Os Contos de Anima - Capítulo 65
O garoto se ergueu ofegante enquanto as amarras que prendiam a fera lentamente iam se desfazendo. Suas forças haviam sido drasticamente gastas nesse combate, porém, mesmo que desejasse e precisasse de um descanso, não tinha o tempo para tal luxo. Guiando um traço de sua mana para a joia de se seu cinto, Lucet resgatou um frasco de um familiar liquido amargo.
Com a aura da fé, recuperar sua força física não seria um problema, afinal, este poder o auxiliava nessa questão quase que passivamente, porém, recuperar sua mana seria outra história. Para evitar ter de ficar uma hora refinando mana do ambiente distorcido do meteoro para reabastecer suas reservas energéticas, optou por tomar a poção e, alguns momentos depois, estava de volta ao seu ápice mágico.
— Não importa quantas vezes eu tome, essa coisa continua com um gosto horrível.
Após se esticar um pouco para dissolver a tensão em seus músculos, Lucet circulou a aura reluzente para acelerar os reparos dos danos do combate. Alguns minutos depois, se virou para a fera que ainda estava desmaiada. Com o olho do tirano podia ver que ainda estava longe de qualquer perigo vital e, mesmo que a luta tivesse a danificado um bocado, podia ver que sua vitalidade já corria para lhe prover forças.
— Impressionante — comentou enquanto andava até ela — Não é à toa que os Gnoma desconfiavam tanto de mim — Um sorriso brotou em seu rosto — Só quero ver a cara deles quando virem isso, será que vão deduzir da minha recompensa por cegá-la?
Estas, contudo, eram questões para serem resolvidas depois. Agora, precisava dar um jeito de manter a fera restrita e levá-la para fora do vale. Não demorou muito para que decidisse usar o ambiente ao seu favor. Infundindo sua mana no solo, começou a moldar e mover o ambiente, criando uma plataforma de rocha que os ergueu e então, como se fosse um Durza, deslizou pelo ambiente, ininterrupta.
Demorou por volta de meia hora e mais uma poção de mana para manter o ritmo devido a precisão que a tarefa exigia, mas, no fim, chegou ao topo do vale. Durante o caminho, algumas feras tentaram atacar, porém, logo desistiram ao ver o Meteorhino, um de seus maiores rivais, derrotado aos pés da criatura que o levava embora.
— Heh, boa escolha — Lucet zombou.
No topo do vale, o garoto converteu a plataforma em uma placa de rocha com rodas, larga o suficiente para comportar ambos confortavelmente. Em seguida, sentou-se ao lado da fera, pondo uma de suas mãos em sua cabeça e a outra em seu cinto, deixando pronta para consumo uma terceira poção de mana.
— Não dá para lucrar sem gastar — Lucet riu, autodepreciativo.
Ainda que soubesse manufaturar as poções, o fato era que os ingredientes e as poções em si tinham um valor alto no mercado e, para todos os efeitos, estava gastando uma quantia considerável para capturar e transportar a fera. Com um breve comando mental, a placa começou a se mover, um luzir acinzentado a envolvendo.
Simultaneamente, Lucet direcionou a mana das sombras diretamente ao cérebro da fera. Não era dos mais proficientes em ilusões, afinal, sua proficiência não era essa, mas, até mesmo ele era capaz de utilizá-las em uma fera, especialmente uma desacordada e ferida como esta.
Quando Lucet por fim chegou a entrada do vale, se deparou com os rostos assustados e surpresos dos visitantes e guias locais. Era extremamente incomum qualquer fera do vale ser capturada, especialmente viva, mas, capturar um Meteorhino vivo, ainda mais sozinho? Isso era tão raro que era possível contar nas mãos quantos realizaram o feito, ou melhor contar nem era preciso, seus nomes estavam gravados em uma rocha negra que informava o nome, espécie e nível de poder dos melhores caçadores.
