Os Contos de Anima - Capítulo 86
Trevas. Por um longo tempo, tudo que o garoto fora capaz de enxergar eram sombras e rastros vermelhos. Similar ao passo do corvo, seu corpo parecia estar esticado, se arrastando pelo sombrio infinito que existia entre ele e o destino, seja lá qual fosse, contudo, este logo deixou de existir.
De repente, tudo começou a vibrar e Lucet sentiu cada molécula de sua consciência chacoalhar, ainda assim, dentro da escuridão, não sentia náuseas ou qualquer coisa do tipo e, tal como ocorrera com seu encontro com Faerthalux, o corvo logo entendeu que suas interações com os outros conceitos não passaram de conversas em uma espécie de plano mental, o físico tendo sido deixado de lado durante os diálogos.
Aos poucos, sentiu o fôlego adentrando seus pulmões, esta foi a primeira sensação. Depois de uma experiencia tão marcante quanto o domínio de Blodren, era quase impossível ignorar a própria vitalidade. Tão pequeno diante de algo tão gigantesco, e ao mesmo tempo, agora tão distintamente grande diante do resto do mundo. Seus pensamentos não se referiam especificamente a tamanho físico, mas a noção de estar vivo, de ter sobrevivido a tanto e ainda assim estar de pé.
A segunda sensação foram os batimentos de seu coração. Mesmo inconsciente, o órgão permanecia fiel à sua função, trabalhando ininterrupto. Conseguia notar o sangue fluindo apressado por suas veias se prestasse um pouco de atenção, uma detecção um tanto curiosa.
Então, o peso do mundo finalmente recaiu sobre si. O tão familiar e inescapável fato de estar intrinsecamente atado ao solo abaixo de si e, após alguns momentos de desconforto, outras sensações rapidamente floresceram em sua mente, trazendo ao cérebro diversas informações que situavam e descreviam algo que ocorrera enquanto estava distante.
Estranhamente, a primeira desta segunda leva sensorial foi o inalar de um cheiro oleoso e queimado, como se uma lamparina antiga queimasse perto de si, bem como um estranho aroma familiar e férreo. Em seguida, detectou calor, alta e constante temperatura ao seu redor, depois, sentiu o chão abaixo de si molhado, viscoso e morno.
Mesmo sem abrir os olhos, por puro instinto e acuidade sensorial, notou que havia alguém sobre, ou no mínimo muito próximo a si. Lucet pensou em alcançar seu armamento, afinal, conseguia sentir a presença do mesmo muito próximo a sua mão, entretanto, não sentia qualquer hostilidade advinda do ser, portanto, escolheu esperar até que pudesse identificar a situação corretamente antes de agir.
Eventualmente, recuperou o controle de seus olhos e lentamente os abriu ao passo que a audição retornou quase que no mesmo instante. A visão de início estava borrada, mas os sons logo o ajudaram a se localizar na situação enquanto ele piscava para que sua vista regressasse à acuidade original.
— Eu já expliquei! — disse uma familiar voz feminina com firmeza — Os ataques não foram culpa dele, ele estava fora de controle depois de ter sido atacado ao me defender.
— M-mas princesa! — uma voz masculina protestou — Os soldados vermelhos, todos eles tinham o rosto do garoto, eles nos atacaram e destruíram nosso equipamento! Isso sem falar no fato de que um deles quase matou um civil.
— Você quer então me dizer… — uma segunda voz feminina interrompeu a discussão, ira gélida laceando suas palavras — Que a vida da única filha do seu rei, vale menos que alguns equipamentos?
— N-não guardiã — a voz masculina tremeu, se esforçando para recuperar sua postura — D-de forma alguma, mas ainda assim, ele tem de ser punido, é a lei.
O chão começou a vibrar ao passo que um lustro sombrio violento começou a invadir o ambiente. A essa altura, Lucet já abrira seus olhos e enxergava a situação. Um grupo de guardas estava demandando sua captura pelos danos causados durante o combate, enquanto que Luna e Kaella o defendiam, usando suas respectivas autoridades.
