Os Contos de Anima - Capítulo 85
A criança começou a andar em círculos ao redor de Lucet, observando cada canto com uma atenção assustadora e intimidante. Ainda que dispusesse de uma forma tão perturbadora aos olhos do corvo, cada ação, randômica e caótica como eram, demonstrava a irrestrita liberdade e tremenda energia que continha este ser.
Seus passos, rápidos e curiosos, despreocupados e descuidados, carregavam a mais pura essência da vida. Bravura e oportunidade, ilimitada possibilidade. Assistir o pequeno correr em volta de si transmitia diversas cenas para a mente do garoto, tantos caminhos que seu destino poderia ter adotado, tanta felicidade, bem como imensa tragédia.
Observar os ramos do destino obviamente não era uma tarefa para meros mortais, e ainda que fosse alguém excepcional, Lucet não pode evitar as náuseas que logo surgiram, perturbando seus sentidos enquanto o garoto não era capaz de distinguir exatamente em que tempo estava.
Se sentia espalhado, perdido dentre as correntes miríades que o ser apresentava. Por vezes se via mais jovem, reunido de um casal feliz que vivia em um campo aberto, uma vida longe de conflito e repleta de paz. Outras, se via um escravo jogado de canto em canto por mestres cruéis que desprezavam sua existência, temendo seu poder e ao mesmo tempo castigando seu corpo por se agarrar tão obstinadamente a vida.
Emoções começaram a florir no jovem, tantas que era incapaz de lidar. Lágrimas escorriam de seus olhos enquanto seus dentes rangiam de ira e seus músculos faciais se contorciam em um sorriso.
Enquanto isso ocorria, a criança continuava circulando o garoto, analisando cada tremor, cada flexionar, todas as reações eram claras para o ser que não hesitava sequer por um instante em exibir seu poder.
Digladiando com sua própria mente inundada de temores e alegrias, Lucet usou toda sua força de vontade para dar ordem ao caos por um instante que fosse. Sentia como se estivesse tentando segurar a fúria do oceano com as mãos ou conter a ferocidade dos ventos com uma garrafa, e ainda assim, continuava a tentar.
A necessidade de paz urgia, vivenciar tantos caminhos de uma vez só estava sobrecarregando sua mente e compreensão. Seu corpo lutava para executar as opções que lhe eram exibidas, todas de uma vez, desejoso de explorar as realidades que não o pertenciam, inclusive umas mais especificas.
Neste momento, um certo formigamento chamou a atenção do garoto. A sensação desatara em silêncio, despercebida por um longo tempo, porém, com o passar dos instantes, Lucet não teve escolha a não ser olhar em vão na direção onde um dia houvera um braço. Por um momento, um breve e esperançoso fragmento do tempo, o meio-sangue acreditou que seu membro perdido ainda existia.
Nesta fração temporal, pode detectar a distinta sensação de existência ali. Sua acuidade sensorial era impressionante, mas neste momento, até ela foi enganada. Pode sentir cada fibra muscular flexionar ao passo que os ligamentos contraíam e executavam movimentos, estendendo minimamente a pele que acompanhava a execução, se mexendo de forma que ele teve certeza que ali não havia um vazio, mas sim um punho cerrado com tanta força que chegava a tremer e sangrar, inspirado pela crescente fúria do jovem.
Ele então notou, seus sentidos se estabilizando o suficiente para tal, que nada ali existia, e isto o enfureceu. Seu sangue ferveu, pulmões expandindo, inalando poder e trazendo energia. Uma aura sanguínea começou a fluir ao redor de seu corpo feito uma chama rubra, limpando sua mente por tempo o bastante para que pronunciasse.
— Já chega! — urrou, as chamas irrompendo em potência.
O berro ecoou pela câmara de fibras como um grande rugido, chamando a atenção da criança curiosa que o rodeava. Quando a mesma olhou em sua direção, um largo e, na opinião dele, francamente medonho sorriso decorava seu rosto.
— Muito bem, garoto! — a criança gargalhou — Muito bom mesmo!
Ela então parou exatamente a frente do corvo, satisfação descrita em sua face. Ao fazer isso, as possibilidades cessaram e a consciência do garoto se firmou ao momento, ignorando possíveis passados e futuros prováveis, estabilizando o sofrimento físico que o atingia.
— Não é qualquer ser que tem a capacidade de ver a existência e ainda resistir — a criança continuou — Excelente trabalho!
Ainda que estivesse diante de um conceito, Lucet não conseguiu conter a irritação que crescia em seu peito.
— O que quer comigo!?
A criança sorriu, aparentemente contente.
— O que quero? — ela então colocou as mãos atrás das costas — O que você desejaria se passasse todos os momentos desde sua criação sozinho?
Ele então começou a andar de costas. A cada passo que dava, se aproximava de uma fileira de soldados brancos e, ao fazê-lo, a mesma se desmanchava e retornava a sua forma original de poças de sangue. Cinco passos a criança caminhou, e todo o sangue que surgiu, logo retraiu-se e fluiu em direção ao corpo da criança, sendo absorvido.
A cada absorção, a criança mudava um pouco. Lucet viu, em questão de segundos, toda a sua vida passar diante de si. Cada evento, cada tragédia e, nestes movimentos, o garoto assistiu a criança crescer até que se tornasse uma réplica de si mesmo, vestindo a mesma roupa que anteriormente, só que maior e com a distinta diferença de que tinha dois braços, ainda entrelaçados por trás das costas.
— Me diga, meio-sangue — O adolescente continuou, agora parado e observando as reações do jovem — O que desejaria se ninguém, nem mesmo um daqueles que protege, sequer soubesse que você existe?
