Os Contos de Anima - Capítulo 78
Todo aquele que fosse filho do pó, ou descendente dessa linhagem, sentiu o momento onde o destino de sua raça mudou. Sem que notassem, todos eles se viraram em direção ao garoto, o chamado do sangue sobrepujando quaisquer poderes que tivessem por um mísero instante.
Para os desavisados, aquilo não passou de algo advindo de sua própria vontade, nada mais que um movimento natural que não podia ser mais comum, entretanto, para aqueles de mente afiada e imenso poder, este breve movimento os fez ponderar. Que presságio seria este? Seria este um alerta instintivo de algo terrível por vir? Ou seria este um aviso de boas novas? Quem sabe talvez fosse um chamado de oportunidade?
Não havia canto onde os filhos do pó não pisassem. Independente do motivo, era possível encontrar traços da humanidade onde quer que se olhasse, por isso, aqueles de grande sabedoria e capacidade das outras raças rapidamente compreenderam que algo havia acontecido. Seja por exposição direta, por observação ou por reportes de seus subordinados, estes seres notaram traços.
No coração da árvore-mãe, no continente da mais abundante vida, dentre suas dezenas de milhares de galhos e incontáveis folhas, sentada sobre um trono de madeira que parecia ter crescido da própria árvore para comportar sua realeza, uma certa figura contemplava a informação que recebera de seus súditos com certa preocupação.
— Isso não soa bem — ela disse, sua voz um suave chiado — O que tramam estas crianças agora? — Suas longas e curvas garras negras tocaram os descansos do trono, virando seus olhos, as pupilas em forma de fenda, na direção de um pássaro azulado que descansava em um dos galhos que compunha o salão real — Busque os Ankai, quero respostas sobre isso o quanto antes!
Debaixo das grandes montanhas, dentro das entranhas da terra, no duro e rico território dos mestres da forja, sentado sobre um solitário e desconfortável trono de pedra adornado com uma única jóia acima, cujo outro exemplar não existia em toda Anima, um ser de pequena estatura, grande poder e ainda mais abastada riqueza analisava os numerosos relatos que recebera em questão de minutos, ordenando pesquisas enquanto realizava cálculos e projetava mentalmente o destrinchar deste evento.
— Não existem coincidências — afirmou enquanto esbravejava ordens — Envie cartas aos representantes deles e questione este fenômeno! se não obtermos uma resposta minimamente satisfatória, passe a ordem para todas as forjas, conflito irá surgir e estaremos prontos, estou certo disso! — Revelação então recaiu em sua face enrugada e cheia de pelos, um breve riso escapando seus lábios — Aliás, convoque Iogi, irei precisar de alguém para entrar em contato com as fadinhas, certamente eles devem saber algo.
No centro das ruas pavimentadas com pedregulho, em um castelo cujo quatro poderes governavam em acordos e trapaças, quatro figuras, coroas brilhantes em suas cabeças e vestimentas luxuosas em seus corpos, discutiam assustados o acontecido. Era incomum figuras de seu prestigio e comando terem sua vontade subjugada, um verdadeiro insulto, um ultraje a sua estatura e poder.
— O que foi isso? Precisamos de informações! — disse o primeiro, trajando azul e um brasão cobreado no formato de um falcão em suas costas.
— Estamos sendo atacados! Guardas! Preparar para o combate! — falou o segundo, vermelho sendo sua cor de preferência, um brasão dourado no formato de um leão o decorando.
— Certamente não teriam coragem de nos atacar, não aqui, correto? — comunicou o terceiro, amarelo reinando em sua vestimenta, um brasão negro em suas costas no formato de um cão.
— Isto pode ser uma oportunidade, sugiro que nos calmemos e busquemos saber mais — o quarto se pronunciou, findando o alvoroço, fazendo-os pensar, verde sendo sua cor em destaque, prata colorindo seu brasão serpentino.
Em outro ponto desta mesma cidade, porém, uma figura ponderava o ocorrido de uma maneira diferente. Sentada sobre um majestoso trono trajando uma vestimenta que representava a pureza, tal como seus ideais separatistas, esta líder tinha diante de si dois servos que a reportavam a situação.
— Talvez seja coincidência demais, minha mestra — verbalizou a figura que utilizava as chamas e as trevas como seu poder — Mas na direção em que fomos forçados a observar está a casa dos hereges que são proclamados como eternos, minha aprendiz está lá sob meu comando em busca de destruir a linhagem de seu líder.
— Acha que ela tem alguma coisa a ver com o incidente? — Comentou a figura cuja força existia na luz.
— Existe a possibilidade — respondeu a figura de trevas.
