Os Contos de Anima - Capítulo 93
Um silêncio prolongado pairou por toda Alta Lustra enquanto a população observava a imponente manifestação de seu líder e sua colossal fera. Ao surgir de forma tão repleta de esplendor, bem como a consequente interação com o ser encapuzado que não sofreu nem sequer um único arranhão ao se deparar com as defesas da capital, não era estranho esperar um conflito de proporções cataclísmicas.
Entretanto, diferente do estrago apocalíptico esperado, tudo que ocorreu foi um monologo por parte do monarca, bem como um resgate apressado executado pelo ser que prontamente escapou.
O ar agora está mais pesado que nunca e, diante do silêncio apresentado por Lucis, ninguém ousava sequer respirar alto. Muitas consequências foram previstas e elaboradas nas mentes dos espectadores.
Imaginavam um rugido de ira diante do desrespeito sofrido, bem como uma perseguição frenética que deixaria o cenário em escombros diante do poder que o alfae manifestaria, porém, o que aconteceu foi muito mais calmo em comparação.
O monarca observou a luz que fugia de si, suas mãos cerradas e sua face fechada em uma expressão de ira, mas, ao invés de explodir com poder, a sabedoria do líder deste tão reluzente local o guiou a uma rota muito mais estratégica. Respirando profundamente por um instante, o monarca lentamente retraiu o poder colossal que havia convocado para o combate.
As nuvens tempestuosas e a pressão que a todos ameaçava esmagar gradualmente se dispersou no mesmo ritmo que a besta luminosa aos seus pés diminuía, desaparecendo com o passar dos instantes. Em seguida, o alfae descendeu sobre o solo fragmentado da praça, imediatamente observando o estado de seus súditos, e principalmente, de seus três maiores pontos de interesse.
Balançando levemente a cabeça com um sorriso de aprovação, Lucis dispensou a guarda que circundava sua filha. Os guerreiros sequer precisaram de um comando verbal pois o gesto já dizia tudo, um bom trabalho tinha sido feito e certamente recompensas seriam distribuídas a eles em uma data posterior.
Em seguida, focou sua atenção em Kaella, está tendo se levantado. Ela guardava as espadas curtas em suas bainhas enquanto ingeria uma poção para acelerar a recuperação de sua estamina e mana, partículas luminosas da atmosfera sendo trazidas em sua direção antes de serem absorvidas pelo corpo da guardiã.
— Não imaginava que havia alcançado este nível ainda, Kaella — comentou com um aceno de sua cabeça, uma tonalidade peculiar infiltrando sua voz — Parabéns, é uma ótima adição ao meu povo, anciã.
Kaella, apenas executou uma leve reverência na direção do alfae. Conhecendo o monarca, a guardiã tinha certeza que no momento que esta capacidade fosse revelada, repercussões indesejadas a seguiriam, bem como responsabilidades que ela não tinha o intuito de assumir.
O povo ao redor finalmente contemplou a sequência de eventos, choque decorando suas faces. A grande escuridão manifestada pela líder da Lybra não era qualquer poder, mas uma lei! Talvez não tão potente quanto o poderio tirânico do monarca, mas certamente uma lei genuína!
Todo aquele que alcançasse a maestria de uma lei, automaticamente era elevado ao status de ancião de acordo com a doutrina alfae. Muitos dos monarcas anteriores, bem como mestres arcanos de grande importância para o povo cuja maestria mágica era primordial eram eventualmente elevados a este posto, fazendo então parte da assembleia de anciãos.
Por um lado, era uma imensa honra e prestigio, bem como subsequente responsabilidade, se tornar um, tendo em vista que esta posição tinha a capacidade de vetar as decisões da família real caso desejassem, adquirindo um poder político quase inigualável do povo alfae.
Entretanto, uma vez alcançado, isso trazia ao conferido duas escolhas, e Kaella certamente não queria ter de fazê-las, fato que o monarca claramente notou quando a mulher virou seus olhos, sua expressão demonstrando o conflito interno, na direção do jovem corvo que agora se levantava a grande esforço.
— Isto ainda há de ser decidido, Lucis — a alfae então se virou para o monarca, sua voz adotando uma tonalidade minimamente gélida — Questões mais cruciais se ergueram, não acha?
O monarca apenas sorriu, chacoalhando sua cabeça levemente, dispersando alguns dos planos que já se prontificara em traçar antes de virar sua atenção, por fim, para o garoto que agora disparava adagas visuais em sua direção.
