Os Contos de Anima - Capítulo 80
Por fora, as dezenas de réplicas, bem como o próprio corvo, atacavam desenfreados tudo que estivesse ao seu alcance, intuindo sem qualquer hesitação esfaquear e mutilar o tolo que permanecesse diante de sua percepção e lâminas.
Ainda que em geral formidáveis, os Alfae, bem como qualquer outra raça, apresentava seu grande poder na forma de elites, ou seja, uma parcela pequena da população com tamanha habilidade que era suficiente para suprir a deficiência do resto, porém, isto não apagava esta falta.
Neste momento, a disparidade entre uma elite e o resto da população se tornou mais óbvia do que nunca. Lucet, apresentava, mesmo que aparentemente fora de controle, técnica e força distintas, coisas que o Alfae mediano era incapaz de manifestar sem passar por anos de treinamento com um mestre tão qualificado quanto, por exemplo, a mestra do garoto.
Por tal, quando um grupo de guerreiros com poderio similar ao dele desatou a atacar indiscriminadamente, sem qualquer escrúpulo e usando todos os truques e táticas que Kaella havia ensinado ao jovem, os civis que tiveram o azar de entrarem no raio de ataque dos soldados não apresentaram qualquer chance de resistência.
Seja com chutes, socos ou ataques com a lâmina, os combatentes rubros atacavam para matar, tornando sua ofensiva letal e difícil de bloquear, rápida e precisa demais para os habitantes comuns de Alta Lustra.
Felizmente, a guarda da cidade, ainda que um tanto débil em relação ao garoto, fora capaz de apresentar uma defesa prática e sólida. Dezenas de soldados vestidos em trajes reluzentes, grandes escudos em uma mão e espadas longas em outro, diversas auras mágicas se manifestando enquanto os protetores utilizavam seu poder, assumindo uma formação similar a uma bocarra, se entrepondo em vários pontos a frente dos civis, protegendo-os dos assaltos dos guerreiros escarlates.
Não demorou muito para que o constante som de colisão de metais surgisse, anunciando o início do conflito.
Diferente do que o treinamento rígido que o garoto recebera usualmente proporcionaria, os ataques dos soldados rubros, bem como os do próprio Lucet, eram desordenados, caóticos.
Em um canto se via um guerreiro vermelho atacando um guarda usando chutes e socos quase que desesperados, tentando acertar qualquer canto que fosse capaz com os ataques, em outro, era possível enxergar outra das réplicas atacando com a lâmina escarlate em suas mãos em estocadas, cortes e outras variantes repetidas na tentativa de atravessar o escudo do protetor.
Em direções variadas era fácil enxergar saltos seguidos de ataques aéreos, golpes furtivos de ângulos inesperados, ofensivas frontais, fintas inúteis e muitas outras espécies de táticas que o garoto em algum ponto aprendera. Normalmente, estas seriam usadas de uma maneira mais bem pensada, de uma forma muito mais efetiva que a atual.
Porém, por dentro, a história era bem diferente. Lucet se encontrava em um outro lugar, distante, agora inexistente, muito, muito longe da praça e dos problemas que praguejavam o presente.
Distante, podia ouvir os estrondos de cada impacto de uma luta que não pertencia a si. Nos céus, uma colossal fera de escamas rubras, membros poderosos e poderes fantásticos colidia com um gigante de luz, cada ser com seu respectivo mestre lutando por algo que ele não estava nem remotamente interessado em compreender.
Ao seu redor, escombros e fumaça, destruição inigualável de um lugar que o proporcionou tanto. Em um canto, podia ver as ruínas do que outrora fora o instituo Anansi, paredes colapsadas, o letreiro parcialmente escurecido e derretido, a única coisa restante da estrutura uma quina com um resto de um par de paredes.
Em outro lado, era possível enxergar lojas desmoronando, casas destruídas e até mesmo a moradia de Kaella em chamas, a casa que fora manipulada por mestres Faeram para crescer em um formato especifico, atingindo uma estética surreal a natureza, extinta, cinzas e folhas cingidas preenchendo o cenário, vagando pelo ar como névoa.
Lucet podia sentir sua garganta aquecer ao respirar, seus pulmões protestarem enquanto inalava. Bem, neste momento o garoto captava muito mais que uma única dor.
Seu corpo inteiro parecia queimar, sangue fervente correndo dentro de si enquanto o coração pulsava com tamanha força que ameaçava quebrar o esterno com o esforço. Seus ossos rangiam com cada passo, cada salto, cada golpe. Fibras musculares e nervos se esticavam em contraiam dolorosamente, exercendo o máximo força que a estrutura era capaz de apresentar a cada movimento.
