Os Contos de Anima - Capítulo 76
Não haviam mais palavras a serem ditas entre os dois, muito menos Luna necessitava de qualquer explicação. Pelo tom e discurso da corvo, já estava subentendido entre os participantes que um combate era inevitável, ainda que Sofia não soubesse exatamente o porquê.
Respirando fundo, o garoto se entrepôs na diagonal da princesa, pronto para saltar e protege-la a qualquer momento. A garota por sua vez, não pretendia ficar indefesa, assumindo uma postura combativa no instante em que seu protetor o fizera, contudo, diferente do mesmo e seguindo as tradições Alfae, a jovem optou por confrontar a questão de uma maneira mais sútil.
— Olá… Sofia, correto? — ela questionou, elicitando um gesto de desgosto da oponente que prontamente a respondeu.
— Tire meu belo nome da sua boca imunda, elfa.
O desdém contido na voz da humana, bem como o termo utilizado pela mesma trouxeram breves tremores a alfae que por um instante não controlou suas emoções. Lucet pode sentir, mesmo sem mover um musculo e verificar sua face que, neste breve instante, uma quantia extraordinária de ódio fluía na expressão da princesa.
Entretanto, no momento seguinte, a mesma suspirou e continuou no mesmo tom, desta vez um tanto mais inexpressivo, como alguém que fala com um objeto.
— De todas as formas, Sofia — ela prosseguiu, repetindo o gesto da oponente que se mostrou pronta para ataca-la no mesmo momento — Acha mesmo que vai conseguir atacar um membro da família real em plena Alta Lustra e escapar com vida?
— Heh, como se qualquer um de vocês pudesse me impedir de escapar se eu realmente quisesse — Sofia retrucou em deboche — As sombras são minha casa e sei bem que não possuem, com exceção do Lucet, nenhum corvo perto o suficiente que possa me parar.
— Pense bem no que faz, humana — a princesa aconselhou, apontando sua varinha cuja ponta reluzia em escarlate na direção da garota — Realmente não há qualquer protetor por perto além do Lucet, mas, acha mesmo que consegue enfrentar a nós dois, sozinha, antes dos reforços chegarem?
— E o que te faz pensar que terá a chance de chamar reforços? — Sofia disse, apontando sua lança na direção da garota.
De repente, a expressão da princesa se tornou severa. A luz escarlate que brilhava em sua varinha subitamente apagou, desfazendo o feitiço que a alfae tentava conjurar enquanto distraía a corvo. Ao ver isso, Sofia soltou um riso alto.
— Ora ora, mas o que foi, vossa majestade? Seu brinquedinho não conseguem avisar que está em perigo? O papai e a mamãe não vão poder te salvar agora.
A alfae sacudiu a cabeça, esvanecendo o desânimo que subia a sua mente, erguendo sua varinha em pose ofensiva, o brilho retornando a ponta do armamento.
— Não irei precisar que venham até aqui, você ainda não é párea para nós dois — Luna afirmou com renovada confiança, um sorriso feroz surgindo em seu rosto — E seu truque de desaparecer não vai funcionar outra vez.
Lucet sentiu a mana invernal da garota irromper atrás de si ao passo que o chão começou a estalar, pequenos fragmentos gélidos flutuando ao ar enquanto um manto branco azulado rapidamente cobriu o solo. Se lembrava bem, o garoto sabia exatamente o que a princesa faria depois, portanto, já se preparou para agir.
Entretanto, antes que qualquer um dos dois pudesse realizar um movimento, Sofia agiu e apontou a mão para o solo, sua mana elusiva que parecia distorcer a realidade fluindo ao redor do membro. Por um instante, o garoto notou que um ponto do braço da oponente estava reluzindo e teve uma premonição, uma que foi instantaneamente confirmada quando um círculo reluzente surgiu no solo ao passo que a garota entoou.
— Invocatio: Veni! Raizen!
O corvo e a princesa sentiram uma súbita imensa pressão no ritmo em que o circulo era repleto de símbolos e runas, conectadas com linhas formando um conjunto cujo brilho crescia exponencialmente o quão mais próximo estivesse da completude. O par então teve sua atenção tomada quando Sofia juntou os dedos, executando um estalo que prenunciou o imediato término do símbolo que então se expandiu.
Originalmente do tamanho de um escudo circular, em questão de segundos o círculo quadruplicou em extensão, se tornando tão grande quando uma carruagem. Neste tempo, Lucet sentiu seu corpo dobrar de peso, sendo empurrado em direção ao solo, mas, seu corpo aprimorado bem como sua vontade o permitiram permanecer ereto com algum esforço, porém, isso não foi nada perto do que vira quando tornou sua atenção por um instante na direção da garota que buscava proteger.