O garoto não tinha intenção de parar e deixar suas informações ali, inclusive se direcionando diretamente para a saída, afinal, tinha de chegar logo a estação. Contudo, antes que pudesse escapar da multidão que logo se formaria ao seu redor, um gnoma o parou nos portões que sinalizavam a divisa.
Em suas mãos, portava machados. Em seu corpo, uma armadura vermelha e negra. Sua pele era repleta de cicatrizes, inclusive usando um tapa olho debaixo de seu capacete para cobrir a falta do órgão. Sua barba e cabelos eram pretos e seu olho era castanho. Quando falou, sua voz soou grave e imponente.
— Ei estranho! Pare ai! Qual seu nome?
Lucet o encarou por alguns instantes, e então suspirou, respondendo.
— Quem pergunta e porque quer saber?
O Gnoma bateu o lado de um dos seus machados no peitoral, declarando com grande orgulho em sua voz antes de apontar para a rocha que continha o nome dos melhores caçadores.
— Sou Igor Magnur — proclamou, indicando o primeiro nome na lista — O primeiro a caçar um Meteorhino sozinho.
Lucet deu de ombros.
— E porque isso me obriga a te dar meu nome?
Sem qualquer esforço ou foco, o garoto pode ver que o Gnoma estava se irritando, mas, não pretendia revelar sua identidade.
— Porque esta é a tradição! Todo caçador que derruba uma presa formidável no vale registra seu feito nesta pedra para inspirar os próximos.
— Eu não sou um caçador — Lucet retrucou — Vim aqui para realizar uma missão, não tenho intuito de perder tempo com suas tradições.
O Gnoma inspirou com força, erguendo um de seus machados para atacar. Lucet alcançou sua garra e se preparou para retaliação, porém, antes que qualquer um dos dois pudesse agir, uma aura os fez travar. Para o Gnoma, a aura era aterrorizante, como se uma besta poderosa o olhasse, suas enormes presas prontas para devorá-lo.
Mas, para o garoto, o gigantesco poder não podia ser expressado com nada além de um sorriso que imediatamente brotou em seu rosto. Ninguém, na posição daquele Gnoma, poderia interpretar aquela energia como uma extrema ameaça advinda do humano a sua frente. Seus sentidos aguçados e seus anos de experiência lhe diziam que confrontá-lo não era uma boa escolha.
A aura, alguns instantes depois, se dissipou. O Gnoma não conseguia parar de tremer enquanto Lucet não era capaz de esconder seu sorriso. Ninguém mais havia sentido aquele poder, então, todos apenas puderam interpretar que alguma espécie de truque ou magia indetectável surgira e amedrontara o bravo guerreiro.
Todos gostariam de questioná-lo sobre o ocorrido, contudo, ninguém tinha coragem de fazer a tal pergunta. Quando o garoto começou a mover a placa de rocha novamente, todos abriram caminho e não o incomodaram mais. Porém, após sair dali, Igor correu para pedra e pôs acima do seu próprio nome “três interrogações”, seguidas por “humano” e a letra “S”. Os presentes murmuravam, surpresos que o Gnoma, tão conhecido por sua força e coragem, admitira sua derrota tão fácil.
Lucet, por sua vez, seguiu caminho até a estação. Ao chegar lá, foi mais uma vez rodeado de curiosos que buscavam entender como um humano conseguira capturar um Meteorhino ainda vivo. O garoto não os deu atenção, escolhendo em vez disso pagar por uma carruagem privativa para transportar sua carga. Assim, após adentrar o transporte, sentou-se ao lado da fera e continuou a suprimir sua consciência com sonhos agradáveis, o animal fora um oponente formidável, não havia porque ser mais cruel com ele. Com um solavanco, partiu de volta para a capital.
No caminho, tentou detectar aquela energia novamente, mas, por maiores que fossem seus esforços, não conseguiu encontrar nada. Por fim, desistiu e preservou suas energias enquanto ponderava. “Eu tenho certeza que aquela energia era dele… Mas porque não apareceu? Disseram que ele tinha desaparecido, com isso, ao menos sei que não está morto, então, porque será que ele ainda se esconder?”
