Os Contos de Anima - Capítulo 89
Sofia olhou para o meio-sangue, gelo em sua visão enquanto imaginava dezenas de formas de trucidar o garoto. Ele, por sua vez, a ignorou, preferindo focar em suas atividades atuais que já exigiam bastante de sua atenção. Conter, observar e explorar, isso já era o suficiente para preencher seu foco e, mesmo que soubesse de sua capacidade, preferia dar o devido detalhe a cada uma de suas tarefas.
Se olhares pudessem matar, Lucet já teria sido destroçado de tantas maneiras que se restassem gotas de sangue após o final do processo, ainda seria um grande triunfo. O corvo, entretanto, não sabia dos pensamentos da jovem, muito menos se importava ainda que pudesse detectar a hostilidade da mesma.
A luta continuava intensa, cada avanço logo acompanhando de um retrocesso ou contragolpe das duas partes. Era óbvio que suas habilidades físicas estavam equiparadas, o que trazia ainda mais tensão ao conflito.
Um luzir prateado brilhou diante das miríades fontes luminosas que ali haviam quando o homem saltou para um ataque. A distância entre ambos não era maior que dois metros, o que permitia que qualquer ofensiva estivesse ao alcance.
Ele jogou seu corpo em uma postura mais baixa, seus pés deslizando pelo solo intuindo executar uma rasteira, algo que Kaella desviou com facilidade se deslocar para o lado, contudo, no último instante, o corvo contraiu o corpo de uma forma duvidosa, tornando um c inverso, antes de liberar a força de seus músculos em um corte diagonal ascendente quase instantâneo, tão rápido que a alfae não conseguira firmar os dedos em volta do cabo apropriadamente na hora de se defender.
Felizmente, a corvo saltara por reflexo, evitando um golpe que acertar-lhe-ia o pescoço, mas, seu armamento fora desvencilhado, voando para um canto da barreira em um arco antes de cair, audivelmente.
Pela primeira vez na luta, Lucet observou o rosto de Kaella mudar. A face de seriedade se tornara um tanto distorcida e desconfortável, contudo, o garoto ainda conseguia enxergar confiança, mesmo que acompanhada de incomodo. Usualmente, o que se esperaria agora seria um diálogo entre os lutadores sobre como um derrotaria o outro considerando a diferença obvia de habilidade.
Mas, este era um duelo entre mestres, aqui, palavras não eram necessárias, e tais discussões eram absolutamente desnecessárias.
Antes que o homem pudesse se erguer, a alfae avançou, desferindo um soco contra o abdômen exposto do corvo, cuja postura pobre não o permitia qualquer reação ou defesa, recebendo o ataque em cheio, rapidamente colapsando em direção ao chão. A corvo, contudo, não o deu qualquer chance de recuperar o fôlego agora expulso, erguendo sua perna aos céus antes de disparar um chute machado imperioso, mirando o calcanhar no estômago do oponente.
Ele, entretanto, reagiu a tempo desta vez ao rolar para o lado. Mas, qualquer vestígio de esperança de escape fora rapidamente apagado pela mulher. Demonstrando um incrível controle de seus membros, Kaella interrompeu o golpe, pousando seu pé com leveza no solo antes de jogar o peso do seu corpo sobre o mesmo, girar e executar um segundo chute vertical descendente, que forçou o oponente a desviar rolando novamente.
O corvo rolou, porém a alfae logo o seguiu, mais uma vez interrompendo seu golpe no último segundo antes de pousar seu pé, e com sua ajuda, executar uma pirueta frontal, mirando um terceiro golpe vertical, para o qual o corvo não teve escolha a não ser rolar para o lado, e por um tempo, ataque atrás de ataque, Kaella suprimiu as ações do oponente com sequências de ofensivas intimidadoras, fazendo-o constantemente desviar.
Lucet notou o padrão e não pode segurar um gargalhar que chamou a atenção de todos os presentes quando ele disse em alto e bom tom.
— Quem é que é o verme agora, cão de Puritas?
