
Ao dizer isso, por um instante os presentes puderam ver um luzir rubro no fundo dos olhos do garoto, um brilho escarlate que trouxe imensa pressão a todos. Lucis, contudo, não foi tão afetado por isso após o encontro que tivera com a figura que surgira anteriormente, ao invés disso, um sorriso lentamente cresceu no rosto do monarca ao passo que sua mente iniciava uma nova leva de planejamentos.
— E quanto a esta nova habilidade que despertou? Quais são os seus limites? Qual a origem? Quais suas aplicações? — o rei pressionou, empolgado.
Lucet, vendo o entusiasmo do alfae, hesitou. Seus olhos involuntariamente se direcionaram para Kaella, esta já esperando que o garoto fizesse isso. A própria não exatamente desejava que isto fosse revelado tão cedo ao monarca, entretanto, diante do acordo realizado entre o par, bem como o conhecimento que a alfae tinha de seu líder, tinha certa segurança de que esta informação estaria em boas mãos, afinal, Lucis não desejaria abrir mão de uma carta como essa. Ela então acenou positivamente, reassegurando o rapaz, fazendo com que ele virasse sua atenção para o alfae.
Lucet então ergueu sua mão, expondo um ferimento em sua palma que, para a surpresa de todos, ainda não havia se recuperado totalmente, mesmo após o garoto tomar algumas poções de cura no caminho. O vermelho da carne e o lustro sanguíneo ainda podiam ser vistos ali. Focando um pouco de sua vontade, o jovem sentiu o local aquecer antes de liberar algumas plumas rubras.
— Este é o talento da vida — Lucet explicou — Uma energia usualmente adormecida que protege a humanidade, os dando uma vitalidade tenaz que explica os grandes números populacionais.
Se esforçando um pouco mais, o garoto sentiu o corpo protestar ao passo que as chamas cresciam em sua palma, eventualmente a cobrindo por completo, tornando a feição pálida do rapaz tão clara que ele parecia um cadáver.
— Como bem sabem — ele continuou — Sou um meio-sangue, parte alfae parte humano e, até hoje, tinha certeza de ter despertado o poder de ambos os lados, mas, aparentemente a aura da fé não é um poder exclusivo da humanidade — O garoto estendeu o braço, evidenciando ainda mais as chamas — Isto é. Por acidente despertei este poder, o primeiro a ser capaz de fazer isso até onde sei, mas, é uma habilidade que todos os humanos possuem.
Uma sombra se instalou nas expressões dos presentes, especialmente na do monarca que relembrava as gravações que observara do sistema de segurança de Alta Lustra antes de intervir com a chegada da figura encapuzada que resgatou os corvos de Puritas e escapou.
— Além destas chamas, que por sinal são extremamente destrutivas contra tecido orgânico — o garoto soltou um curto riso ao lembrar dos golpes do guerreiro rubro que acertaram o corvo de Puritas — Posso também criar réplicas a partir do meu sangue que são essencialmente imortais enquanto minha vitalidade as permitir, e, como o nome informa, esta habilidade também fortalece o corpo, aumentando a estamina e regeneração. O maior problema desta habilidade, entretanto, é que demanda muito da minha força vital.
O jovem então fechou sua mão, extinguindo as chamas. Por um momento, ele cambaleou de um lado para o outro, fazendo com que Luna e Kaella dessem um passo a frente para o segurarem, porém, antes que conseguissem encostar em seu corpo, o garoto se estabilizou e ergueu a mão novamente, sinalizando que tudo estava sob controle.
— Chamas rubras feito sangue que tem eficácia — nisso o monarca soltou um breve riso, soltando suas mãos antes de reclinar sobre seu trono e erguer uma de suas mãos, destacando o dedo indicador — explosiva contra tecidos orgânicos — ele então mostrou o dedo do meio — a habilidade de criar e controlar soldados de sangue — em seguida o alfae destacou o dedo anelar que portava um anel dourado com inscrições reluzentes como o fogo — e reforço físico geral em conjunto com regeneração acelerada, algo a mais?
Lucet se lembrou da conversa que teve com blodren, avistando em sua memória a imagem do ser trocando de lugar com seus soldados. De acordo com a deidade, o garoto seria capaz de fazer o mesmo, entretanto, ele ainda não havia testado a possibilidade e muito menos tinha qualquer ideia de como fazê-lo, portanto, sacudiu a cabeça.
— Até onde sei, não.
Por alguns momentos, um silêncio pairou sobre a reunião. Este, contudo, era apenas sonoro pois as mentes dos presentes certamente tempesteavam com as informações reveladas. Subitamente, Lucis se ergueu de seu trono, uma aura azulada reluzindo ao seu redor.
Runas e círculos, símbolos e formulas começaram a rodear o monarca enquanto ele murmurava algumas palavras indistintas.
— Sendo esta uma habilidade tão recentemente despertada — o rei por fim quebrou o silêncio enquanto executava diversas magias, eventualmente tornando sua vista para Lucet uma vez mais — O ideal seria explorá-la com mais afinco e entender seus limites, contudo, é de meu conhecimento que aceitou algumas missões nos territórios dos Faeram e dos Humanos, correto?
