Os Contos de Anima - Capítulo 94
O grupo seguiu em direção ao palácio real como solicitado. Iogi, feliz em estar próximo aos seus conhecidos, caminhava a passos largos e alegres, gargalhando enquanto conversava sobre assuntos mais mundanos sobre o sabor de uma nova cerveja que experimentara ou o gosto maravilhoso de algum animal que tivera o prazer de degustar recentemente, afinal, mesmo sendo um dos barulhentos Gnoma, ele sabia muito bem o que e quando dizer.
Kaella, por sua vez, caminhava com a mesma graça de sempre, entretanto, era possível ver que seus movimentos estavam um tanto mais lentos que o usual. O combate contra o corvo de Puritas fora mais exaustivo do que previra e, mesmo com a eventual ajuda de seu filho, lutar contra um oponente tão experiente quanto ele em condições físicas superiores à sua atual fora um verdadeiro desafio.
Luna, ainda que um tanto cansada pelo imenso uso de poder arcano, estava em condições de caminhar com certa tranquilidade e velocidade, entretanto, após algum tempo liderando o grupo, decidiu desacelerar e adotar um ritmo mais cuidadoso, observando aquele que estava obviamente mais exaurido que os demais.
Por último, Lucet era o que mais tardava em acompanhar o grupo em sua jornada. Seu corpo estava tão desgastado que qualquer movimento lhe trazia desconforto, cada contrair e relaxar aproximando a estrutura de seu eventual limite em crescente rapidez.
Utilizar uma energia tão poderosa quanto o talento da vida obviamente teria um custo igualmente alto, ainda mais se considerar o quão novato o garoto, o primeiro a desbloquear esta habilidade, era em seu uso. Trazer os guerreiros rubros a vida em sua primeira liberação descontrolada gastou muito da vitalidade que possuía, em seguida, forçou-se a criar mais um deles, o controlar diretamente e ainda por cima tentar manipular as devastadoras chamas rubras no mesmo dia, isso sim era uma aposta arriscada.
Mas, considerando a urgência da situação, mesmo diante da constante dor e fraqueza que sentia, Lucet não se arrependia de maneira alguma, agora, tinha de buscar maneiras de recuperar a vitalidade perdida, afinal, este não parecia ser um recurso que ele pudesse restaurar com facilidade pois quando incinerou sua força vital pela última vez para salvar sua mãe, acabou caindo em um coma de quase três anos.
O garoto andava cabisbaixo considerando os custos desse combate, bem como as tantas coisas que tinha de explorar para tornar essa nova capacidade em algo viável de se utilizar, por tal, não reparou quando Luna se aproximou e o observou murmurando os planos e lições que aprendera sobre força vital com Kaella.
Por um tempo considerável a garota o acompanhou, silente enquanto o jovem ponderava suas opções e próximos passos. Lucet, por sua vez, tentava acessar cada traço de memória que sua mente contivesse em busca de informação. Sua situação precária exigia um investimento de esforço imediata para sua recuperação.
Lembrando-se da conversa com Blodren, o meio-sangue lembrou de sua promessa para com ele, ser um arauto de sua vontade e trazer a verdadeira forma deste poder à tona, buscando evitar que a corrupção desta energia outrora desconhecida viesse a ocorrer, tal como ocorrera com Faerthalux e a aura que representava.
E então, tudo se conectou em um piscar de olhos.
Lucet subitamente recordou sua conversa com Faerthalux no espaço luminoso. Após incinerar sua força vital quase que por completo, o garoto precisou de três anos sob o cuidado constante da divindade para recuperar e fortalecer tal energia, mas, o importante desta memória é o como.
Faerthalux domina por completo cada possível aspecto e uso da aura da fé, podendo emular levemente as outras forças. Existia a possibilidade de que ele tivesse usado outras formas de energia para curá-lo e isso talvez explicasse a demora de quase três anos para que o garoto por fim despertasse, contudo, ao considerar que sua vitalidade também foi fortalecida, então, era mais provável que a fonte de sua recuperação fosse a própria aura da fé.
Sim, assumir isso era um pouco precipitado, porém, se sua suspeita estivesse correta, então, seu problema estava muito próximo de ser solucionado, mas, para que pudesse testar qualquer coisa, necessitaria de algum tempo para fazer testes e, pelo comando de Lucis, era óbvio que não teria tal conforto, especialmente ao lembrar que ainda tinha outras missões do ninho para cumprir afim de angariar os fundos para a construção de sua prótese mecânica proposta pelo Gnoma que gargalhava a frente.
Um pouco mais otimista diante da perspectiva favorável de sua recuperação, Lucet ergueu a cabeça e finalmente notou que estava sendo acompanhado pela princesa, algo que o fez corar levemente ao notar que estava sendo tão ativamente observado pela mesma e, diante de sua feição mais pálida que o usual, isso o fez parecer até um pouco adoecido, incitando preocupação na garota que logo o questionou.