Fluindo livremente, a energia branco-azulada de Luna continuava impregnando o solo com sua influência e, diferente do corvo que usava seu poder como uma segunda pele para reforçar seu físico, ela criara uma zona mágica ao seu redor que a ajudava a suportar o ataque do oponente com uma facilidade tamanha que a magia sequer encostava em sua pele com exceção dos pés.
Da garota, Lucet podia sentir uma reserva de poder mágico consideravelmente maior que o seu “Realmente…” ele pensou, um sorriso torto surgindo em seu rosto enquanto redirecionava a atenção para a luta que estava por vir “Da última vez ela pegou leve comigo”.
No primeiro momento, o símbolo no chão reluziu aos limites, causando um flash tão brilhante que quem visse de fora certamente interpretaria aquilo como se um relâmpago tivesse saído do solo, porém, no momento seguinte, toda a luz fora sugada para dentro do círculo que se partiu.
Uma rachadura se abriu lentamente e dela, o par observou abismado, frio subindo por suas espinhas, oito enormes ganchos se agarrarem as bordas e, com algum esforço começarem a expandir a quebra da dimensão. Nos cantos, Lucet podia enxergar um abismo imperceptível de trevas que sua mente não era capaz de compreender, causando dores aos seus olhos e forçando-o a desviar o olhar.
No instante seguinte, dois pilares de listras negras e brancas surgiram, acompanhando e abrindo ainda mais o rasgo dimensional, ali, o corvo compreendeu o plano de Sofia, a aura dourada irrompendo de seu corpo, dando energia a seus membros e liberando-o da influência da pressão.
— Luna! — ele virou para ela com urgência, lembrando-se de cenas de um perigo passado em uma certa floresta no ninho — Ataque a rachadura com seu gelo, atrase a criatura enquanto eu vou atrás da Sofia, não podemos deixar que ela termine a invocação ou o estrago para toda cidade será enorme.
A princesa apenas acenou com a cabeça, sabendo do perigo. Com um balançar da varinha, sua mana fluiu com ainda mais força e em instantes, fortes ventos gélidos convergiram ao seu redor, rapidamente materializando uma centena de lanças branco-azuladas. Ao ver a cena, Lucet não pode se impedir de engolir seco.
“Ela pegou MUITO leve comigo da última vez” ele pensou antes de focar totalmente em sua tarefa.
Lucet concentrou sua flâmula dourada em seus pés, erguendo um para executar o lampejo, quando a alfae mencionou.
— Dê um jeito nesse campo de interceptação — ela disse enquanto tentava realizar um chamado de emergência — No caso de não dermos conta de impedir seu plano, iremos precisar de reforços.
— Certo.
O garoto então pisou no solo e desapareceu, deixando para trás um quase imperceptível traço de luz. A distância entre Sofia e o par era de meros cinco metros devido ao ataque anterior do jovem, portanto, seu plano era utilizar o lampejo para avançar antes de saltar para o combate nos dois metros remanescentes, entretanto, o que ele não esperava é que, no instante que a técnica se encerrou, seu intuito fora negado.
“Ai mer…”
Um manto congelante cobria o campo de combate e, para o azar do garoto, ele não foi capaz de frear a tempo, escorregando pelo solo a velocidades supersônicas, alcançando a garota muito mais rápido do que previa, incapaz de fazer qualquer coisa além de colidir com a oponente.
Esta, por sua vez, desviou ao torcer o corpo levemente para o lado, soltando um riso no processo, contudo, Lucet, motivado pela raiva fervente que fluía em seu corpo reagiu rápido. Em sua rota atual, o garoto iria colidir com um banco em altíssima velocidade e quebrar as pernas se não agisse, por isso, saltou o quanto antes, desviando do objeto, contorcendo-se em meio ao ar para que pudesse cair de pé.
Quando, entretanto, procurou a corvo com a vista, não a viu no lugar anterior. O processo de invocação continuava ocorrendo, a quebra do espaço aumentando a cada segundo enquanto mais da extensão da formidável criatura atravessava. Seus instintos de repente gritaram alarme, porém, antes que tivesse tempo de conjurar uma defesa significativa, o desastre aconteceu.
Para Luna que atacava freneticamente com todos os seus esforços, o que fora capaz de captar com seus sentidos foram duas coisas. Primeiro, ela ouviu um estranho som molhado, daqueles que geralmente se ouve quando está preparando alguma refeição com carne recém caçada. Em seguida, sentiu um odor pungente que nem mesmo a nevasca que conjurara era capaz de encobrir, forçando a alfae a virar os olhos em direção ao garoto.
