Os Contos de Anima - Capítulo 91
Sem perder um segundo sequer, a dupla avançou contra o corvo. O soldado rubro, valendo-se de seu corpo imortal disparou a frente, intuindo servir de empecilho e distração, bem como escudo, para a alfae.
Em meros três passos os oponentes adentraram suas zonas de alcance. Com um salto, a réplica retraiu os braços, encostando-os ao lado das costelas e posicionando o joelho direito para frente, tensionando os membros para atacar. O corvo respondeu com uma postura própria de combate, rapidamente abaixando seu centro de gravidade ao flexionar os joelhos, retesando um dos braços ao passo que o outro era estendido, ambas as mãos abertas, pronto para interceptar qualquer ataque.
Lucet percebeu com facilidade a solidez da postura do oponente. Mesmo sendo poderoso, neste momento ele só podia contar com a indestrutibilidade do físico rubro e o arder das chamas vermelhas que desgastavam muito de sua vitalidade, afinal, a diferença de experiência e técnica era claramente imensa, entretanto, ele não precisar vencer. O golpe decisivo estava nas mãos de sua mãe, sua função era apenas abrir prover a oportunidade para trazer o fim.
A réplica inflou os pulmões ao inalar profundamente, juntando energia para seu movimento, o tempo aparentemente desacelerando. O meio-sangue comandou as chamas, compactando-as ao redor dos punhos até que não fossem mais que uma radiante camada vermelha, uma segunda pele translucida de grande periculosidade.
Kaella, por sua vez, firmou o aperto de seus dedos ao redor do cabo de suas espadas curtas, acumulando força em sua musculatura e observando com total atenção o desenrolar da ofensiva de seu filho, procurando o momento exato para atacar.
Com um grito inaudível o guerreiro iniciou o derradeiro combate, avançando com um disparo de seu punho direito que rasgou o ar, deixando um rastro vermelho por alguns instantes antes de colidir com a defesa do inimigo, mirando um golpe potencialmente letal no rosto do oponente.
O corvo agiu com grande destreza, desviando sua palma para fora do ataque, fazendo parecer por um momento que tinha cometido um erro de julgamento, mas no instante seguinte a mão se moveu em extrema velocidade, deslizando pelo ar feito uma serpente antes de atingir com os dedos a dobra do braço, forçando a ofensiva inimiga a ser redirecionada quase que para si próprio.
Intuindo um segundo ataque, o guerreiro moveu o ombro por puro instinto, mas, este reflexo não passou despercebido pelo mestre de Sofia que abriu sua mão, agarrando o braço a seu alcance antes de puxá-lo violentamente em direção ao solo, virando o corpo do oponente em meio ao ar como se fosse um pano, entretanto, o soldado não desistiu de sua ofensiva, girando o corpo o melhor que pode antes de desferir um chute vertical na direção do crânio do inimigo.
Um impacto supresso ecoou dentro do espaço de chamas azuladas, contudo, diferente da expectativa ou intuito, o soldado infelizmente não atingiu o alvo, colidindo ao invés disso com o braço do oponente que o ergueu com impressionante rapidez, bloqueando com facilidade.
Lucet, entretanto, enxergou uma oportunidade ali, afinal, seu corpo que estava em rota para o solo havia sido parado. Avistando o torso desprotegido, o meio-sangue comandou o ataque.
Cerrando o punho com toda sua força, a réplica desferiu um ataque poderoso que mais parecia um cometa, deixando um rastro radiante de poder sangrento, porém, Chama interceptou o ataque com um próprio, erguendo a perna para golpear o braço, demonstrando tremenda precisão ao esquivar o joelho do dano flamejante, acertando apenas o braço, como também grande agilidade e reflexos ao curvar o tronco o suficiente para garantir que as chamas sequer tocassem um fio de suas vestes.
Após interceptar a ofensiva com grande sucesso, o corvo então retraiu a perna próxima ao corpo antes de liberá-la na forma de um chute frontal, expelindo o soldado rubro que voou por alguns instantes antes de cair rolando no solo, parando a alguns metros de si.
Ainda que não quisesse admitir, o corvo estava impressionado com a habilidade física do guerreiro. Até onde era capaz de compreender, este construto escarlate possuía a mesma forma e capacidade do meio-sangue, com a distinta diferença de ser capaz de usar as estranhas chamas rubras, algo que ele nunca havia antes visto em seus estudos arcanos ou pesquisas sobre a aura.
Seja por simples ameaça ou tática, o garoto era alguém que Chama tinha de reconhecer e levar a sério, ainda mais por ter sido capaz de burlar as regras do contrato. Mesmo que tenha executado suas defesas com aparente facilidade, a realidade era um tanto mais complexa do que ele gostaria de admitir.
Cada golpe do soldado era não apenas rápido e oportuno, como também pesado. O chute que teve de bloquear lhe trincara o osso e, se qualquer um das outras duas ofensivas o tivesse acertado, tinha certeza de que o estrago não seria simples, contudo, antes que pudesse recuperar seu fôlego e reajustar sua postura de combate, Kaella avançou contra si.
Empunhando suas espadas curtas de forma inversa, mantendo-as próximas aos braços ao invés de aponta-las para frente, a alfae executou um corte diagonal ascendente, mirando o rosto do adversário, contudo, ele desviou com relativa facilidade ao simplesmente inclinar a cabeça para trás, escapando do alcance da lâmina.
