Os Contos de Anima - Capítulo 62
A chama dourada iluminava a tudo e todos dentro da estalagem, banhando o ambiente com uma camada de ouro, forçando os gnomas a recuarem alguns centimetros devido ao forte brilho daquela luz flamejante.
Entretanto, diferente do que se esperaria de uma labareda comum, o fogo dourado que banhava o lugar não emitia qualquer espécie de calor ou, ainda que tocasse em grande parte o teto e o solo, causava dano no local.
Uma das particularidades desta aura sobrenatural que o garoto e todos os guerreiros de Puritas utilizavam é que seu poder ofensivo era limitado pela vontade do usuário, podendo se tornar tão destrutiva quanto a vontade de seu controlador e sua energia permitissem ou se mostrar tão dócil quanto a luz de uma vela, tendo pouquissimo calor e poder em sua existência.
Lucet neste momento apenas queria assustar os guerreiros e fazê-los desistir do combate. Provavelmente conseguiria derrotá-los com a nova técnica que criou ao demolir todo seu equipamento, porém, se o fizesse, não tinha certeza de conseguir utilizar seu braço nos próximos dias, e com sua missão em mente, tentou intimidar os guerreiros.
Entretanto, apesar da óbvia ameaça aos equipamentos que eles a tanto custo construiram, os guerreiros ainda não pareciam querer desistir totalmente, o que deixava o garoto inseguro, afinal, se uma faisca ainda restasse da vontade deles, ela poderia se alastrar e reavivá-los para um combate que poderia acabar custando-o muito.
Moldando as chamas com sua vontade, o garoto deu um passo na direção dos homens, liberando controladamente as propriedades destrutivas de seu poder que lambia o chão e o teto com suas chamas, carbonizando o material que compunha o local com cada toque.
Mais um passo executado, e Lucet liberou uma porção do calor que continha seu poder, distorcendo o ar e enviando uma visivel onda dourada na direção dos gnoma. Suas barbas instantaneamente demonstraram sinais de combustão que eles rapidamente apaziguaram a tapas enquanto suavam e seus rostos mostravam uma vermelhidão devido ao aumento súbito da temperatura.
Enquanto isso acontecia, o garoto observava atentamente as expressões dos oponentes, e como esperado, sua tática de pressão estava efetivamente quebrando a raiva dos guerreiros e transformando-a em medo, ainda que eles persistissem com sua teimosia.
“Só mais um empurrãozinho…” concluiu enquanto executava seu próximo passo e alcançava um gnoma que estava mais próximo de si, o gnoma não conseguiu reagir a tempo devido a grande pressão das chamas douradas que o garoto direcionara exclusivamente para ele. Lucet ergueu seu braço concentrando uma quantia enorme de aura em sua mão, comprimiu a energia e em seguida agarrou o capacete do guerreiro.
Entretanto, diferente de quando golpeou com um soco, ele optou por liberar a energia de uma maneira mais controlada afim de não ferir severamente o gnoma e também diminuir a dor que ele mesmo sentiria após o uso da técnica, distribuindo a liberação na forma de explosões nas pontas dos seus dedos. Cinco minusculas luzes brilharam no elmo e, tal como a armadura anterioremente, finas rachaduras surgiram.
As gemas e proteções mágicas imbutidas no elmo explodiram com um leve som de vidro sendo partido ao passo que as finas linhas que sinalizavam a desintegração do objeto se alastravam. Instantes depois, para o choque de todos, Lucet aplicou força sobre seus dedos, desfazendo o metal e tornando-o em pó dourado que se espalhou no cabelo do guerreiro antes de desaparecer quando o garoto agarrou o gnoma pelos cabelos.
O garoto sentiu os musculos, tendões e ossos de seus dedos protestarem contra a ação devido ao efeito colateral da técnica, entretanto, ignorou as dores e olhou diretamente nos olhos do oponente.
— Vou ter que destruir mais peças ou você vai se retirar em paz?
Lucet esperava diversas coisas neste momento. Previa o pânico, o medo, a tristeza, o remorso ou até a indignação vindas do guerreiro, mas, talvez por falta de experiência ou por simples arrogância diante de seu novo nível de poder, o garoto foi descuidado e não reagir com velocidade o suficiente.