Ele andou alguns passos rumo ao garoto, executando alguns feitiços para avaliar o estado físico do jovem, deparando-se com um resultado intrigante. Ainda que houvesse rastros de mana e aura em seu corpo, os níveis eram tão baixos que eram quase irrelevantes, ao invés disso, uma forma de energia desconhecida fluía ali e, para sua surpresa, rejeitava qualquer tentativa de investigação que o monarca realizava.
Descrente que Lucet conseguisse defender-se de suas técnicas estando tão desprovido de recursos energéticos, o alfae convocou mais poder arcano e realizou encantamentos ainda mais complexos, sua expressão imóvel e indescritível, mas, independente de qual ângulo ele intuísse e comandasse a extração do segredo do rapaz, nada acontecia.
Por alguns segundos ele tentou diversas formas, inclusive forçar a energia a se manifestar sem que o garoto percebesse, porém, quando um traço de sua poderosa mana encostou no ombro direito do garoto, Lucis se deparou com algo que o fez inconscientemente parar seus passos.
No instante em que a energia colidiu com o local, uma flâmula rubra surgiu e, para o choque do rei, erradicou a mana e, em seguida, projetou-se em um colossal incêndio que, em meios as chamas que pareciam ascender do próprio abismo, revelou uma figura trajada em armadura sanguínea, sua pele tão branca quanto ossos, mas sem qualquer traço de velhice.
Este ser estava de costas para o alfae, mas mesmo assim, Lucis sentia uma imensão pressão, ainda que pudesse se manter de pé, mas, quando a cabeça deste individuo se virou, revelando uma porção sua face barbada e expressão imperiosa, o monarca se vira forçado a recuar, um único olho de íris escarlate o avisando que ali não era um território que ele devesse se intrometer. Logo, a visão se dispersou.
Ainda que estes eventos estivesse claros como o astro dos céus para o monarca, ninguém os havia vivenciado. Nem mesmo o próprio Lucet, que parecia ser a origem do fenômeno, notara qualquer diferença em si, apenas observando o alfae que subitamente recuara sem qualquer explicação.
— Cada vez que nos encontramos — ele começou a dizer, se reaproximando, abandonando seus esforços de compreender a força esta nova energia que fluía dentro do garoto — Você apresenta algo mais interessante — comentou com um sorriso curioso em seu rosto — Será que não há fim para as surpresas que irá me trazer, Lucet?
— Tch! — o garoto estalou a língua, uma expressão azeda decorando suas feições enquanto esticava seu corpo, alguns grunhidos de dor escapando sua estrutura — Será que não tem um fim para esse seu exibicionismo não?
O simples ato de retrucar o monarca dessa maneira, usualmente, já era o suficiente para acarretar punições severas. Os ânimos se tornaram momentaneamente pesados, muitos dos presentes irritados com a arrogância do jovem, porém, Lucis não se incomodou nem um pouco, ao invés disso soltando uma alta e calorosa risada.
— Ora garoto — ele gargalhou — Vejo que mesmo tão enfraquecido como está, sua língua não perde a força.
Lucet já tinha engatilhado uma resposta igualmente afiada para o rei, contudo, antes que pudesse sequer pensar em vibrar suas cordas vocais, a terra vibrou e, de um canto nas proximidades, os presentes começaram a ouvir um alto, ainda que abafado, som metálico que parecia tentar rasgar as rochas.
— Honestamente — Lucis sorriu, disparando um olhar entretido na direção do garoto antes de se virar para a fonte do barulho — O dia nunca é entediante com você por perto, pequeno corvo.
Kaella, bem como o restante dos presentes se virou na direção da algazarra sonora e logo, avistaram quando a terra rachou e uma estrutura de metal escovado se ergueu, uma grande broca que rompia o firmamento do local ininterrupta pelos elementos e proteções mágicas.
Esta estrutura logo era acoplada a uma outra de formato oval, ainda que apenas a metade de um da mesma cor. Diversos símbolos luminosos decoravam este objeto curioso, símbolos estes que logo Lucet reconheceu como sendo de origem Gnomica, algo que elicitou um breve sorriso em seu rosto.
Então, quatro abertura circulares surgiram ao ritmo que a broca cessava suas rotações, delas, sons simultâneos de ar pressurizado ecoou quando objetos negros saíram em alta velocidade dali. Ao olhar mais de perto, os espectadores identificaram como sendo arpões conectados a estrutura oval com correntes de metal escuro.
De repente, linhas no formato de um retângulo surgiram próximas a broca. O retângulo formado foi deslocado levemente para frente em seguida, liberando uma névoa branca de gás pressurizado. O som de dezenas de pequenas colisões metálicas então atingiu os ouvidos dos mais perceptíveis, assim, a placa metálica se moveu, suavemente se baixando até que atingisse o solo.