Mas, com a postura ainda desorganizada, fazer isso o fez perder o equilíbrio por um instante, algo que permitiu com que a guardiã pudesse disparar outra ofensiva, aproveitando o movimento original para executar um chute giratório reverso. Com o impulso do primeiro corte, a mulher então girou as costas, logo seguido pelo quadril, aproximando a perna do corpo antes de finalizar a rotação e disparar o golpe com seu calcanhar na direção do estômago do homem.
Um baque surdo ecoou quando o membro bateu contra a musculatura do corvo com grande força e velocidade, destruindo completamente o equilíbrio do homem, lançando-o para trás com o impacto que era impossível de desviar naquela posição. Em seguida, Kaella girou o corpo rapidamente, voltando a sua postura original e, no instante em que seu pé outrora erguido em ataque tocou o chão, disparou a frente, dando continuidade ao ataque.
Enquanto isso ocorria, Lucet recobrou o controle direto da réplica sanguínea, comandando-o a se erguer, reascendendo as chamas rubras enquanto os danos eram restaurados, drenando um pouco mais da vitalidade do jovem, suas feições já normalmente claras se tornando ainda mais pálidas enquanto leves olheiras começavam a surgir em seus olhos.
Sem demora, o soldado se ergueu, sua estrutura em perfeito estado, chamas compactas reluzindo ao redor das suas mãos, ocasionalmente liberando breves plumas, uma opressiva emoção brilhando em seus olhos rubros, contudo, qualquer plano que tivesse o garoto foi rapidamente descarrilhado.
Subitamente, um brilho dourado alumiou os céus acima do combate. Por um breve momento, até mesmo as luzes de Alta Lustra tiveram sua irradiância rebaixada a meras decorações pelo súbito influxo energético que se manifestou.
O soldado rubro parou seus movimentos e ergueu seus olhos acima, imitando os movimentos de seu mestre, algo que também ocorreu com Sofia, que logo sorriu ao identificar o que ocorria.
No domo celeste surgiu uma grande e complexa formação de círculos, formas e símbolos que Lucet sentia alguma familiaridade com, ainda que não possuísse completa compreensão do que representavam, porém, a necessidade de entendimento não durou por muito, pois logo, a intenção do construto luminoso foi revelada.
Ao ser concluída, a formação começou a brilhar intensamente, pulsando repetidamente, e então, sirenes começaram a tocar. Os alarmes e defesas arcanas da capital de Lumina dispararam a ação, invocando uma miríade de luzes coloridas que surgiam e ascendiam em direção ao invasor.
Torres de cristal espalhadas por todos os cantos da cidade irradiaram tamanho poder mágico que era possível sentir até mesmo o ar se tornar mais viscoso, como se os espectadores estivessem tentando respirar dentro de gelatina.
Como meteoritos, as luzes arco-íris carregaram consigo a força dos elementos, escalando em direção ao céu para intervir na ativação do que quer que fosse o perigo manifestado ali. Sem qualquer surpresa, as defesas da cidade foram poderosas demais para o misterioso invasor, desmantelando a estrutura facilidade.
Mas, quando todos estavam prestes a virar sua atenção de volta para a luta, uma explosão de chamas douradas ocorreu acima, e dela, um feixe de luz descendeu em direção ao solo em uma velocidade assustadora, um cometa dourado flamejante colapsando ao chão.
De repente, o soldado rubro começou a se mexer com vigor renovado, correndo desenfreado na direção do par que agora estava travado em um embate constante.
Salvas de socos e chutes, estocadas, bloqueios, fintas e esquivas se mostravam em impressionante sucessão. O duelo destes corvos atingindo um nível onde poucos seres em Anima eram capazes de pisar em ou igualar. Da posição de vantagem inicial, Kaella decaiu a uma de igualdade, trocando golpes com o oponente com crescente letalidade.
Então, em um movimento inesperado, o corvo de Puritas ergueu sua mão ao céu, um raro sorriso confiante decorando seu rosto barbado. Neste momento, a alfae não conseguiu suprimir seu instinto, freando seu ataque e olhando para cima tentando entender o que é que estava acontecendo.
Lucet que estava do lado de fora conseguira enxergar o perigo, comandando o soldado rubro a se mexer.
Assim, uma sequência assustadora de eventos desenfreados surgiu. O feixe de luz atingiu a barreira azulada e rompeu o domo, atravessando-o como uma faca quente atravessa manteiga. As chamas brancas pareciam estar prestes a engolir o lacaio de Puritas, porém, ao chegarem próximas a mão do homem, elas se tornaram dóceis, rapidamente se transformando em uma longa espada dourada.
Ele agarrou com firmeza o cabo da lâmina, a empunhando com ferocidade em um ataque decisivo, realizando um corte vertical com o intuito de finalizar a ameaça que era sua oponente.
— Pontual como sempre, Nero. — O corvo comentou em voz baixa.
Este parecia o fim, ali, diante da irrefreável lâmina radiante, a famosa e poderosa guardiã de Lybra encontraria seu fim, porém, diferente das intenções de Chama, um rugido furioso cortou qualquer foco e tensão do momento.
— NÃO ENCOSTA NA MINHA MÃE SEU DESGRAÇADO! — Lucet urrou ao comandar a réplica mentalmente.
Uma mão pálida com tons rubros alcançou o ombro esquerdo da alfae, a empurrando abruptamente para o lado e, no instante seguinte, a lâmina dourada cortou o ar, e o braço, da duplicata, reconstruindo sem perceber uma cena que marcara a vida do garoto anos atrás.