O gnoma disparou um soco na direção do seu rosto, mirando seu nariz. O garoto por reflexo desviou para o lado, entretanto, uma das partes da manopla que o guerreiro utilizava acertou e cortou seu rosto. Lucet sentiu um arder em sua bochecha ao passo que algo escorreu para seu queixo.
— Toma essa grandalhão! Peguem ele! Rápido! Ele não é invencível!
Um silêncio se fez. Lucet e os outros gnoma estavam pasmos, cada qual por suas próprias razões, mas, o garoto retornou do susto primeiro e reagiu. Ele lambeu o ferimento sem tirar os olhos do oponente que tentava se soltar do seu braço e, quando sentiu o gosto ferroso de seu sangue, demonstrou um sorriso cruel ao passo que seu rosto se contorceu numa careta de raiva.
Uma miriade de sentimentos explodiu dentro de si, alimentando as chamas de sua recém adquirida ira e o motivando a destroçar os oponentes com todas as suas forças. Ele se sentia frustrado por não ter desviado de algo tão óbvio e ter não ser capaz de seguir em paz para sua missão.
— Eu só queria fazer minha missão em paz… Mas não! Um bando de anões estúpidos e preconceituoso tinha de interromper meu caminho não? Pois bem seus imbecis, vocês pediram!
Lucet apertou a cabeça do gnoma, fazendo-o grunhir de dor antes de largar seu crânio e, utilizando a dor que distraira o guerreiro, executar um lâmpejo com uma perna, acertando em cheio o gnoma com um chute alto, nocauteando-o instantâneamente e, com a força remanescente, o arremessando para o chão.
Em seguida, o garoto se virou para os guerreiros que finalmente recuperaram seus sentidos e dispararam em sua direção. Um circulo rapidamente se formou ao seu redor, porém, o garoto não se sentia nem minimamente intimidado com a formação, demonstrando ao invés disso um sorriso ainda maior e mais selvagem, especialmente agora que era adornado com o sangue quente que escorria de sua ferida.
Lucet convocou seu escudo dourado e ergue sua perna, colocando seu joelho atrás do equipamento, executando o lâmpejo com a perna remanescente. Ele desapareceu e somente foi notado quando o som de metais colidindo e os grunhidos doloridos seguidos do som abafado do impacto de três gnomas caindo de costas e rolando no chão ecoou.
Sem perder tempo, ele se virou e saltou na direção dos guerreiros, executando mais uma vez o lâmpejo com apenas uma perna, mas desta vez no meio do ar, o que reduziu severamente seu impulso em sessenta por cento, mas foi o suficiente para ele alcançar um gnoma e girar no ar, golpeando sua cabeça com o escudo antes de pousar, um som similar a de um sino ecoando no ambiente enquanto o gnoma cambaleava e segurava seu elmo que vibrava devido ao impacto.
O garoto então disparou um chute frontal no peito do gnoma cambaleante, empurrando em cima de um guerreiro que corria com seus braços erguidos, segurando uma machado que reluzia envolto em chamas escarlates, derrubando o par no chão antes de avançar sobre eles.
Numa inesperada demonstração de habilidade acrobática, Lucet jogou bateu o escudo nos corpos dos gnomas caídos antes de jogar seu corpo sobre o escudo e se equilibrar sobre ele, abrindo suas pernas num espacate e virar as plantas de seus pés para o lado.
O tempo pareceu desacelerar, e nisto, o gnoma que servia o bar viu uma das cenas mais impressionantes de toda sua vida se desfechar diante de seus olhos. Corvo que havia recebido não apenas estava dominando a luta com o opressivo poder que os paladinos de puritas utilizavam, como também agora havia feito algo irracional, expondo seu corpo a todo tipo de ataque com a estranha manobra.
Uma parte das chamas douradas que envolviam o corpo de Lucet se acumulou em seus pés, construindo botas de energia luminosa em volta de suas próprias antes de, no instante em que diversos machados e espadas curtas reluzindo com chamas e energias coloridas vindas dos sete gnomas remanescentes, executar um lâmpejo.
O corpo do garoto se tornou um borrão com a alucinante aceleração que forçou até mesmo ele a fechar seus olhos para evitar a tontura que certamente veria a seguir. As botas em seus pés giraram com tamanho velocidade que praticamente se tornaram uma linha ininterrupta que ao colidir com os armamentos, atingi-os com tamanha força que seus donos não foram capazes de segurar ou desviar a tempo.
