Os Contos de Anima - Capítulo 57
Depois de irem até o portal, em questão de minutos o trio se reuniu no quarto de Lucet. O garoto sentou em sua cama enquanto o par sentaram nas cadeiras, Kaella tomando a palavra para si quando começou a discussão.
— Você planeja ir para o ninho — ela disse — Certamente lá é o lugar mais adequado para você conseguir juntar o montante necessário para os minérios que precisa, porém, você tem noção do quanto custam? Além disso, que espécie de missões tem em mente realizar?
Lucet, sentindo desde o começo que essa espécie de pergunta iria surgir quando decidiu fazer seu anúncio, havia se preparado e prontamente respondeu.
— Quanto aos preços, eu não tenho noção nenhuma, afinal, a lista do mestre Iogi apenas incluia locais onde comprar e os tipos de minérios que eu precisaria adquirir — ele respondeu, tirando de seu cinto dimensional a lista e mostrando-a como evidência — Mas isso não importa pois deixarei que o ninho recolha os minérios para mim a medida que eu for realizando as missões, algo como, “eu quero meu pagamento em minérios ao invés de ouro” ou algo deste genero caso seja possível.
— Entendo, é um plano viavel — Kaella respondeu com um aceno de cabeça — O ninho certamente será capaz de adquirir os minérios com mais facilidade, e a opção de pagamento pode sim ser convertida quando completar cada missão, mas, e quanto as missões em si? O que tem em mente?
— Se possível, prefiro evitar missões de assasinato — ele disse num tom um tanto melancólico — Portanto, irei em busca de missões de rastreamento de items ou materiais, coleta de informações e escolta.
— É uma boa escolha — Iogi disse, seu tom sério apesar de seu rosto sorridente — Manchar as mãos com sangue não é algo que se deva fazer por dinheiro. A vida é algo precioso demais, independente de qual seja e o peso de tomá-la é algo grande demais para ser feito por meras peças de ouro, se for necessário tomar uma vida, que seja por motivos extremos, como a proteção de uma vida.
— Se lembra do que eu disse quando lhe apresentei a mana das sombras, Lucet? — Kaella perguntou subitamente
— Sim — ele respondeu, percebendo o intuito de sua mãe — Apesar da péssima reputação, corvos não são apenas trapaceiros e assassinos.
— Exato — ela continuou — Portanto, não trilhe o caminho tão infame dos corvos, trilhe sua própria rota em meio as sombras e use-a para o seu poder, mas não deixe que ela te corrompa, não se deixe levar por caminhos fáceis. Seja uma luz tão brilhante quanto sua aura da fé.
— Serei.
Após isto, Lucet guardou a lista de volta em seu cinto e verificou os suprimentos que possuía, colocando-os sobre a cama para que Kaella e Iogi pudessem opinar, e possivelmente contribuir, para seu preparo.
Havendo reposto as ervas que havia gasto no combate contra a esquadra, Lucet carregava em seu equipamento dimensional diversas ervas, livros e ferramentas para o preparo de poções, além de algumas poções básicas já prontas em caso de que houvesse algum imprevisto.
Graças aos dois meses que gastou treinando com Iogi, o garoto também já havia adaptado suas técnicas de forja em vista de sua debilidade manual, suprindo a falta de um braço com o uso de fios de mana condensados para manipular as ferramentas.
Felizmente, sua afinidade para o uso de objetos inanimados através do uso da mana lhe ajudou muito neste aspecto, lhe garantindo inclusive ainda mais habilidade do que tinha prévia quando possuía as duas mãos. Neste meio tempo, foi capaz de reforjar todo seu equipamento encantando, assim, tendo uma camada extra de proteção além de suas habilidades.
Dos equipamentos que dispunha em seu cinto dimensional, além da garra, ele carregava um peitoral, manoplas e botas de cano longo da cor negra, cada uma com seu próprio encantamento. O peitoral gerava agora cinco escudos de mana para defender contra ataques, as manoplas agora o permitiam quintuplicar sua força braçal e as botas isolavam totalmente o som produzido por seus passos além de serem capazes de dobrar sua velocidade normal.
Além destes, ele também carregava o amuleto metamorfo que ganhara na aposta contra o Faeram Griz, a máscara que Kaella havia confeccionado com diversos encantamentos, que a essa altura haviam sido refeitos e melhorados, para proteger sua identidade e a capa que a alfae lhe dera no primeiro dia em que fora morar no buraco de árvore na floresta de Elysium quando se tornou o discipulo da ilustre “Guardiã de Lybra”.