Ninguém conseguia enxergar nada dentro da estrutura, algo que capturou a curiosidade dos alfae com grande facilidade. Enquanto muitos se perguntavam o que estava acontecendo, Kaella subitamente ergueu sua voz ao dizer.
— Ora Iogi, saia logo dai e pare com este espetáculo — declarou com um sorriso em seu rosto.
Uma forte e calorosa risada que parecia vir do centro da mais profunda caverna logo soou em resposta.
A placa de metal então foi decorada com linhas luminosas, diversas delas. Estas, como as anteriores, demonstraram as sessões do metal que em seguida se destacaria e, em um processo que exibia em alto e bom tom a incrível proeza tecno-arcana dos Gnoma, destacou partes do metal para frente até que se formasse uma escada.
Da entrada original então surgiu a figura de um ser de estatura diminuta, carregando em suas vestes tantos bolsos e partes que alguns não conseguiram evitar de imaginar como exatamente alguém tão pequeno carregava tanto peso. Isto, obviamente, incluía os dois machados de combate que carregava em suas costas, bem como a malha metálica e armadura por baixo de seu avental sujo com óleo e outras substâncias.
Suas botas eram grossas, compostas de couro escuro acopladas com uma biqueira e solas de origem mineral. Suas mãos estranhamente grandes para alguém de sua proporção reduzida vestiam luvas de algum tecido igualmente grosso, provavelmente a derme de alguma besta. Ele prosseguiu a bater suas mãos pelo corpo, tirando doses de poeira escura de si antes de bater em sua barba cor de carvalho, exibindo um largo sorriso.
— Me desculpem pela intrusão, ainda mais com essa aparência — ele gargalhou antes de executar uma breve reverência na direção do monarca — Mas sabem bem como funcionam essas coisas, ordens da coroa e tudo mais.
Ele então retirou seu avental e luvas, guardando-os em um de seus tantos equipamentos encantados antes de continuar.
— Estava no meio de uma escavação — ele explicou, entrando momentaneamente no estado mais característico dos Gnoma, a obsessão pela, como eles chamava, mãe rocha — Testando este novo protótipo para ver se ele aguentava a alta pressurização das camadas mais profundas das montanhas — sacudindo a cabeça, ele recuperou o foco e voltou a questão mais urgente — Quando recebi ordens para vir até aqui verificar os acontecimentos mais recentes com a humanidade.
— E imagino que como encontrou nossos postos de transmissão selados, optou por utilizar sua invenção para chegar até aqui, presumo? — Lucis comentou, seu rosto como o de uma criança prestes a pregar uma peça.
— Exatamente vossa Alteza — o Gnoma respondeu com a devida cortesia — Não havia método mais veloz de cumprir minha missão — ele então se virou para Lucet e Kaella — Vocês precisam ver o quão rápido essa belezinha consegue se mover!
Entretanto, Lucis adotou uma expressão fechada, sua voz mais severa, dizendo.
— Não acha um tanto insolente invadir a capital de minha nação desta forma, Gnoma? — uma pressão subitamente assolando o físico do mestre — Quer trazer alguma declaração arrogante como fizera Puritas momentos atrás?
Várias questões surgiram na mente do Gnoma, porém, nenhuma delas foi capaz de impedir que a teimosia e indignação de Iogi fossem freadas quando ele retrucou.
— Venho em paz, como bem sabe majestade — a mão do Gnoma então se moveu ao cabo de um de seus machados — Mas, caso queira guerra, meu povo não hesitará nem por um segundo!
Lucis riu, retraindo seu poder, então declarando.
— Acalme-se mestre Gnoma, estou apenas brincando — ele então se virou, caminhando em direção ao palácio real, erguendo sua voz em um tom sereno — Minha filha, traga nossos convidados para a sala do trono, temos muito a discutir — ele então direcionou sua voz, está agora mais séria para os protetores — Guardas, acionem os mecanismos de reparo e convoquem os engenheiros e arquitetos reais, quero que os estragos sejam reparados até amanhã, no máximo, além disso, invoquem as esquadras Petra e Culnari para ajudarem com a busca de feridos.
— Agora mesmo, vossa majestade! — os guerreiros responderam em uníssono.
Os guardas então desataram a correr em várias direções, rapidamente distribuindo as tarefas em questão.
A princesa, que até este momento observava toda a situação com grande interesse, despertou de seus devaneios e se moveu, indicando a Kaella, Iogi e, com alguma atenção especial, Lucet, para que a seguissem.