E então, a imensa pressão e tensão praticamente palpável que havia sido construída com a partida emocionante, foi demolida com uma única pergunta que elicitou risos de toda a plateia. Sofia queria trucidar o garoto, seus olhos expelindo chamas a cada vislumbre do sorriso radiante do meio-sangue que ousava zombar de seu mestre.
Luna, por outro lado, ignorou os risos ao seu redor, observando Lucet, seus pensamentos imensuráveis a essa altura.
Na primeira vez que duelaram, o garoto despertara de um coma de quase três anos apenas dias antes, e mesmo assim, conseguiu derrubar sua esquadra e então forçar um empate, mesmo ela estando em perfeito estado. Depois disso, várias foram as vezes que ouvira sobre o jovem antes de finalmente encontra-lo novamente.
Pelo tempo em que ele treinou para readaptar suas habilidades, a princesa não apenas ouviu sobre, como também observou tudo. Em alta lustra, abaixo do monarca e sua companheira, não havia ninguém que tivesse mais autoridade que ela, e, a única que a igualava estava neste momento lutando até a morte contra um agente inimigo, e nem mesmo ela poderia esconder as coisas de si caso a garota desejasse saber.
Então, toda e qualquer informação desse rival que encontrara chegava facilmente aos seus ouvidos, até mesmo seus feitos em outras nações. Neste pouco tempo em que teve a oportunidade de observar o jovem, ela não pode deixar de crescer um interesse nele.
Não sabia ao certo, mas, fosse habilidade ou impetuoso jeito de ser, Lucet era alguém que a divertia, afinal, não ha muito que possa chamar a sua atenção quando se é a segunda pessoa mais poderosa de uma das cinco raças dominantes de anima. Mas este, um meio-sangue que muitos facilmente desprezam e que, sem os cuidados e influência da guardiã, facilmente teria perecido, conseguira sincero respeito da garota.
Para defender as pessoas importantes a si, ele não hesitava em trazer o máximo de seu poder, ligando pouco para consequência ou dano que venha a acarretar, algo definitivamente admirável em qualquer circunstância, porém, na visão da jovem princesa, uma qualidade que ela não encontrava com facilidade.
Ver tais demonstrações em sua esquadra não era estranho, todavia, estas existiam devido a responsabilidade e dever, e não amor. Luna via isso como algo belo, e por vezes, enquanto estudava as capacidades do meio-sangue, não podia deixar de pensar o clássico “E se?”
Não era incomum alguém de sua idade deixar sua mente divagar em questões emocionais, contudo, sua criação como realeza, seu poder e sua autoridade traziam um senso de equilíbrio mais estrito a ela, contudo, não podia negar que ver as distâncias que o garoto estava disposto a atravessar por aqueles que prezava certamente mexia com seu coração disciplinado.
Luna então percebeu algo novo ocorrendo no meio-sangue. O brilho escarlate que luzia em sua lâmina e ao seu redor agora se concentrava, compactando-se em volta do corpo e do armamento.
A porção conectada com a garra tornou-se uma breve extensão, como se uma espada translucida sobrepusesse o equipamento original, aumentando sua versatilidade ao passo que a parte compactada em torno do físico logo acumulou em baixo do rapaz, formando uma poça rubra cujo brilho era ofuscado pelo garoto.
Se lembrando do ocorrido de alguns minutos atrás, Luna inconscientemente tensionou os dedos em volta da varinha, apta a reagir a qualquer instante devido ao seu extenso treinamento de combate. Contudo, sua expectativa foi logo subvertida quando uma onda de murmúrios irrompeu do público.
A garota virou seus olhos para o combate por um momento, e o que viu não foi algo agradável.
O homem conseguira reagir a barragem de golpes, desviando vez após vez até que finalmente, após vinte esquivas consecutivas, encontrara uma brecha para jogar seu corpo em outra direção, posicionando-se em pé quase que imediatamente após alcançar a oportunidade e, diferente de Kaella, ele ainda tinha sua lâmina em mãos.
Avançando com um mero toque no solo, o corvo saltou em direção a alfae, desferindo múltiplas estocadas em uma velocidade impressionante, assemelhando a flexibilidade a que deveria ter um florete. A guardiã, contudo, estava preparada.