Iogi inspecionou a qualidade dos itens por um tempo, mas, após isso, não teve nada a acrescentar, apenas dizendo que a habilidade do garoto havia aumentado, o que era impressionante considerando o ocorrido. Quanto a Kaella, ela apenas acrescentou mais ingredientes para algumas poções particularmente dificeis de sintetizar e um cartão de metal preto com letras douradas, contendo o nome do garoto com o sobrenome da alfae e um símbolo de uma balança.
— Mãe — ele questionou, o cartão em sua mão — O que é isso? Para que serve essa pequena placa de metal? Porque tem meu nome nela e seu sobrenome?
— Este é um cartão da união das guildas mercantes — Ela explicou — Ele contem seu nome e meu sobrenome porque eu criei uma conta para você e lhe consegui este cartão para que você não precisasse carregar um grande saco de moedas para todo lado quando precisar fazer compras. — Um leve rubor subiu as bochechas pálidas da alfae enquanto ela dizia com uma cara rigidamente séria — Eles precisavam de um sobrenome para o registro, por isso, eu dei o meu pois você não possui um sobrenome oficial, porque? Não gosta?
Lucet sentiu uma sensação quente em seu peito enquanto não pode evitar o largo sorriso que surgiu em seu rosto.
— Claro que sim! — ele riu, alegria óbvia em sua voz — É uma honra carregar o sobrenome da grande “Guardiã de Lybra”! Agora posso me gabar para todo mundo que minha mãe é a incrível Kaella Rubrum!
— Bobo — a alfae respondeu aos risos.
— Ora Kaella — Iogi interrompeu ao gargalhar — Em seu lugar, eu que me gabaria de ter um filho talentoso desses e ficaria muito feliz de ser um motivo de tanto orgulho para ele.
A alfae ficou em silêncio por alguns momentos, mas, a felicidade era óbvia pois sua expressão bela e radiante decorada com um suave sorriso e olhos semicerrados anúnciavam o quão satisfeita ela estava com a frase do gnoma.
Nestes anos todos, além de muitas preocupações, a alfae não sentia nada além de gratidão e orgulho de Lucet. Obviamente a educação que ela provia era da melhor qualidade, mas, o caráter do garoto era algo natural, desde o primeiro momento ele sempre fora alguém bondoso, leal e carinhoso, com uma curiosidade, inteligencia e dedicação exemplares.
Para ela, o garoto era um grande trunfo, uma vitória pessoal por assim dizer e por isso, saber que ele pensava o mesmo dela, lhe enchia de alegria.
Lucet e Iogi se olharam, acenaram com suas cabeças e ficaram em silêncio, respeitando Kaella enquanto a mesma refletia. Apenas quando ela ergueu sua vista alguns minutos depois, voltaram a falar.
— De toda forma — a alfae continuou num tom mais suave, porém ainda sério — Dentro deste cartão que é aceito na grande maioria de todas as lojas espalhadas por Anima, estão suas mil peças de ouro que você economizou e mais mil que eu coloquei como um presente por sua recuperação, além disso, Iogi também depositou mais mil peças de ouro pelas peças que você produziu durante o treino.
Lucet olhou para o gnoma, incrédulo. Um leve rubor subiu ao rosto do homem que respondeu um tanto envergonhado.
— Kaella, isto era um segredo! — ele disse num tom de falsa irritação — O que ele produziu valia mais ou menos isso de toda forma, só lhe dei o que merecia — ele então se virou para o garoto e disse — Considere isso com um presente para lhe ajudar com o custeamento da protese, mas acredite, pelo que sei daqueles minérios, irá precisar de muito, mas muito, mais do que isso.
— Ainda assim — Lucet interrompeu antes que Kaella ou Iogi tivesse a oportunidade de continuar falando — Isso já é uma grande ajuda. Sei bem da dificuldade financeira que me aguarda, portanto, qualquer vantagem, ainda que pequena, é extremamente importante.
Apesar das origens de sua mãe e do gnoma, sendo eles respeitáveis membros dos altos escalões de suas respectivas raças, juntar duas mil peças de ouro ainda era algo que podia gerar algumas dificuldades, afinal, essa quantia tinha de sair de algum lugar, e os conhecendo como conhecia, certamente o par não tirou dos cofres de seus respectivos reinos, mas sim de suas economias pessoais, e portanto, era algo que o comovia e reforçava ainda mais sua determinação e vontade para lograr em seus planos.
