Os Contos de Anima - Capítulo 54
Com algum esforço, Lucet se virou seu rosto para a direção da voz e viu uma figura familiar que, por sua mera presença, afastou vários de seus pensamentos ruins que lhe pragueavam desde que acordara.
A figura tinha uma altura um pouco menor do que a sua, tendo por volta de um metro e quarenta, porém tinha quase o dobro da sua massa muscular compactado naquele pequeno pacote. Com seus olhos reluzentes com a cor de âmbar, seu cabelo e barba de um marrom cor de casca de árvore trançados, o gnoma de vários anéis coloridos e armadura cor de cobre que carregava um machado de uma altura muito similar a sua própria, mostrava uma cara séria.
— Mestre Iogi! — Lucet disse empolgado, se erguendo e sentando na cama com alguma dificuldade, um largo sorriso em seu rosto ao ver um velho amigo — O que lhe traz até aqui?
— Ora garoto — ele riu, sua expressão séria prontamente desaparecendo — O que mais me traria além da sua mãe me notificando que você tinha acordado? Pirralho descuidado, nenhuma mãe deveria viver mais do que o filho, ai você vai lá e quase se mata para salvar ela?
O gnoma rápidamente se aproximou ao passo que Lucet se erguia e ia em sua direção. Os dois fizeram um comprimento, agarrando seus braços e então puxando um ao outro para perto no que deveria terminar num abraço, que o gnoma prontamente completou ainda que Lucet não pudera fazê-lo, depois disso, Lucet se sentou na cama ao passo que Kaella, com um gesto de sua mão luminosa, puxou duas cadeiras e então se sentou em conjunto com Iogi.
— Não foi culpa minha caramba — Lucet respondeu com um riso — Não é como se eu tivesse especificamente escolhido lutar contra aquele paladino maluco e quase morrer no processo. Mas isso não importa mais, estou vivo, ainda que não completamente intacto, mas estou vivo.
— Sim, estar vivo é o mais importante — Iogi concordou com um aceno da cabeça — Porém, com a jornada que você tem pela frente, um braço a menos certamente sera um empecilho,
— Eu sei… — Lucet disse, uma expressão um tanto melancólica tomando conta de suas feições antes de ele suspirar — Mas não tem como eu recuperar esse braço, então terei que me virar e arranjar outras formas de lutar para compensar, nem que seja forjando marionetes para compensar ou algo assim.
— Vejo que ao menos sua persistência não mudou nem um pouco — O gnoma riu — Isso me deixa bem contente, e ainda me dá mais razões para lhe fazer esta proposta.
— Proposta? — Lucet perguntou confuso, Kaella também virando seu rosto para dar mais atenção ao gnoma.
— Exato — ele respondeu com um aceno da cabeça — Até onde sabemos, com exceção de uma intervenção divina que provavelmente requeriria um grande sacrificio, recuperar membros perdidos é impossível, porém, isto não significa que você têm de ficar para sempre sem um braço.
— Iogi, você não está propondo o que eu acho que está, certo? — Kaella interviu, seu rosto uma expressão séria.
— É uma opção muito custosa, e ele pode não ser compatível — O gnoma disse ao chacoalhar a cabeça — Mas, honestamente, vê alguma outra opção para isso?
— Eu pensei que as esquemáticas e fórmulas para produzí-las haviam sido perdidas depois da divisão continental? — Kaella questionou — Ou está querendo me dizer que conseguiram criar uma nova formulação e design?
— Não criamos nada — Iogi respondeu — Porém, alguns anos atrás foram encontrados peças e fragmentos delas e, apesar de não conseguirmos utilizar da retroengenharia para decompor e aprender, ainda conseguimos referencias o bastante para formular uma versão utilitária que pode substituir membros perdidos.
— Mestre Iogi — Lucet interrompeu — Do que está falando?
— Próteses mecânoencantadas de auto desempenho, ou simplesmente “Protomails” — ele respondeu — Essencialmente membros mecânicos que possuem capacidade de não apenas serem movidos com praticamente a mesma eficiência que um membro natural, como também tem a composição mais duradoura e são capazes de transmitir mana, assim permitindo a manipulação de mana.