Horas depois, em outro lugar, sentados nos bancos de madeira de um bar recém reformado e reforçado com tantas proteções mágicas e físicas que fariam até mesmo Kaella um tanto curiosa, dois Gnomas admiravam suas canecas em meio a uma de suas costumeiras conversas acaloradas.
Um deles, de barba e cabelo de cor preta com traços de grisalho, olhos verdes e um costumeiro cinturão repletos de poções ria alto.
— Até parece que o humano vai conseguir Gasthaus! — o Gnoma gargalhou, batendo na mesa algumas vezes, fazendo a bebida em seus copos tremer um bocado — Admito que ele é poderoso, isso não há quem negue, mas capturar um Meteorhino vivo, sem auxílio? É impossível! Matar um ele deve conseguir, mas capturar um vivo?
O outro, de pele pálida e barba trançada completamente negra, seus olhos de cor esmeralda, tomou um largo gole da bebida dourada a sua frente e então, após soltar um satisfeito suspiro, respondeu.
— Eu não teria tanta certeza assim se fosse você Forscher — o Gnoma afirmou com um breve riso — A identidade daquele garoto não é nada simples. A única preocupação que tenho é se ele irá conseguir fazer isso a tempo de ganhar a aposta.
— Se ele fosse um dos filhos de nosso monarca — Forscher retrucou — Ou algum figurão alfae, até acreditava, mas um humano? O que de tão especial ele pode fazer?
— Você viu o estrago que ele causou no meu bar.
— Sim, e o que isso tem a ver? — Forscher insistiu — Não está querendo dizer que um Meteorhino é mais fraco que um mísero grupo de Gnomas daquele calibre?
Gasthaus chacoalhou a cabeça.
— De forma alguma meu amigo, o que estou tentando colocar na sua cabeça dura é que aquele era apenas um de seus poderes.
Os olhos do Gnoma arregalaram por um instante, seu pescoço virando numa fração de segundo na direção do outro.
— O que quer dizer com isso?
— O que eu quero dizer é que ele não usou nada além de uma de suas habilidades — Gasthaus explanou — Não usou seu poder total, nem seus itens ou qualquer outra espécie de auxílio.
— Ele fez todo aquele estrago e derrubou todos eles, sem usar toda sua força? Está brincando não?
Gasthaus estava prestes a responder quando de repente, um jovem Gnoma exasperado, sua armadura e lança mal ajustadas ao seu corpo, adentrou o recinto esbaforido, correndo o mais depressa que era capaz.
— Senhor Gasthaus! Senhor Forscher! — O Gnoma reportou, seu rosto uma mistura incompreensível de múltiplas emoções — Tem um humano numa placa de pedra com rodas dizendo que tem uma entrega para os senhores!
— O que? — Os dois questionaram em uníssono.
— Como assim uma placa de pedra com rodas moleque? — Forscher vociferou — Andou cheirando pó de cristal?
— Não senhor! — O Gnoma insistiu, chacoalhando a cabeça avidamente — ele está descendo a rua nessa placa estranha, carregando uma fera impressionante! Nunca tinha visto algo assim?
Os dois se entreolharam e, terminando suas bebidas em um único gole, se levantaram, correndo atrás do jovem empolgado. Ao cruzarem o limiar entre o estabelecimento e a rua, logo avistaram ao longe, descendo sem qualquer pressa, uma mão na cabeça de algo enquanto permanecia sentado de pernas cruzadas.
Para a surpresa do par, quando a figura se aproximou, logo identificaram como sendo o mesmo garoto que fizera uma aposta com eles tantos dias antes. Sobre a placa de pedra que o carregava, a carga, um Meteorhino ferido, mas definitivamente vivo, se encontrava, respirando tranquilo, como se adormecido. Lucet ergueu uma mão.
— Senhor Forscher! Senhor Gasthaus! Como é bom vê-los novamente! — ele deu um riso relaxado, observando as faces incrédulas dos dois — Acho que com isso, posso dizer que ganhei a aposta, não?