— Você está bem? — Ela questionou ao se aproximar um pouco mais e pressionar a costa de sua mão na testa do garoto — Não parece estar com febre… Como se sente?
A presença da garota era de certa forma tranquilizante para o jovem e, mesmo que estivesse exaurido ao ponto de desejar colapsar no abraço da inconsciência neste mesmo instante, observar a preocupação dela para consigo o motivou um bocado, extraindo de seu corpo enfraquecido uma mensura de ânimo, bem como um sorriso.
— Bem não é exatamente a palavra que eu usaria para descrever o que estou sentindo — o garoto soltou um breve riso autodepreciativo — Mas, irei sobreviver, e você, como se sente?
Virando sua atenção para Luna, o meio-sangue notou que sua energia estava consideravelmente mais baixa, quase totalmente exaurida e, mesmo que estivesse se recuperando gradualmente com o refinamento da mana natural, ainda demoraria algum tempo para que se recuperasse o suficiente para poder combater novamente.
Ainda que não tivesse nenhuma experiência direta em manipular quantias tão colossais de mana quanto ela, sabia que usar qualquer poder com tamanhas proporções devia ter seu custo e desgaste.
A princesa suspirou em retorno, soltando seus ombros e costas, temporariamente abandonando a postura exemplar que usualmente utilizava, pendendo a cabeça para baixo e rindo baixo por um instante.
— Não posso dizer que estou em perfeito estado — ela então apontou para si com a varinha, objeto este que manteve em mãos por pura precaução — Essa foi a primeira vez que usei tanta mana na vida, é bem desgastante invocar tanto poder assim.
— Uiii poderosa! — Lucet zombou antes de engajar a voz em um falseto e imitar — “Essa é a primeira vez que usei tanta mana na vida”.
O garoto desatou a gargalhar, contendo com movimentos mínimos a dor provocada pelo esforço. Luna, envergonhada, corou levemente antes de socar o ombro do jovem de leve, antes dela mesma começar a rir.
— Ah para vai — ela comentou em meio a risos — Você também não pode falar nada depois de ter invocado aquele esquadrão sozinho, aquilo sim que é poder! Não sei como fez, mas, se souber como controlar aquilo, pode até criar um exército!
Os dois continuaram conversando por mais um tempo, discutindo detalhes do combate, ao passo que, sem que notassem, os outros integrantes do grupo os observavam.
Iogi era o mais descarado nesse sentido, apontando e dando risadas para o, como ele chamava, “casalzinho” em alto e bom tom. Kaella sorria gentilmente, acenando com a cabeça uma vez em aprovação, pensando sobre alguns possíveis futuros, mas sem deixar de ponderar sobre a natureza das possibilidades do novo poder demonstrado pelo filho.
Mas, quem realmente prestava a atenção, mesmo que não virasse sua cabeça para tal nem um centímetro que fosse, era o monarca. Sua mente calculista traçava planos e estratégias de acordo com os relatos que escutava, um ambicioso luzir em seus olhos enquanto executava diversos feitiços para conter os sons e guardar as informações, um sorriso crescendo cada vez maior em suas feições reais.
Após alguns minutos de caminhada, o grupo finalmente chegou a um ponto de transporte mais próximo, ali, Luna se aproximou de Lucet, segurando sua mão para lhe emprestar um pouco de seu poder afim de proteger seu corpo debilitado contra a pressão do transporte. O monarca, acompanhado da guardiã e do mestre Gnoma adentraram o portal primeiro, logo seguido pela dupla.
No momento seguinte, se encontravam em uma das torres do palácio de Alta Lustra. Lá, uma escolta de guerreiros em armadura negra e capa prateada aguardava o retorno de seu líder, lanças em mãos. Lucis acenou brevemente para os mesmos e, sem perder um segundo sequer, sinalizou para o grupo que o seguisse, afinal, tinham muitos assuntos a tratar.
Em pouco tempo, adentraram a sala do trono, tão altiva e imponente, colossal com suas grandes pilastras de metal e cristal, decorados com vitrais que descreviam a história da raça alfae. Ali, uma esquadra aguardava, sempre pronta para defender o rei de qualquer ameaça, esta era conhecida como Pixia, composta metade por homens, estes trajados em armadura verde, portando lanças em suas costas e espadas nas cinturas, e mulheres, estas vestindo sobretudos esverdeados com capuzes que utilizavam na cabeça, ofuscando suas feições, um constante luzir arcano ao redor de seu rosto e corpo.
Ao chegarem, Lucis dispensou a esquadra com um gesto de sua mão, tratando prontamente de discutir os assuntos relevantes.
— Em primeiro lugar, sejam todos bem-vindos a esta reunião emergencial — começou dizendo, assentando-se sobre o trono, este composto de cristal arco-íris que luzia gentilmente ao receber sobre si o monarca — E agora, tratemos de discutir algumas questões, como por exemplo, os danos causados nessa tentativa de assassinato a minha filha bem como este estranho novo poder demonstrado pelo garoto, não acha, minha cara guardiã? Algo que saiba sobre isso?