Neste momento, a figura de vestes puras, seu cajado de várias gemas em mãos, bateu com a ponta do armamento no chão, chamando a atenção do par a sua frente.
— Meio-sangue — disse ela, sua voz monótona.
— É claro! — disse a figura que habita em sombras — O pequeno corvo está próximo a sua mãe, provavelmente tem a ver com isso também, ou até mesmo, é aquele que deu origem ao evento.
A figura de roupas alvas apontou seu cajado na direção da que caminhava em trevas e disse.
— Resgate, recupere o meio-sangue.
O ser cujas trevas são força apenas acenou com a cabeça, mergulhando em sombras, desaparecendo como se sequer existisse.
Na casa dos Alfae, o continente da eterna luz, a comunicação foi rápida, em questão de minutos o poderoso monarca recebeu relatos do acontecido e, sabendo agora da situação que se passava na praça central, não demorou muito para que ele deduzisse que algo sério ocorrera com o corvo sob a tutela de sua subordinada. Ele, porém, nada fez ou disse, não precisava, afinal, alguém habilitado já estava a caminho sem precisar do seu comando, além disso, confiava na capacidade de sua herdeira de controlar o combate até a chegada de reforços.
No combate, a fera rugiu em vitória ao dizimar o oponente gélido que ameaçava sua mestra. Seu grande físico luzia com arcos de eletricidade negra, seu pelo levemente eriçado enquanto suas garras cravavam e partiam o solo com grande facilidade.
Todos os filhos do pó foram forçados a olhar na direção do garoto ao passo que Anima ouvira e obedecera seu comando. Sofia, que estava em um transe de aceitação da mortalidade e surpresa da chegada de seu aliado, fora despertada do mesmo ao sentir o sangue tremer em suas veias, sua atenção fixa na figura ensanguentada do garoto.
O vital liquido escarlate agora brilhava com mais intensidade do que antes. Abaixo do corvo, diversas rachaduras se abriam, reluzindo com seu poder dourado e soltando fumo cinzento com a força arcana sombria. Ela podia que ambos os poderes conflitavam, afinal, tal era a natureza deles, pensava ela.
Um poder tão puro e santo quanto o que utilizavam os paladinos de Puritas não podia tolerar existir no mesmo lugar que poderes inferiores, tão mundanos, em comparação a si. Contudo, para o choque da jovem, logo estes se fundiam em uma treva reluzente, tornando-se a escuridão da noite iluminada pelas longínquas estrelas.
Esta nova energia então permeava o solo, cravando sua presença nas tantas rachaduras que se abriam, iluminando a rocha com sua força. Esta mera cena gerou confusão na mente da garota, ainda assim, nem de longe tanta quanto a imagem a seguir.
A poça de sangue radiante então começou a adentrar as fraturas, sendo engolida pela pedra a um ritmo visível. As rachaduras então se abriram, se conectando e expandido em conjunto da fissura anterior que o garoto havia criado, destruindo com facilidade todo o gelo que cobria o firmamento onde todos se mantinham.
Em seguida, ela pode ver o brilho se alastrar nas árvores, partindo suas cascas e as alumiando com as mesmas cores do celeste domo da noite. Se qualquer ser desavisado passasse por aquele espaço neste momento, acharia que a penumbra das longas horas havia penetrado o mundo, tomando vida própria naquele lugar.
Foi neste momento que as luzes começaram a pulsar. Um som abafado e estrondoso ecoando pelo espaço, ritmicamente, lento, mas que com cada soar, fazia o solo vibrar quase que imperceptivelmente, as árvores soltando folhas e levemente se mexendo, como se dançassem.
Ela, porém, não teve a chance de continuar observando os fenômenos pois sua atenção foi logo trazida de volta para o combate quando ouviu mais um altíssimo rugido de seu aliado, um disparo de energia iluminando o céu acima e destruindo outras tantas construções no esforço de impedir um ataque da figura trajada em armadura gélida. A corvo direcionou sua face para o aliado.
— Raizen! — ela disse em um tom mais animado — Nunca foi tão bom te ver! Me defenda por mais alguns minutos, preciso recuperar o fôlego, depois, lutaremos juntos e traremos fim a essa escória.
A fera respondeu com um rugido mais baixo, sua face erguida em grande orgulho, pronto para confrontar o inimigo.
Sofia não perdeu tempo, logo buscando poções e ervas de seu equipamento dimensional, consumindo-as sem demora, acelerando ao máximo sua recuperação, contudo, a oponente não a daria a chance de se recuperar.
Luna observava com um tanto de apreensão a fera que surgira, bem como direcionava um tanto de sua atenção a garota enfraquecida. Estava ali uma chance preciosa de findar a ameaça, mas, com o advento do guardião, a corvo se tornara um alvo difícil de eliminar, isto, entretanto, não foi o suficiente para a desanimar.