Ainda assim, ele brilhava, neste instante, estava envolto por mais poder do que jamais tivera. Mesmo que o físico ameaçasse colapsar a qualquer instante, perdurando através punições que nenhuma criança deveria razoavelmente resistir, o garoto resistia.
Arremessado diversas vezes nos escombros, golpeado e castigado repetidamente em suas tentativas vãs de subverter este poderio superior, o meio-sangue se erguia vez atrás vez, fazendo a única coisa que podia fazer, lutar.
Lentamente, a silhueta do garoto começou a mudar. Ele sentia como se estivesse sendo sacudido constantemente, o mundo gradualmente se tornando um borrão enquanto a risada do paladino o provocava e ecoava como trovões, invocando ainda mais ferocidade da ofensiva do meio-sangue.
— Ora poderoso meio-sangue — o paladino de face retalhada gargalhava — O que foi? Porque não consegue me acertar? Sua preciosa mamãezinha vai morrer se não fizer nada, sabia?
Um lustro escarlate se apossou do braço esquerdo do garoto, crescendo como um vírus, se espalhando pelo membro até que alcançasse a garra que segurava, infundindo a aura sanguínea no armamento. O equipamento expandiu, aumentando seu tamanho e largura até que se tornasse uma grande espada.
Lucet empunhou a arma com facilidade, sequer sentindo qualquer peso diferente da adaga que já utilizava. A cada corte, rastros vermelhos eram criados no ar por alguns instantes, demonstrando a quantia perigosa de energia por trás de cada ataque.
O garoto se sentia cada vez mais confuso a cada movimento. Uma grande dor tomava conta da sua mente, como se estivesse agarrando seu crânio e tentando-o rasgar em várias direções simultaneamente. Sua vista continuava a piorar e, a esta altura, ele podia vez vários, dezenas de cópias do paladino.
Por mais que os golpeasse com tudo que tinha, usando todas as táticas que conhecia e o máximo deste poder que agora fluía em si, nada adiantava. As defesas do guerreiro eram impenetráveis, ainda assim, ele não tinha escolha, a batalha era necessária e a vitória algo imprescindível.
A guarda da cidade agora estava começando a falhar, enfrentando grandes dificuldades com o súbito aumento de poder do aliado. Eles entendiam a essa altura que algo não estava certo, que o garoto estava fora de controle, especialmente pela maneira como continuava gritava em ira e frustração, atacando de uma forma completamente caótica e descuidada.
Contê-lo deveria ser uma tarefa fácil inicialmente, seus ataques não faziam sentido e eram previsíveis até demais, contudo, até mesmo um ataque previsível pode ser um problema quando o poder por trás dele é grande o suficiente.
Quando a energia rubra começou a fluir pelo armamento, tornando-o uma grande espada sanguinária, o mesmo ocorreu com todas as réplicas, amplificando severamente a capacidade combativa dos guerreiros que lentamente começaram a virar o fluxo do conflito para algo mais favorável a si.
Gradualmente, os soldados rubros começaram a sobrepujar a guarda da cidade. A cada investida ou corte das espadas, os equipamentos dos defensores lentamente deterioravam e, em questão de minutos, já era possível detectar sinais de desgaste que normalmente só existiriam após anos de uso, algumas partes inclusive diretamente quebrando com o impacto das lâminas escarlates.
A guarda se defendia como era capaz, assumindo formações defensivas e evacuando os civis o mais rápido que podiam, assegurando a segurança e bem estar dos mesmos ao máximo de sua capacidade, contudo, a crescente força dos soldados os levou a um estado que sequer eram capazes de garantir as próprias vidas, quanto mais as de outrem, e nesse momento, tudo começou a piorar.
Em uma das dezenas de direções que Lucet era forçado, e habilitado, a enxergar, avistou uma versão do paladino que corria para longe de si, levando Kaella consigo pelo pescoço. A alfae tentava atacar, mas seus esforços pareciam inúteis diante do poder do guerreiro, isto, enfureceu ainda mais o garoto.
— VOLTA AQUI PALADINO DESGRAÇADO! — ele gritou, um som que ecoou como uma multidão em seus ouvidos — VOCÊ NÃO VAI ESCAPAR!
Com um urro, Lucet disparou atrás desta figura, ainda que permanecesse lutando contra todas as outras versões a frente de si após desarmar uma delas. Seu corpo aquecia cada vez mais, talvez fosse irromper em chamas a qualquer segundo, mas isto não importava, tinha de resgatar sua mãe, todas elas!
Seus passos estavam pesados, ainda que caminhasse grandes distâncias com cada um deles. Sentia-se pesado e arrastado, mas o progresso era constante, e, alguns momentos depois, alcançou o paladino fugitivo, jogando seu braço para trás, preparando uma estocada letal que inevitavelmente iria atravessar o guerreiro.