— Isso soa muito bom… — Lucet disse pensativo, sua mão em seu queixo — Mas tem algo a mais, certo?
— Sim — ele respondeu — Para começo de conversa você precisaria reunir uma lista de mais de vinte itens que são carissimos e excepcionalmente raros de encontrar, considerando que você conseguisse estes itens, depois você teria que arranjar alguém que tivesse a habilidade necessária e o conhecimento para forjar para lhe forjar um protomail, e depois disso tudo, ainda precisaria reunir conseguir a ajuda de um serafim para lhe ajudar com o procedimento de implantação da protese, para depois disso, gastar diversos meses ou até mesmo anos em reabilitação para reaprender a utilizar e se acostumar com as novas terminações neurais e mágicas artificiais.
— Você tem a lista destes vinte itens com você? — Lucet questionou.
— Sim — O gnoma respondeu — Tenho inclusive os lugares onde pode consegui-los detalhados na lista para facilitar a busca.
Lucet então pediu para a lista para o gnoma, que ele prontamente retirou do seu equipamento dimensional na forma de um cinto com uma pedra de esmeralda. O papel era amarelado, muito similar a um papiro e era protegido por uma capa de couro marrom. Ao abrir, Lucet conseguiu reconhecer alguns dos metais, mas não todos, e soltou um largo suspiro.
— Bem… — ele disse, soltando um breve e fraco riso — É um braço novo, nunca que isso seria fácil.
— Entenda Lucet — Kaella disse — Este é um mecânismo muito novo, nos estágios de um protótipo, você pode não ser compátivel com esta tecnologia mesmo que consiga todos os metais. E ainda que seja compatível, os serafins são muito raros e ainda mais dificeis de contratar, especialmente para uma situação como essa que irá requerer alguém de altissimo nível. — Ela então olhou diretamente nos olhos do garoto e disse, preocupada — Quer mesmo tentar isso?
— Não é uma questão de querer, apesar de eu realmente querer — ele admitiu com um riso, olhando para os olhos da alfae com um sorriso gentil em seus lábios — Eu vou precisar de todo o poder que eu puder reunir se eu quiser destruir puritas, e eu acredito que lutarei bem melhor com dois braços do que com um só.
— Se esta é a sua decisão… Então precisaremos apressar os planos do seu treinamento e também precisaremos acelerar sua recuperação — Kaella então se virou para Iogi e disse — E já que você deu a idéia para o garoto meu caro amigo, também irá ajudar a treiná-lo em combate e forja.
— Ora Guardiã, sei que somos amigos, mas não acha um tanto injusto me pedir isto? — o gnoma disse indignado — Já foi bem dificil conseguir a autorização da corte real para produzir uma protomail para um estrangeiro, reunir a lista e os locais onde conseguir os ingredientes, agora também quer que eu o treine? Não acha que é pedir demais? Sei que lhe devo favores, mas até eles tem limites.
— Não sou eu que lhe pagará por estes serviços — ela disse com um chacoalho da cabeça antes de apontar para Lucet — ele vai.
— O garoto? E acha que ele consegue pagar estes serviços todos?
— Sim, eu tenho certeza que consigo — Lucet interrompeu, seus olhos iluminados com uma fervorosa determinação — É minha missão, portanto, tudo envolvido é minha responsabilidade, não irei impôr a minha mãe um sacrifio maior do que ela já me deu nestes três anos.
Kaella e Iogi observaram o garoto, satisfeitos com sua atitude, após isso, os três discutiram um pouco mais sobre e então concordaram em comer, afinal, Lucet havia ido ao combate sem sequer comer, portanto, era uma boa pedida que ele se nutrisse antes de começar sua recuperação. A alfae então fez alguns gestos com seus dedos e um fraco pulso mágico ecoou pelo espaço, instantes depois, um segundo pulso a eles.
— Pedi que nos trouxessem o que comer — ela disse — Acredito que pernil de armali estaria dentro de seus gostos, Iogi?
— Você me conhece bem — O gnoma gargalhou animado — Já que vamos comer tão bem, então que bebamos com a mesma qualidade!