Ele podia ver razão nos argumentos dos guardas, ações tinham de receber a resposta apropriada, contudo, o garoto não tinha memórias do ocorrido depois do ferimento e antes do encontro com Noctis e Blodren. Temendo uma escalação desnecessária dos eventos, o corvo lentamente se ergueu, atraindo a atenção de todos para si ao fazê-lo.
— Sei que algo ocorreu — ele começou a dizer — E vocês definitivamente devem ter uma razão para estarem reclamando, mas, não lembro de nada que aconteceu — o garoto chacoalhou a cabeça antes de olhar ao redor, notando o estrago feito na praça bem como nos prédios — Além do dano estrutural, houve algum dano real aos cidadãos?
— Felizmente, todos estão bem, mas ainda assim…
— Isso é ótimo — Lucet sorriu, interrompendo o protesto — Se ninguém está realmente ferido, então o máximo que podem cobrar de mim é o dano material, não?
— Não exatamente — O guarda chacoalhou a cabeça — Os danos não foram causados por você ou seus soldados, apenas os nossos equipamentos foram danificados.
Lucet ficou um tanto confuso por um instante, mas prosseguiu sua racionalização.
— Querem me prender porque seus armamentos foram destruídos na defesa do seu povo? Isto me parece algo que era simplesmente inevitável, não?
— Sim, você está correto, porém…
— Então, se estou certo, porque exatamente está exigindo minha prisão? — Ele disse ao colocar a mão em um dos bolsos e soltar um breve riso descontraído — Nem mesmo você concorda com o que está fazendo, acha mesmo que vou simplesmente me render assim?
Kaella, que observava ao lado deu um aceno com a cabeça enquanto que Luna soltou um breve risinho.
— Ainda assim, você é uma ameaça! — O guarda se irritou, apontando o dedo para o rosto de Lucet, a manopla que cobria sua mão caindo em pedaços — Os estragos que causou foram enormes, é nosso dever o apreender e levá-lo a justiça para que pague por seus crimes.
Murmúrios surgiram nos arredores e, mesmo sem fazer qualquer esforço para notar, o garoto logo percebeu frieza nos comentários sussurrados. “monstro” diziam uns, “corvo imundo” comunicavam outros e “aberração meio-sangue” falavam outros ainda.
Se ele, sem qualquer esforço, era capaz de notar os comentários dos guardas e do público que começara a formar um círculo ao redor, não era difícil de imaginar que Kaella e Luna eram igualmente hábeis o suficiente para perceber o ocorrido, entretanto, antes que pudesse agir, o garoto apenas ergueu a mão, sinalizando que parassem ao sentir o fluxo de seus poderes em ação.
Ao invés de desatar uma briga, Lucet lembrou-se de algo um tanto mais importante, e por isso questionou.
— Onde está a corvo que atacou a princesa?
Um guarda tentou responder o questionamento, contudo, Luna foi mais rápida e respondeu, apontando com sua varinha na direção de um aglomerado de serpentes gélidas. No local, abaixo das pilastras, estava presa uma grande besta que rugia, arcos elétricos fluindo inutilmente sobre seu pelo listrado enquanto tentava se libertar. Atada a uma das pilastras estava uma garota que resistia com todas as forças a sua captura, seu armamento sob os cuidados da própria Kaella que o segurava, ocasionalmente observando-o.
O jovem corvo se aproximou em silêncio, olhando para a garota que um dia já considerou como uma rival e até mesmo nutriu, por um curto período de tempo, algumas emoções adolescentes. De fato, não era sua preferência que as coisas tivessem seguido esta rota tão desagradável, mas, ao relembrar o ferimento que sofrera, bem como as palavras obviamente entoadas nas cores de Puritas, Lucet facilmente resistiu a qualquer pena que surgira em relação a garota.
Um pouco cansada de tentar partir as cordas, Sophia parou por um momento para recuperar seu ânimo e fôlego, e neste, avistou uma figura se aproximando de si. Ao erguer os olhos para o rosto da figura, sua face se retorceu.
— Então você sobreviveu, escória mestiça? — ela disse, desprezo e frieza em sua voz outrora tão energética.
Um leve sorriso decorou o rosto do garoto ao relembrar o passado, confiança absoluta em suas próximas palavras.
— Bem mais que isso, Sophia — ele então ergueu seu punho em frente ao rosto — Estou melhor do que nunca, bem diferente do que você vai ficar.