Lucet apenas acenou com a cabeça, sentindo uma onda de náusea ataca-lo ao realizar o movimento, imediatamente se arrependendo de sua pequena preguiça de responder adequadamente.
— Assim sendo, não teremos tempo hábil para que se recupere e treine — Lucis de repente parou, uma preocupação subindo-lhe a mente, analisando o conteúdo da conversa antes de questionar — você disse que as habilidades dependiam da sua vitalidade, não?
— Correto — Lucet respondeu, tentando evitar uma segunda onda de enjoo.
O monarca se virou a Kaella, ordenando.
— Vá a associação dos Faeram, compre toda e qualquer poção que promover os efeitos de aumento vital — o alfae comandou — Além disso, retire um elixir do cofre real, temos de recuperar as forças do garoto imediatamente.
Pela primeira vez na vida do garoto, Lucet viu a mãe, Kaella Rubrum, a guardiã da Lybra, uma mulher destemida e decisiva que nunca travou em qualquer que fosse o desafio, hesitar. Ela parecia querer dizer algo, mas sua boca se recusava a abrir.
Por um instante, uma fração de tempo insignificante e imperceptível, um traço de riso surgiu no canto da boca do rei, uma luz triunfal ardendo em seus olhos, porém, ninguém teve a chance de notar pois logo ele estabilizou sua expressão, dizendo em uma voz imperiosa.
— Os longos anos afetaram seus ouvidos, minha súdita? Ande! É uma ordem — ele então retirou a espada de sua cintura e jogou na direção da alfae que a recebeu com extremo cuidado — Apresente isso e liberarão sua passagem.
Sem pestanejar um segundo a mais, Kaella se virou e saiu a passos apressados, passando pelas imensas portas de cristal que selavam a sala do trono antes de desaparecer.
Em seguida, Lucis se virou para Iogi, suas feições fechadas em uma carranca sombria, mantendo, entretanto, um tom calmo em sua voz ao falar.
— Mestre Gnoma, peço minhas sinceras desculpas pela natureza abrupta de meu pedido, bem como minha falta da devida cortesia, mas — nisso ele apontou com os olhos na direção do meio-sangue — acredito que o rei da terra sob as montanhas irá querer saber desse perigo humano, não acha?
Iogi acenou, os pelos castanhos de sua face balançando, fazendo pequenos sons com o anel metálico que mantinha a trança de sua barba.
— Pois bem — o monarca estendeu sua mão ao pequeno — É bom revê-lo, mas, preciso que retorne ao seu líder e informe-o da situação, além disso — Lucis subitamente retirou um pergaminho de um de seus equipamentos arcanos com um flash de luz ciana antes de acender seu dedo com uma flâmula mágica e escrever por alguns instantes, em seguida enrolando e selando o objeto com um brasão arcano — entregue isso a ele, tenho certeza de que ele saberá o que fazer.
— Assim será, vossa majestade — Iogi, em um raro gesto de reverência, inclinou o corpo para o alfae.
O Gnoma se ergueu e então repetiu o gesto de Kaella, saindo pelas grandes portas antes de desaparecer pelos corredores.
Lucis então se virou para sua filha.
— Luna, minha querida — ele disse, um breve sorriso de ternura surgindo em suas feições — Prepare-se para a viagem, você tem uma dívida a retribuir.
Luna sorriu, radiante e, tal como os outros dois, correu e desapareceu pelos corredores, deixando apenas Lucet que estava um tanto confuso.
— O que é que tá fazendo hein? — o garoto questionou, algumas suspeitas em mente — Acabei de salvar sua filha e já quer manda-la em uma expedição? Não acha que ela deveria descansar ou pelo menos levar a esquadra junto? Aliás, porque é que pediu para minha buscar tanta coisa pra mim? E o que exatamente é um elixir?
— Ora ora, pequeno corvo — o monarca então dispersou sua aura arcana, soltando um breve riso — quanta curiosidade, o que foi? Não confia em mim?
— Sendo bem sincero, não — Lucet retrucou, uma pequena mensura de raiva subindo a sua voz — Da primeira vez que nos vimos, me fez entrar em um contrato, não se lembra?
O garoto não sabia explicar, mas, a forma como o rei agia e falava o irritavam. Sentia como se estivesse tentando pegar uma raposa especialmente ardilosa apenas com a mão. Lucis sorriu, satisfeito.
— Se lhe acalmará, darei as respostas que busca.
Caminhando até o trono, o rei se sentou antes de responder com uma expressão curiosa em seu rosto, como se estivesse observando algo particularmente divertido.
— Em primeiro lugar — ele disse ao erguer o indicador — A recuperação da minha filha é algo que ela deva se preocupar e acredito que ela mesma esteja empolgada para esta viagem, e não, ela não levará a esquadra, afinal, não é ela que precisa de proteção, é você.