E lá estava ele, suspenso em meio ao ar, como se correntes invisíveis o segurassem desajeitadas, batalhando contra os efeitos da gravidade ao passo que seu corpo tremia com um tremendo esforço. Quando ela olhou na direção do seu tronco viu uma visão estranha, algo que não havia contemplado antes, algo que não entendia com facilidade.
Sim, com seus anos de treinamento rigoroso sob a tutela de seu pai, Luna aprendera a lidar com praticamente todo tipo de situação. Se precisasse, conseguia sobreviver em quase qualquer ambiente, sabendo como caçar, criar curativos e realizar desde primeiros socorros a processos cirúrgicos simples, entretanto, como era de se esperar de seu estilo de vida particular, nunca tivera de lidar com o que agora enxergara.
A primeira coisa que notou fora a cor. “fios” rubros fluíam do garoto, escorrendo pela superfície daquilo que o mantinha ali. O escarlate manchava ambos a frente e as costas do garoto, desenhando com seu sangue o item que atravessara seu abdômen, na região do plexo solar, perfurando seu corpo com tremenda facilidade.
Com o imenso poder conjurado pela princesa na forma de uma nevasca, as gotas carmesins sequer tinham a chance de alcançar o solo antes de se solidificarem, criando lágrimas vermelhas que colidiam contra o solo com os mais diminutos e inexpressivos impactos, como se nada do ocorrido tivesse qualquer importância.
Lucet ainda reluzia, chamas douradas entrelaçadas com fumo cinzento decorando seu corpo enquanto ele tentava resistir, dando a garota abalada um pouco de esperança, contudo, tal como uma vela diante de um sopro, essa frágil emoção logo se partiu. Ela então viu a silhueta ensanguentada da arma que atravessara o aliado se torcer e retroceder antes de girar e arremessar com força o corpo do garoto ao solo como um saco de trapos, que deslizou pelo campo gélido manchando o solo com seus fluídos.
Os olhos da princesa acompanharam, descrentes, o corpo do garoto que tão prontamente a protegera, viajar ininterrupto pelo solo antes de parar nas raízes frias de uma árvore próxima alguns metros depois.
A nevasca cessou, as lanças caíram em terra, estilhaçando em milhares de pedaços ao passo que um grande silêncio se instaurou, mas, este não permaneceu por muito tempo quando ela ouviu uma voz que a guiou instantaneamente para a posição de Sofia, ainda que a mesma permanecesse furtiva.
— É uma pena Lucet — ela dissera com grande desapontamento em sua voz — Quando o vi novamente até fiquei animada, afinal, sem sua ajuda tantos anos atrás, não teria conseguido meu precioso parceiro, e muito menos teria sobrevivido aquele desafio, ainda assim, quando escolheu usar o sagrado poder do verdadeiro deus para ajudar essa escória não humana, seu destino estava selado — a voz da garota então mudou para um tom de tristeza — Pelo seu erro, tudo que posso fazer é dar-lhe uma morte rápida, afinal, você me salvou antes, então, assim, o salvo.
O sangue do rapaz escorrera até as mãos da corvo e, pelo movimento das mesmas, Luna pode observar que a mesma juntara as palmas em uma espécie de oração. Durante todo o processo, ela só pode assistir, atônita, porém, neste último gesto, algo quebrou dentro de si.
Muitos em seu lugar despertariam várias emoções. Medo, tristeza, raiva, entretanto, aquilo que aflorara em seu peito foram rosas negras compostas e temível do mais profundo ódio. A nevasca ressurgiu dezenas de vezes mais intensa, arrebentando com facilidade o dispositivo de interrupção que estava escondido no solo.
Os ventos rugiam enquanto o campo de gelo cobriu não apenas a área em que estavam, mas uma boa tarde dos prédios nos arredores enquanto um vórtice de gelo surgiu em questão de segundos. Luna não mais se importava com o perigo do oponente que estava prestes a surgir.
Seu corpo agora trajava uma armadura. Na sua mão direita, a varinha de madeira branca cuja gema escarlate reluzia com tamanha intensidade que parecia uma estrela vermelha, na mão esquerda, uma espada curta composta inteiramente de gelo. Suas pernas eram cobertos por botas gélidas e seu vestido fora revestido por uma peça sólida de armadura com uma saia reforçada e levemente expandida para não impedir o movimento das dos membros.
Os olhos azuis da garota reluziam com poder e, sem perceber, acima de sua cabeça se formou uma coroa de gelo com sete pontos radiantes. Antes de avançar, ela disparou um raio de luz avermelhado em direção aos céus que atravessou a nevasca e, em seguida, disse uma única palavra, um decreto.
— Morra.