Os Contos de Anima - Capítulo 56
Após uma merecida pausa de duas horas para almoçar e recuperar as forças mais apropriadamente, o trio começou a conversar sobre o combate, avaliando a performance de Lucet, seu poder e suas falhas. Kaella tinha seus apontamentos a fazer, porém, preferiu que Iogi iniciasse o debate, o que o gnoma prontamente fez com um sorriso largo enquanto tomava goles de sua caneca de chifre repleta do fragrante e dourado hidromel.
— Quando Kaella me disse que você tinha ficado muito mais forte — ele começou, empolgado — Confesso que não cria nem um pouco, afinal, o quão mais forte é que você poderia ter ficado em quase três anos? — Ele gargalhou e continuou, seu lado inventivo, curioso e estudioso florescendo com grande velocidade — Mas quando lutamos hoje, vi que não apenas estava redondamente errado, como também teria perdido se não tivesse usado o chamado ancestral com sucesso. Aquela sua técnica de aceleração explosiva é incrível! Como fez aquilo? Consegue me ensinar? Tem como ser replicado com mana ou só funciona com aura da fé?
Lucet se viu ambos lisongeado e surpreso pela fala do gnoma. Por um lado, ficava muito feliz por ser reconhecido por ele, afinal, Iogi lhe ensinara muito em seus anos vivendo na vila de Elysium, porém, ele nunca imaginara que algum dia seria capaz de possívelmente ensinar alguma coisa para ele.
— Eu não sei se consigo ensinar — O garoto respondeu — É uma técnica de compressão e vibração de aura numa frequência muito específica — Sua mão subiu para seu queixo enquanto revisava a técnica em sua mente, sua aura cinzenta inconscientemente se manifestando e imitando os caminhos que seus murmúrios ditavam — A parte da compressão e liberação pode ser replicada, porém, teria que ser numa vibração especifica, entretanto, mesmo que seja possível, não dá para replicar o mesmo efeito e velocidade justamente pela natureza mais potente da aura da fé.
Enquanto pensava, sua mana sombria já havia se acumulado em seus pés ao passo que o par observava os movimentos do garoto. A criação de técnicas e feitiços não era um procedimento simples, e adaptação de uma técnica de outro sistema de poder era ainda mais complicado, porém, com a demonstração de Lucet, o par já estudava as possibilidades.
Sem notar, o garoto começou a comprimir a mana, sobresaturando seus pés com a energia em poucos momentos, em seguida, a mana começou a vibrar erráticamente, por vezes demonstrando sinais de se dispersar, e outros de explodir, mas nunca acertando o ponto exato. Logo, o garoto desistiu da idéia e, quando se deu conta, viu sua mãe e amigo olhando para si com caras de ávido interesse.
— Mãe? Mestre Iogi? — ele perguntou confuso — Aconteceu algo? Tem alguma coisa de errada comigo?
Despertando do transe habitual de estudiosos que eram, Kaella e Iogi olharam um para o outro antes de rirem. Alguns momentos depois, se viraram para Lucet e explicaram.
— Apenas hábitos de velhos estúdiosos, garoto — Iogi respondeu.
— Ossos do oficio, eu diria — Kaella complementou.
— De toda forma — Iogi continuou, seus olhos brilhando com determinação e alegria — Você sem perceber quase criou a técnica, ou melhor, nos deu pistas o suficiente para desenvolver uma variação baseada em mana, variação essa que pode ser muito útil, mas que precisara de muito estudo, e também algumas consultas com você, portanto, já lhe pedimos de antemão que tenha paciência, afinal, tal como você tem muito de aprender, nós também podemos aprender, e agora que vimos o potencial desta técnica, iremos explorá-la, desenvolvê-la e então, dominá-la.
Após pensar por alguns momentos, Lucet notou o que exatamente havia feito e um traço de vermelho subiu ao seu rosto.
— Claro mestre — ele respondeu com um aceno da cabeça, ajustando sua posição para olhar para os dois ao mesmo tempo — irei ajudar no que puder, o mesmo vale para você mãe, será uma honra poder ensiná-la algo, especialmente considerando o quanto você cuidou de mim, me ensinando diversas coisas que certamente me servirão para a vida toda.