Lucet se ergueu da cama e começou a se preparar. Primeiro colocou o colar metamorfo em seu pescoço e, quando estava prestes a ativá-lo para alterar sua aparência, se deu conta de que não se lembrava mais de sua aparência e rapidamente se deu conta de que deveria ter mudado um tanto nestes anos adormecido, portanto, pediu para Kaella um espelho, que ela tirou de seu equipamento dimensional atado a sua cintura.
O espelho era grande e circular ao ponto de que, mesmo quando o garoto usou sua mana para posicioná-lo a sua frente no meio do ar, o espelho refletia desde a ponta da sua cabeça até o meio do seu torso.
Vendo sua aparência, Lucet caiu num silêncio quase mórbido que começou a preocupar o par. Seu corpo estava maior, mais definido e mais forte, isso ele podia ver, porém, seu rosto, havia mudado quase que irreconhecivelmente.
Quando mais novo, seu rosto era um tanto comum, ainda que com alguns levissimos traços de um alfae, sendo suas orelhas mais afinadas e pontudas que a de um humano comum e seus olhos de cores direntes, mas a diferença era tão pouca que era quase imperceptivel sua segunda linhagem.
Porém, após meros dois anos e onze meses depois, seus traços alfae havia crescido considerávelmente. Suas orelhas, apesar de não tão pontiagudas quanto a da raça, era expressivamente mais afinadas e pontudas que as de um humano ao passo que seus olhos reluziam quase que a todo momento com poder mágico, extremamente similar aos olhos de um alfae.
Seu rosto havia alongado, se assemelhando ainda mais estéticamente ao de um felino e, diferente de quando mais jovem que apenas um de seus olhos possuía pele pálida, agora todo seu rosto partilhava desta característica. Diferente, porém, dos alfae, seu cabelo permanecia castanho, uma cor que praticamente não existia entre a raça dos mestres arcanos.
Ele já começava a ver sinais de barba crescendo em seu rosto, ainda que reduzidos pelo óbvio uso de uma lâmina para cortá-los, diferente dos alfae que era incapazes de ter tal característica. Isto, combinado com seu cabelo que permanecia num comprimento aceitável e praticamente idêntico ao anterior, indicava que sua mãe mantivera sua aparência apresentável até mesmo enquanto dormia.
Ele virou sua atenção para Kaella por um instante e disse, espontaneamente conjurando em seu rosto o sorriso mais carinhoso e feliz que era capaz.
— Caramba, eu mudei demais — ele sorriu amavelmente, sua mão em seu cabelo — Eu pareço mais e mais com um alfae…Mais e mais com você, mãe, mas meu cabelo não ficou bonito que nem o teu.
A alfae, quando ouviu o pedido por um espelho, estava preparada para receber uma explosão de raiva ou confusão em face de um rosto que essencialmente não era o que ele se lembrava, mas, ao ver a reação tão gritantemente diferente do esperado, ela não conseguiu se conter e desatou a rir, leves lágrimas escorrendo de seus olhos enquanto seu riso suave e contagiante ecoava no quarto, rápidamente infectando o gnoma que já estava parcialmente bebado que acabou por começar a rir.
Passaram vários minutos até que o par parasse de rir enquanto Lucet não foi capaz de fazer nada que não fosse olhar para eles com vergonha, sem saber onde se esconder após compreender exatamente o que foi que ele disse. Quando o fizeram, Kaella por fim se pronunciou.
— Sim — ela disse, sua voz suave e carregada de carinho — Você mudou muito neste tempo, e fico feliz que pode retornar para ver isso, ver estas mudanças como eu as vi. Você cresceu e ficou muito forte, mas lembre-se, não pense que tudo ficou fácil, quanto maior o poder, ainda mais dificuldades você irá enfrentar em seu caminho, aja sempre com cautela.
Lucet acenou a cabeça e se voltou para o espelho. Prontamente alterou sua aparência para a de um humano com olhos castanhos e pele relativamente bronzeada, após isso, vestiu as peças de armadura encantada, pôs sua máscara de corvo e por fim pôs sobre seus ombros o manto da cor do céu noturno e cobriu sua cabeça com o capuz. Em seguida, atou a garra com sua bainha a sua cintura e se virou, devolvendo o espelho para a alfae.
— Mãe, Mestre — ele disse, sua voz solene — Obrigado por tudo, se tudo correr certo, os verei daqui a um mês, dois no mais tardar.
Ele se curvou levemente, os agradecendo e então, após fechar as cortinas e gerar um pouco de sombra no quarto, liberou sua aura cinzenta, uma grande mancha negra conedensando embaixo do seu corpo.
— Até mais! — ele exclamou e então mergulhou nas sombras.