Prestando atenção a sua energia, era certo de que ainda a restava poder suficiente para confrontar a besta. Não podia negar seu poder, porém, ainda que fosse poderosa, era apenas uma, portanto, resolvera ampliar seus ataques quantitativamente, intuindo uma sobrecarga da fera a ponto de que falhasse em sua tarefa.
A cada ataque que realizado, a princesa fora capaz de se aclimar a um uso tão extraordinário de seu poder. Desferir tais ataques requeria um controle afiado sobre uma quantia imensa de energia, e sendo ela uma alfae, tal maestria era apenas natural, só era uma questão de se acostumar.
Luna pousou, direcionando mais um ataque em direção a Sofia, forçando a fera a atacar seu construto gelado e se distrair, dando-a tempo para mover sua energia, preparando seus próximos ataques. Ela sabia que algo estava acontecendo com Lucet, e enxergava as mudanças no ambiente, porém, como não conhecia ou podia controlar os acontecimentos, focou naquilo que podia fazer.
Girando uma vez, um construto rapidamente se formou no ar e, com uma estocada de sua varinha, cruzou o espaço para atacar a grande besta, a mesma desviando com alguma facilidade ao saltar para o lado. A princesa seguiu o primeiro ataque com uma segunda ofensiva, saltando para frente antes pousar e seguir o movimento com três cortes verticais em arco na direção da fera, disparando três criaturas frigidas como se fossem flechas, atravessando o ar em.
Abrindo sua boca, a besta se preparou para disparar um rugido na direção de ambos a princesa e as feras geladas, porém, antes que a criatura pudesse reunir sua energia, Luna rapidamente executou um giro seguindo-o com um corte horizontal, direcionando a tempestade em um ataque lateral, golpeando o animal com um golpe gélido no lado direito.
O impacto audível, a criatura rugiu em dor ao ser arremessada em uma árvore, a despedaçando ao colidir. A princesa, porém, não perdeu a chance criada, rapidamente saltando antes de rodopiar no ar, acumulando o máximo de energia possível, arremessando uma fera massiva na direção da besta, causando uma cratera com a batida bem como seu segundo urro de dor seguido de arcos elétricos caóticos.
— Raizen! — A corvo gritou — Maldita! Eu vou te matar!
Tremendo, a garota tentou se erguer para se juntar ao combate, ódio alimentando seus movimentos com força renovada. Não deixaria machucarem Raizen e muito menos se permitiria falhar, a escória Élfica tinha de morrer pela dor que causou.
Sofia agarrou sua lança, penetrando o solo com a ponta para poder se apoiar. Seus músculos e ossos protestavam, anunciando dores a cada centímetro movido, entretanto, neste momento o solo começou a vibrar. As batidas anteriores agora pulsavam em um ritmo veloz, fragmentos de pedra saltando no solo ao passo que as luzes radiavam poder cada vez maior. A garota virou seus olhos na direção do corvo que havia mortalmente ferido, sua expressão atônita no momento seguinte.
Ela viu o garoto de pé, o rombo causado em suas entranhas curado, a única lembrança de sua existência sendo o buraco empapado de sangue em sua vestimenta. Ao olhar para sua face, porém, ela enxergou algo que não esperava. Não havia mais máscara em seu rosto, revelando suas feições originais por ter seu disfarce desativado.
O cabelo castanho, as orelhas levemente pontudas, os olhos heterocromáticos. Diante dela estava uma imagem exata, ainda que um tanto envelhecida, da figura anunciada como um herege meio-sangue, um procurado de Puritas que deveria ser caçado a todo custo, capturado e trazido vivo.
—Você! — ela exclamou assustada, descrença em sua voz — Não pode ser… Você é ele? O meio-sangue?
Lucet, contudo, não a respondeu. Neste instante, ele sequer parecia capaz de entender que ela estava ali, olhando cegamente para o vazio, seu corpo quase imperceptivelmente tremendo no mesmo ritmo das batidas. Subitamente, o garoto ergue sua mão, comandando uma vez mais.
— Levantem-se.
O solo então chacoalha, rachando em centenas de pedaços a praça ao ponto que agora ela não passava de uma ruína de pedregulhos brilhantes, luzes noturnas irradiando o local em meio a elas. Os olhos do garoto se tornam completamente escarlates, tão rubros que os orbes pareciam ter sido substituídas por bolas de sangue. Ao comandar uma terceira vez, sua voz soou como um trovão, prenunciando a imensidão de seu poder.
— Ergam-se! — Ele exclamou — Ergam-se e destruam Puritas!