Kaella soltou um largo sorriso, seu rosto praticamente se iluminando e irradiando uma mistura de orgulho e felicidade.
— O que me basta é que você esteja bem, filho — ela disse, sua voz suave e serena ao passo que seu sorriso diminuiu e se tornou um leve sorriso de canto de boca enquanto seu rosto transbordava curiosidade— Mas, tenho de admitir, será uma experiência interessante ter você como meu professor.
O trio desatou a rir por alguns momentos. Em seguida, voltaram a discussão, com expressões mais sérias.
— Sua agilidade e tempo de resposta melhoraram e muito — Kaella apontou — Apesar de ainda desacostumado com seu novo poder, você aparenta estar pegando o jeito com bastante facilidade e, além disso, agora tem um equilibrio entre habilidade ofensiva, movimento e defesa com a adição do escudo para seu arsenal.
— Exatamente — Complementou — Em conjunto com a sua técnica de movimento, o escudo causou um grande estrago ao ser golpeado com tanta velocidade contra as estátuas dos meus ancestrais.
— Sim — Lucet concordou — Por alguma razão estranha, a garra não era capaz de destruir por completo as estátuas, então tive de improvisar — ele explicou, continuando em seguida com uma expressão curiosa — Mas, porque a garra não funcionou mestre? É porque sua técnica é de uma magia poderosa demais para a anulação da garra? E falando em anulação, porque senti uma restrição na minha mana enquanto lutávamos? Eu não conseguia usar mais moldar e usar a terra com a minha mana depois que aquelas estátuas surgiram.
O gnoma riu, mas depois de receber um olhar irritado de Kaella, prontamente parou e passou a explicar.
— O chamado ancestral não é exatamente uma técnica — ele explicou — É um poder exclusivo dos gnoma, que nos permite chamar nossos ancestrais e, se eles aceitarem, colocar suas almas na rocha por um tempo limitado devido a nossa afinidade natural com a terra.
— Você revive eles!? — Lucet perguntou espantado — Mas então eles se tornam durza?
— Não garoto! Nossos ancestrais jamais revivem! — Iogi respondeu com severidade — O que fazemos é um chamado que permite o passado se conectar com o futuro graças aos laços poderosos que a raça possui com a terra, afinal, de acordo com a lenda, foi exatamente dela que fomos feitos, rochas dadas vida pelo sopro divino da alma. A rocha não pode conter a grande pureza e poder de uma alma, portanto é apenas temporário, comparar o que fazemos com os durza é uma ofensa muito grave, jamais repita isso Lucet, falo sério.
Lucet, assustado, apenas ascentiu com a cabeça. Vendo a resposta do garoto, Iogi continuou com mais calma.
— Quanto a ineficácia da garra e a efetividade da aura da fé — ele explicou — Se deve ao fato de que a garra nega a mana, não a própria vida. A aura da fé é mais eficaz contra o chamado ancestral porque é um poder advindo da própria alma, e claramente uma alma viva é mais poderosa que uma que já se foi, mas, como pode bem ver, posso compensar qualidade com quantidade se meus ancestrais estiverem de acordo — Após isso, um sorriso confiante surgiu no rosto barbudo do gnoma que prontamente declarou — Quando ao fato de você não poder se conectar com a terra, acha mesmo que conseguiria fazer isso diante dos favoritos dela?
Em seguida, discutiram sobre movimentos específicos. Conversaram sobre estratégias e falhas, observações cruciais e momentos aproveitados, e esta conversa se estendeu por mais uma hora até que estivessem satisfeitos. Depois, prosseguiram para um treino até o por do sol, neste momento Iogi se retirou para seus aposentos enquanto Kaella e Lucet continuaram treinando.
Eles revisaram especificamente os atributos e habilidades da mana das sombras, pondo em prática a nova possível técnica e também revisando conceitos como o passo do corvo, o manto das sombras, controle e velocidade de absorção da mana das sombras.
Além disso, Kaella tomou a liberdade de testar o potencial e afinidades de Lucet e, como esperado, ele havia crescido ainda mais durante o período de coma. Sua afinidade havia alcançado a faixa dos noventa, o que já significava não apenas a imensa facilidade que o garoto possuia em relação a compreensão e uso da mana, com também o fato de que suas reservas de mana internas haviam expandido.