A espada rubra atravessou o ar e, por um instante, uma luz escarlate reluziu em sua visão, o símbolo de uma balança dourada surgindo diante dos seus olhos.
O poder da balança era restritivo, fazendo cada célula de seu corpo tremer e ele sabia, instintivamente, que não deveria matar o paladino ou consequências terríveis aconteceriam, isto o fez hesitar por um único momento, entretanto, seu ódio e desespero eram grandes demais para se importar com as consequências do ato.
Antes, porém, que sua hesitação dissipasse e seu ataque resumisse, uma voz distorcida, uma mistura entre a voz do paladino e uma mais suave e familiar ecoou em seus ouvidos.
— Lucet, já chega!
O ataque, contudo, já havia sido disparado, mesmo que desacelerado pela hesitação. A lâmina escarlate cortou o espaço com um rastro rubro, intuindo destruir o paladino fugitivo a sua frente. Ele já podia sentir em suas mãos a sensação de metal atravessando carne, podia praticamente ouvir o som dilacerante e o cheiro de carne rasgada, apenas precisava cruzar alguns centímetros a mais e mataria o maníaco.
Subitamente, Lucet sentiu uma vibração de energia próxima a si, no instante seguinte, a lâmina rubra chacoalhou, algo colidindo com o corpo do armamento, o empurrando para o lado, desviando o ataque em direção ao solo, cravando a espada na terra que prontamente se fragmentou diante do poder que pulsava nela.
Névoa escura, tão negra e viscosa como tinta, surgiu diante dos seus olhos no momento que seguiu o ataque surpresa. Com sua mente atribulada como estava, o garoto tinha grande dificuldade em se concentrar, porém, diante de um impacto tão significativo, foi capaz de virar sua atenção para o perigo imediato e enxergou a sua frente uma figura estranha, ou melhor dizendo, confusa.
Ele via o rosto do paladino, mas diferente. Suas feições eram afinadas, quase femininas e seu poder era estranho, nem um pouco similar a aura violenta que o guerreiro usualmente emanava. Além disso, Lucet não conseguia exatamente focar sua visão na figura, ao invés, enxergava uma sobreposição de duas silhuetas que constantemente lutavam para entrar no foco de sua visão.
Olhar para esta figura enigmática o dava náuseas e dores de cabeça, erguendo seu braço, agarrando a cabeça para tentar afagar as dores. Lucet rosnava, enraivecido e dolorido, uma verdadeira besta desenfreada e encurralada, emanando um crescente e violento poder.
A fúria em seu corpo apenas crescia, fazendo a luz rubra ao seu redor reluzir cada vez mais. O garoto sacou a espada da rocha abaixo de si e a ergueu outra vez. Seus músculos tremiam e protestavam, mas a vontade de extinguir a existência do guerreiro de Puritas era maior.
O corvo sentia como se tentasse atravessar as profundezas do oceano com cada passo, cada movimento pesado e, de acordo com sua percepção, lento demais, ainda assim, ele insistia em atacar. Com um urro violento, cortou o ar, deixando um rastro rubro por alguns momentos, porém, a figura distorcida apenas virou seu corpo, desviando com facilidade da ofensiva.
Respirando com crescente força, Lucet girou a lâmina, a posicionando na horizontal, antes de girar seu corpo em alta velocidade, mirando um golpe na cintura do inimigo, tentando partir-lhe em dois. Com graça e rapidez, a oponente saltou momentos antes da espada passar em sua posição prévia.
Ele, contudo, não desistiu, girando seu corpo mais uma vez, inclinando o armamento, mirando um corte diagonal na figura que estava no meio do ar.
Esta, porém, rodopiou para frente e, no instante seguinte, a face do garoto se conectou com a rocha, escuridão manchando sua consciência por alguns momentos.
O civil perseguido pelo soldado rubro viu maravilhado quando uma figura surgiu diante de si, desviando dos ataques assustadores com grande facilidade, saltando e então retaliando no instante seguinte com um chute aéreo vertical, golpeando a cabeça do ataque com tamanha força que o arremessou instantaneamente ao solo.
— Pare de lutar, criança, você não está em Elysium, já chega! — a voz da figura insistiu, despertando a parte escurecida de sua consciência uma vez mais, desta vez soando distintamente mais familiar — Não estou em perigo, está tudo bem!
Desperto pelo ardor ininterrupto de seu ódio, Lucet se ergueu, o cenário ao seu redor chacoalhando e induzindo náuseas fortíssimas enquanto tentava estabilizar sua mente que ameaçava entrar em colapso. Cambaleando, levantou, tropeçando algumas vezes, quase caindo, antes de finalmente recuperar o equilíbrio.
— Quem…. — ele conseguiu dizer com grande dificuldade, rosnando as palavras entre dentes cerrados — é… você?