Ao todo foram quinze ataques em alguns segundos, todos evadidos com precisão e destreza inigualáveis. Por vezes Kaella desviava com um mero torcer do corpo, outras ao se curvar em alguma direção especifica, e quando estas não funcionavam, pequenos e contidos saltos direcionais resolviam o problema.
Foi, contudo, no décimo sexto ataque que a alfae teve sua dança evasiva interrompida quando o homem disparou um chute na direção do seu joelho mais rápido do que ela fora capaz de desviar, porém, ao invés de acertar o golpe, ele fez algo ainda mais inteligente, usando a ponta de seu pé para atingir a dobra da articulação, desmontando a postura da oponente em instantes.
A mulher não pode resistir a força tão imperceptível da gravidade que, com o mero toque de seus efeitos, a fez desmoronar em direção ao solo. O corvo não a deu qualquer descanso, rapidamente posicionando a lâmina acima de onde estaria o coração, desferindo sua ofensiva derradeira, intuindo encerrar o combate.
Os músculos da plateia tensionaram. Luna ergueu sua varinha, fúria luzindo em seus olhos enquanto acumulava a mana para disparar o ataque mais poderoso que fosse capaz naquele instante, cada fibra de seu ser exalando instinto assassino. Sofia soltou um breve riso triunfal, mas este não durou muito pois o armamento rubro logo se aproximou ainda mais de sua garganta, algo que, mesmo a silenciando, não a impediu de sorrir largamente, o prazer obsceno da vitória iluminando suas feições.
Decidido, todos pensaram, o resultado já estava selado e o destino, firmado em rocha. A morte da famosa guardiã era inevitável, concluíram, aqui, cairia uma das estrelas mais brilhantes de Anima. Os instantes se arrastavam enquanto o metal prateado apunhalava o ar, quase como se estivesse forçando seu caminho através do véu do próprio espaço, as duas mãos do homem por trás do esforço.
O triunfo era inevitável, isso era o que indicavam os sinais, entretanto, mesmo diante da morte certa, um sorriso confiante e sereno decorava o rosto da alfae, trazendo a si uma beleza imensurável que, naquele instante, apenas o corvo era capaz de contemplar.
“É uma pena ter de te matar Tinta…”
Esse pensamento pulou de um neurônio a outro dentro do cérebro do inimigo, todavia, isso não trazia qualquer hesitação ao seu movimento decisivo.
De repente, um forte brilho escarlate irrompeu do solo partido abaixo, banhando os lutadores em luz sanguínea. A temperatura do espaço escalou rapidamente para o homem que mal teve tempo de reagir aos eventos.
O armamento estava a meros centímetros de distância de seu alvo quando algo distinto surgiu como obstáculo, um vulto vermelho que cobriu todo o espaço onde deveria estar a alfae e, quando o corvo olhou, surpresa surgiu em seus olhos que não conseguiam crer no que enxergava.
Ele sentiu seu ataque acertar como esperado, a precisão inegável, entretanto, ao invés de atingir o alvo original, a ofensiva foi aparada por um novo corpo que surgiu, ou melhor, um outro corpo, um pálido e rubro, vestido em trajes que pareciam ser feitos de terra. Diante dele estava o rosto do garoto meio-sangue, o protegido de sua inimiga, mas, distintamente diferente, seus olhos vermelhos feito rubis.
— M-mas… Como!?
O rosto sorriu, e então, ergueu seu dedo indicador e o do meio, juntando-os antes de apontar para fora da barreira protetora, fazendo com que o homem inconscientemente virasse sua atenção para ali. Lá, Lucet observava o combate, uma poça escarlate luzindo debaixo do seu corpo enquanto ele sorria, triunfo em seu rosto. Ele então disse, sem fazer qualquer som, mas certo de que o corvo conseguiria ler seus lábios.
— Para onde é que você está olhando?
Um radiante brilho vermelho, um impacto, o mundo se tornou um borrão, e então, a vista do corvo escureceu.