— SE ABAIXA! — Berrou antes de acelerar ainda mais com um segundo lâmpejo e comprimir as chamas douradas que fluiam de seu corpo por um instante, liberando-as num pulso omnidirecional logo em seguida.
Felizmente, o dono da estalagem pode reagir a tempo, se agachando um instante antes de uma explosão dourada incinerar o lugar e eclodir num vortice flamejante que tornou negro e chamuscado tudo num raio de um metro e meio ao redor do corpo do garoto, arremessando os guerreiros para diversas direções ao passo que dois guerreiros foram arremessados no lugar onde uma fração de segundo antes estivera a cabeça do gnoma.
Lucet saltou dos corpos dos gnoma que havia usado como apoio para executar o movimento improvisado e se levantou com alguma dificuldade. Seu corpo protestava, disparando diversas ondas de dor dos mais diferentes lugares enquanto a exaustação do constante uso da aura da fé em quantidades tão vastas varria seu corpo.
Seu folêgo trabalhado, o garoto se ergueu e andou em meio ao solo chamuscado e energrecido, ainda brilhando com as ocasionais labaredas douradas, na direção do balcão. Neste instante, o dono do bar se ergueu e após suspirar com o estado do seu estabelecimento, decorou seu rosto com um sorriso torto.
— Ainda bem que pagou os concertos — avaliando os estragos, o gnoma coçou sua barba enquanto tirava os dois guerreiros desmaiados detrás de seu balcão — Mesmo assim, você fez uma bagunça hein? Onde aprendeu a lutar assim? E como consegue usar o poder de Puritas, ainda mais com sua… Identidade?
— Todos temos segredos — Lucet respondeu ao se sentar num dos poucos bancos que ainda restavam razoavelmente inteiros — Mas não, definitivamente não sou um daqueles malucos, aliás, tal como muitos daqueles que possuem identidade como a minha, eu sou um inimigo deles.
O gnoma acenou com um sorriso mais firme. As raças não humanas não tinham uma opinião muito favorável da Congregação de Puritas e suas crenças absolutistas e separatistas, o gnoma obviamente também não, afinal, ele era um dos aliados do ninho e dos corvos.
— Diga — Lucet desviou a conversa para um assunto mais urgente — Você conhece esta pessoa, ou se não, ao menos onde fica este lugar?
Lucet retirou de seu cinto dimensional os papéis contendo as informações referentes ao cliente que havia comissionado a missão e o local onde o deveria encontrar para iniciar a missão. O gnoma observou por alguns instantes e estava prestes a falar quando uma voz ecoou da porta de entrada.
— Mas o que foi que aconteceu aqui!? — A voz exclamou.
O gnoma e Lucet viraram ao mesmo tempo seus olhares para a direção da voz e viram um gnoma vestido com uma armadura leve de couro marrom com algumas peças de metal protegendo seu peito, ombro, joelhos e cabeça. Ele tinha uma barba e cabelo negro com sinais de grisalho, olhos verdes, um par de adagas atadas ao cinto metálico em sua cintura e um cinturão com diversos bolsos repletos de frascos com poções coloridas.
— Gasthaus! Que desastre ocorreu no meu bar preferido!? — ele exclamou com sua voz estrondossa ao caminhar apressado até o balcão, ignorando completamente a existência de Lucet enquanto falava com o gnoma — Quem lhe atacou!? Foi algum dos Besitzer? Me diga quem foi e eu lhe garanto que ele não escapa de uma boa surra.
Gasthaus gargalhou, o que deixou o gnoma bastante confuso. Após alguns momentos de riso contagiante onde até mesmo Lucet não pode conter um breve risinho, o gnoma por fim apontou para o garoto e disse.
— Ora Forscher meu amigo! É só olhar para o lado e verá quem foi que causou esse estrago, ou talvez, se estiver com dores no pescoço, basta perguntar para qualquer um dos vinte idiotas que ele acabou de espancar.
Forscher se virou para Lucet e olhou para o garoto com olhos largos e, obviamente, incrédulos, como um humano conseguira derrotar vinte guerreiros gnomas, ainda mais desarmado? Ele estava prestes a confrontar e desafiar o humano, quando Gasthaus continuou.
— Mas mais importante que isso — ele disse em meio a risos ao deslizar os papéis que Lucet havia lhe mostrado — Eu acredito que ele é justamente o tipo de maluco que você estava procurando para sua expedição suicida.