O gnoma então passou sua mão carregada por uma aura de mana marrom amarelada na jóia esmeralda de seu cinto e retirou dela um pequeno barril de madeira negra e peças prateadas, carvado com runas brilhantes. Kaella olhou para o barril com uma expressão curiosa, um tanto surpresa com o item mostrado pelo diminuto homem barbudo.
— Eu pensei que só bebesse isto em datas especiais?
— Ora Kaella! — O gnoma riu, fingindo estar insultado — Está duvidando da minha generosidade? Para um pernil de armali a melhor bebida para acompanhar tem de ser hidromel das ferrelhas douradas! Acha que seria mesquinho com meu futuro cliente?
O trio riu por alguns momentos e, após uma equipe de cinco alfaes baterem na porta e adentrarem com uma mesa carregada de frutas, sucos, diversos tipos de carne, e o prato principal de uma enorme peça de carne do tamanho do corpo do gnoma ao centro dos pratos, levaram o barril até a mesa e, quando os alfaes partiram, sentaram-se.
Com um rápido e praticado gesto, o gnoma prosseguiu a abrir o barril, três canecas de chifre encaracolado de alguma fera prontas para serem enchidas ao seu lado. O gnoma então tirou a rocha de crista que selava a abertura do barril e o ergueu, servindo o liquido dourado nas canecas de chifre com cuidado, evitando o desperdício de sequer uma gota da bebida. Ele então entregou um chifre para cada e, após erguer o seu, disse:
— Para um novo começo meus amigos! Brindemos!
O trio ergueu seus chifres e encostou suas bordas. Depois disso trouxeram a bebida a suas bocas, Kaella e Iogi tomando um generoso gole ao passo que Lucet hesitou ao sentir o cheiro forte, porém curiosamente atrativo da bebida. O arome era intoxicante e doce, tão potente que Lucet mal conseguia pensar direito e por tal, resolveu imitar os dois e tomar um generoso gole.
A bebida era extraordinariamente doce ao ponto de que Lucet sentiu seu corpo agitar-se pela quantia de açucar que adentrava em si. Nos instantes a seguir ele ficou levemente trêmulo enquanto o sabor adocicado permeava seu corpo e o aquecia, enchendo de força a tal ponto que sua dor anterior parecia meras cocegas no momento.
— Uau — o garoto comentou — Que bebida…estranha… Mestre? Eu deveria estar tão quente e energizado?
O gnoma riu ao observar o garoto. Lucet agora estava com as bochecas coradas acompanhadas de um sorriso bobo que decorava seus lábios.
— Kaella, é a primeira vez que o garoto bebe?
— Ah! É verdade! — ela disse ao encostar sua palma em sua testa, suspirando — É a primeira vez que ele bebe! Com essa idade não deveria beber, mas como isso vai promover a regeneração celular e aumentar sua cura explosivamente por um período, permitirei, e também, com a ressaca que o atingirá na manhã seguinte, dúvido que ele irá querer beber novamente tão cedo.
— Assim que se fala alfae! — O gnoma gargalhou e tomou outro gole, cortanto uma larga fatia do pernil para si e abocanhando a carne — Então festejemos, pois amanhã trabalheremos sem cessar por um bom tempo — ele então cortou um pedaço da carne e estufou na boca do garoto — Coma garoto, coma muito, vai precisar!
Lucet que a essa altura não conseguia sequer pensar direito, apenas bebeu e comeu sem questionar. A imensidão de sabores e aromas inundando seus sentidos enquanto ficava cada vez mais quente e, surpreendentemente, relaxado e confortável naquele pequeno banquete.
Por quase duas horas o trio comeu, riu e conversou. Lucet que havia se embebedado ficara ainda mais empolgado e até mesmo desafiou o gnoma para disputas de quedas de braço diversas vezes enquanto ria. Iogi aceitou aos risos, porém, o que ele não esperava é que o garoto iria posar um tremendo desafio para si, o que fez com que ele encarasse Kaella com uma cara que dizia.
“O que vocês maniacos por magia deram para esse garoto enquanto ele dormia?”
Para esse pensamento, a alfae apenas respondeu:
— Não fomos os únicos a dar benção e proteção para este garoto — ela disse, uma expressão curiosa em seu rosto — Os pais dele deixaram imensos presentes para ele, ainda que não saibamos e percebamos.