Surpresa surgiu nas feições da garota ao passo que os olhos heterocromáticos lentamente emanaram uma frieza sanguinária, um luzir rubro surgindo nas orbes.
— V-você não ousaria! — ela exclamou, prevendo o perigo.
— Claro que ousaria — Lucet respondeu, chacoalhando a cabeça levemente, curtos risos escapando por entre seus lábios.
— Seu covarde! — ela cuspiu na direção do garoto que desviou com facilidade — Atacando uma oponente desarmada, isso é tortura!
As palavras da garota, entretanto, só serviram para invocar uma pressão ainda mais sinistra de cada sílaba que saía por entre os dentes do jovem, ira laceando o palavreado do meio-sangue.
— Covarde? Tortura? Heh…
Os guardas assistiram atemorizados enquanto o corpo do garoto começou a tremer, risos cada vez mais altos escapando da figura cujo um brilho escarlate constantemente crescia, antes de desatar em gargalhadas que ecoavam pelos arredores, fazendo a plateia sentir uma onda gélida subir-lhes as espinhas.
Lentamente, todos assistiram enquanto a mão cerrada do garoto começou a tremer, estalos audíveis soando enquanto ele a fechava com força crescente.
— Uma lunática de Puritas querendo me dar lição sobre covardia?
Ainda que vestisse preto por todo o corpo, o braço exposto do garoto ficou ainda mais destacado quando sangue começou a fluir da palma perfurada, escorrendo pela roupa antes de pingar em direção ao chão. O liquido irradiava energia, brilhando como fogo, mas um composto não por calor, mas por intensa vitalidade que parecia encher a todos de interminável esperança, bem como incalculável desespero.
Neste momento, ira fluía uma vez mais pelo corpo do garoto. Inconscientemente, seu corpo se conectava com o novo poder, contudo, sem saber como usá-lo apropriadamente, especialmente considerando o quão confusas estavam suas memórias pelas dezenas de perspectivas que fora forçado a assimilar. Assim, tudo que podia fazer era alimentar a energia com as chamas do ódio fervente que nutria por Puritas e qualquer que se envolvesse com ela.
— Tortura vai ser um apelido bonitinho para o que vou fazer com você.
Kaella sentiu seu sangue gelar ao testemunhar a expressão maligna do garoto. O prospecto de crescimento era interessante e trazia grande orgulho a alfae, contudo, ela tinha certeza que permitir este ódio crescer descontrolado desta forma era algo que traria resultados desastrosos, portanto, ela logo agiu, intervindo ao encostar uma mão sobre o ombro desmembrado do jovem.
Mas, independente de qual fosse seu plano, no instante que seus dedos tocaram a região, ela logo recuou ao sentir um calor extremo e anormal da área, acompanhado de um constante e pulsante ritmo. Retraindo sua mão, ela tentou falar, porém, Lucet agiu mais rápido, erguendo seu punho que agora brilhava, envolto em uma violenta chama rubra que distorcia o próprio ar ao seu redor. Ele atacou.
— Então é assim que a famosa guardiã ensina seu pupilo? — Uma voz subitamente invadiu a comoção.
Ignorando qualquer dor que a afligiria no instante seguinte, Kaella passou o braço por cima do ombro do garoto, puxando-o para trás, interrompendo a ofensiva raivosa. Ele prontamente bradou.
— Mãe! Me larga! — ele rosnou — Ela tem que pagar pelo que fez!
Cego por sua ira, contudo, Lucet não enxergou o perigo que acabara de escapar. No instante que fora puxado para trás, Kaella sacou uma de suas espadas curtas, desferindo um corte diagonal para baixo. Um breve e quase inaudível som metálico surgiu, chamando a atenção de alguns dos presentes ao detectarem as faíscas momentâneas.
— Heh, não esperava menos, Tinta.
Ainda que revestida por mana sombria tão densa que parecia estar envolta em liquido, a lâmina da alfae agora se encontrava decorada de uma nova rachadura ao passo que, a alguns metros de distância, coberto pela sombra de uma árvore quase tombada, um homem observava a comoção.
— Nem eu menos de você, Chama.