Com o mesmo teste, a alfae foi capaz de determinar que a aura da fé condensada no sangue do garoto havia mudado. Ela agora tinha uma qualidade superior apesar da sua quantia ter diminuido, fato que não a preocupava pois isto significava que Lucet estava assimilando o poder e se acostumando com ele, fazendo com que se tornasse algo seu ao invés de um empréstimo de seu pai.
O par continuou a treinar até que o a única coisa que ecoava na cidade toda, além do tintilar das armaduras dos guardas que patrulavam durante a noite, eram os movimentos, ataques e impactos do par. As regras eram as mesmas que as do combate contra o gnoma, porém, apesar disso, Lucet se viu imensamente mais pressionado ao enfrentar a alfae.
Diferente do estilo sólido e poderoso do gnoma, Kaella dominava o combate com facilidade graças a sua agilidade, estratégia, técnica e prática superiores. Sim, Iogi era um guerreiro formidável, mas, se comparado com Kaella, ele ainda deixava um pouco a desejar, especialmente se os dois não usassem equipamentos encantados.
Durante a prática, a alfae parecia ser feita da escuridão da própria noite. Intocável, mas ao mesmo tempo onipresente. Lucet não conseguira acertar um único golpe em sua mestra por mais que tentasse. Mesmo com todos os seus truques, nem mesmo um contra ataque ele fora capaz de acertar. O lampejo, o escudo, a garra, a manipulação da terra e das sombras, tudo diante dela foi inútil e a pratica foi unilateral com o garoto constantemente recebendo instruções de como melhorar enquanto recebia os golpes.
Quando pausaram após uma investida onde Lucet tomou um contra golpe particularmente duro no plexo solar e saiu rolando pelo chão, Kaella viu o horário e declarou:
— Por hora, chega, devemos descansar.
Lucet não discutiu. Após se erguer com alguma dificuldade, ele a acompanhou para o portal e, após alguns minutos, já estava no quarto. Desta vez, o garoto optou por dormir sozinho. Kaella respeitou sua vontade e foi para um outro quarto descansar.
Nesta noite, o garoto se sentia particularmente inquieto. Ele havia crescido muito, ficado muito mais forte do que esperava ou imaginava, e ainda assim, sua mãe era tão expressivamente mais forte que ele. Durante o treino noturno, ele sentiu ainda mais a falta do seu outro braço, coisa que o fez ponderar por um bom tempo após se banhar e deitar para dormir.
Ele estava determinado a conseguir a protese que Iogi havia comentado. No primeiro raio de luz da estrela da manhã, Lucet se ergueu e, quando Kaella apareceu acompanhada do gnoma sonolento, ele pediu que fossem direto para a arena praticar. A alfae pensou em protestar, mas, quando viu a luz nos olhos heterocromáticos do garoto, ela não pode dizer-lhe não e, após pedir uma cesta de alimentos, partiram para a arena.
Daquele dia em diante, Lucet passou os próximos dois meses praticando combate com o gnoma afim de aprimorar seu controle sobre a terra e suas técnicas de combate durante a manhã, ensinos gerais e forja durante a tarde e combate com Kaella durante a noite.
O tempo correu, e logo, após um combate peculiarmente triunfal para Lucet onde, mesmo com Iogi empoderado por sete espiritos ancestrais, ele ainda fora capaz de forçar um empate, não necessitando da intervenção de Kaella. Neste dia, após recuperar seu folêgo, ele declarou.
— Mãe, Mestre Iogi — ele disse com firmeza — Amanhã eu irei para o ninho. Quero reunir os materiais para a protese, e para conseguir os fundos para custeá-los, acredito que a rede do ninho será essencial.
— Finalmente — Iogi respondeu, rindo enquanto concordava com um aceno da cabeça — Mais um pouco e eu iria lhe cobrar sobre esse assunto garoto!
— Sei que deve ir — Kaella concordou, se virando para a saída da arena e acenando com a mão para que a acompanhassem — Venha, temos que preparar algumas coisas antes que parta.