Nas palavras da deidade, Lucet pode sentir uma tremenda tristeza e imensa solidão. O garoto, abalado, sentiu um aperto em seu peito enquanto seus olhos lacrimejavam. Estranhamente, ele tinha certeza de que esta era a mesma exata sensação que sentiria caso visse sua mãe chorar, ou algum amigo querido sofrer.
— Depois de tantas eras assistindo esta raça crescer, e eventualmente conquistar um pedaço de Anima para si — ele prosseguiu, um triste sorriso em seu rosto — O que mais eu poderia querer com o único que conseguiu chegar até mim?
Lucet não pode responder. As palavras exuberavam tamanho desapontamento que qualquer coisa que formulasse e tentasse dizer, logo se encontrava trancafiada em um nó de sua garganta.
— Isso irá mudar, claro — o adolescente pronunciou subitamente — Em breve, a humanidade descobrirá a real natureza de seu poder, mas, este será uma versão inferior, um corrompimento, uma deturpação desta qualidade tão esplêndida, tal como fizeram com Faerthalux, um desrespeito.
O adolescente se virou e caminhou mais cinco passos para trás, outras cinco fileiras de guerreiros desapareceram, tornando-se sangue outra vez, este logo absorvido pelo jovem que prontamente cresceu. Desta vez, contudo, a transformação havia sido severamente mais drástica.
As roupas simplistas que vestiam se tornaram uma armadura completa acompanhada de um manto rubro. Suas costas se tornaram mais largas e seu cabelo mais cheio, sua musculatura expandiu enquanto sua altura cresceu um tanto mais em estatura, tornando-se algo próximo a dois metros, ainda que um pouco abaixo.
Mesmo de costas, Lucet podia identificar o surgir de uma barba em seu rosto enquanto uma pressão formidável emanava da existência desta nova forma. Diante deste ser, o garoto agora detectava a real presença que vira nos outros dois conceitos, algo indistinto, porém inviolável, comandando absoluto respeito, tanto que, se ele não tivesse visto as duas formas anteriores, teria imediatamente se ajoelhado.
— O que desejo é um representante — ele então falou ainda com as costas viradas para o meio-sangue, sua voz mais grave e imponente — E um companheiro — ele então se virou, revelando sua aparência atual acompanhado do tintilar das peças de armadura que trajava — Alguém que entenda minha real vontade e possa preservar meu intuito diante das maquinações dos tolos homens e sua ganância infindável.
O homem diante de si era barbado, suas feições ainda repletas de vitalidade, mas com olhos profundos, um escarlate que contemplava toda a existência e não se importava em demonstrar os longos anos que vivenciara. Em um de seus olhos, o esquerdo, uma cicatriz marcava a pele, do alto da testa até o fim da mandíbula.
Ainda que largamente coberta pelas peças metálicas, Lucet também era capaz de detectar que uma grande cicatriz existia no peito do ser, seu tamanho total desconhecido, resultado de algum combate terrível. O garoto sabia, entretanto, que isto era relacionado a ele mesmo de alguma.
Por um momento, o corvo não pode evitar temer o futuro. Que espécie de combate iria enfrentar onde conseguiria um troféu tão perigoso? Entretanto, tomar um fôlego mais calmo, sabia que de nada adiantaria se preocupar, portanto, respondeu o ser.
— Acha certo escolher um meio-sangue como o representante de sua vontade? — ele questionou com um sorriso no rosto — Sou apenas parte humano, sabe disso.
O ser, contudo, apenas riu.
— Preconceitos sem fundamento como este não cabem a alguém da minha estatura — ele disse, caminhando em direção a Lucet, parando a dois passos do garoto — não acha, criança?
Lucet chacoalhou a cabeça.
— Não esperava menos.
O jovem então se ajoelhou diante do homem, o mesmo reagiu de forma afável.
— Escolha correta, Lucet.
Trajado em sua imponente armadura escarlate, o homem, uma radiante coroa em sua cabeça, andou até o garoto, sua vestimenta tintilando brevemente durante o movimento. Ao chegar, pousou sobre o ombro direito do garoto, dizendo.
— Carregarás minha marca, e aqui — ele então apertou os dedos, causando um leve ardor na região por um instante, flâmulas vermelhas luzindo na ponta de seus dedos — Terás o poder das minhas chamas.
O homem então estendeu sua mão ao garoto, ajudando-o a se levantar.
— Grande força reside em seu sangue, imensa sua vitalidade e as bençãos sobre ele concedidas — Ele então se vira, colocando uma das mãos nas costas, descansando a outra sob o pomo ósseo de uma espada atada a sua cintura — Este que corre em suas veias o trará poder e o permitirá se espalhar mais longe do que qualquer um imaginara possível, mas lembre-se…
De repente, o homem se transformou em um dos soldados brancos das fileiras que haviam se aproximado, apenas para tomar o lugar de um deles. Sua voz então soou na mente de Lucet.
— Ele lhe pertence.
O soldado branco então se tornou o homem novamente, suas vestimentas tornando escarlates uma vez mais, suas feições alterando em questão de instantes.
— E onde ele estiver, você também poderá estar.
Um largo sorriso então decorou o rosto barbudo do imponente guerreiro escarlate.
— Agora vá, você tem coisas a resolver do outro lado.
Sentindo um grande peso sobre sua mente, as pernas do garoto bambearam por um momento, o confundindo, entretanto, antes que pudesse organizar seus pensamentos e perguntar sobre o ocorrido, sentiu o mundo escurecer ao seu redor.
No último instante antes de sua consciência ser consumida pelo vazio, ele pode ouvir distintamente a voz do ser se apresentar.
— Aliás, me chamo Blodren, é um imenso prazer acompanhar sua jornada criança.