Os Contos de Anima - Capítulo 53
Não fora possível identificar exatamente quem começou o efeito, mas, logo após os dois ficarem travados num empasse e concordarem com um empate mútuo, algum alfae começou a aplaudir, sozinho, nas arquibancas, o que acabou por gerar uma onda de aplausos tão potentes quanto granadas que, em questão de segundos, abafaram a conversa do garoto e da garota que estava sendo projetada, assim, ninguém, com exceção daqueles que focaram sua atenção e alguns feitiços para essa tarefa, pôde escutar o que eles disseram.
— Porque aceitou o empate? — Lucet perguntou, se levantando e ajudando e extendendo sua mão para ajudar a garota a levantar — Sei bem que poderia ter virado a luta com alguns truques.
— Porque não seria justo com você ter uma derrota desta forma — Luna respondeu, aceitando a ajuda e se erguendo — Lutar contra toda a regia, especialmente sozinho como você fez, não é uma tarefa fácil para nenhum alfae de qualquer uma das outras esquadras — ela continuou — E ainda por cima, você tem o poder individual de derrotar qualquer um da regia, então isso não foi exatamente um combate justo para o nosso lado também, afinal, as esquadras são grupos treinados com o propósito de maximizar tanto a força individual de cada membro quanto seu poder tático e estratégico, assim, se você lutasse contra todos nós ao mesmo tempo, não teria a menor chance.
— Não seria justo comigo? — Lucet respondeu com um leve riso — Se querem falar em justiça, porque propuseram essa luta ridícula dois dias depois de eu acordar de um coma de quase três anos?
— Os designios e vontades de Vossa Majestade são um mistério — Luna respondeu, um sorriso decorando seu rosto — Seus planos são longos e complexos, não cabe a nós entender, apenas executá-los.
Lucet colocou sua adaga na bainha, bateu o pó de suas roupas e então, após tomar um largo folêgo e se esticar, disse ao extender sua mão:
— Obrigado por este combate — ele disse — Agradeço a você e sua esquadra por esta experiência. Graças a isso, sei que tenho muito a melhorar e que terei de retreinar muita coisa com minha mestra, que posso ficar ainda mais forte, portanto, obrigado, Capitã Luna, ou será que eu deveria dizer, Vossa Majestade Luna Regios?
Luna o comprimentou ao agarrar sua mão enquanto ouvia os agradecimentos, porém, quando ele mencionou sobre sua identidade, ela olhou para ele um tanto surpresa, e questioniou ao rir:
— O que entregou minha identidade?
— Você veste o brasão real em sua armadura — Lucet respondeu, um sorriso misterioso em seu rosto.
— Mas qualquer um dos guardas reais também o usa — A garota rebateu.
— Não logo acima do coração — Ele retrucou, um sorriso levado em seu rosto — Eles usam nas capas, “Vossa Majestade”, ao contrário da senhorita, seu pai e sua mãe que usam no peito. Além do mais, você é muito parecida com sua mãe em aparência, então, meio dificil não perceber — Ele concluiu ao rir.
— Você é tão perceptivo quanto meu pai me falou — Luna riu, um sorriso radiante decorando seu rosto — E corajoso também, afinal, geralmente quando descobrem minha identidade tendem a me tratar com reverência e medo, ao passo que você, Lucet, me trata com mais irreverência do que nunca, me diga então, você não tem medo das consequências de tratar a princesa de lumina desta maneira?
— Nenhum.
Luna parou por alguns instantes, surpresa com a resposta tão imediata do garoto. Após um certo tempo, ela questionou:
— Porquê?
— Porque eu acho dificil que Lucis escolha agir contra mim graças ao contrato que ele impôs sobre nós — ele respondeu — Os alfae não agiram contra mim e me auxiliaram em meu objetivo com todas as suas forças, ao passo de que eu e minha linhagem seremos aliados dos alfae para sempre.
A garota o olhou com uma expressão complexa. Obviamente ela não fazia idéia de que tal contrato existia, e provavelmente não saberia por um bom tempo se não fosse a revelação do garoto, mas, ao ver a escala de que se tratava este contrato, ela começou a compreender melhor o porquê de Lucis a ter comandado a lutar contra um garoto que acabara de acordar de um coma.
Os aplausos logo cessaram pouco depois dos dois terminarem de conversar. Lucis se ergueu de seu assento e deu ordens para que os alfae desfizessem as alterações do campo enquanto Lucet e Luna se retiraram, cada um para sua respectiva entrada da arena. Alguns minutos depois, os combatentes retornaram e se posicionaram ao centro da arena, a esquadra liderada por Luna, a rainha e o monarca de um lado ao passo que Lucet e Kaella se posicionaram do outro. Lucis amplificou sua voz e anúnciou:
— Um combate de grande qualidade — ele disse — Isto foi o que vi hoje, e acredito que o mesmo foi visto por todos vocês, meu povo de Alta Lustra, portanto, farei algumas perguntas, tanto para vocês, quanto para os participantes — ele continuou — Primeiro, digam-me, caros súditos, acreditam que alguém das habilidades do meio sangue Lucet é digno de ser aliado de nossa nação?
A platéia logo ecoou suas opiniões, existia sim uma oposição devido ao fato de ele ser justamente um meio sangue, porém esta foi rapidamente afogada pelos grandes aplausos e suporte daqueles que reconheciam a habilidade do garoto, especialmente considerando o fato dele ter acordado recentemente de um coma.
— Excelente, vejo que concordam comigo — Lucis riu, então se virou para a esquadra — E vocês, aqueles que lutaram contra Lucet, o que pensam?
O silêncio que seguiu durou vários minutos. A equipe, com exceção da capitâ, tinha sido derrotada, cada um de uma maneira mais impressionante do que a outra, porém, nenhum deles tinha em mente admitir a força do oponente, afinal, ele não os tinha enfrentado em sua melhor forma, usando seus truques e técnicas estranhas para os derrotar, o que os deixava muito frustrado e sem qualquer vontade de de comentar.
Lucis obviamente sabia destes pensamentos e estava prestes a comentar sobre isso, porém, Luna o impediu de falar ao dizer:
— Acredito que posso falar por todos quando falo que, sem sombra de dúvidas, Lucet é forte — Ela disse num tom calmo e suave, atraindo a atenção de todos para si — Porém, também vejo que ele não nos enfrentou em nosso apice de força, que é quando combatemos em equipe, o que pode nos dar a impressão de que ele não realmente ganhou este combate, afinal, sem usar nossa força total e ser completamente derrotados, como poderíamos admitir a derrota? — Ela questionou, dando voz aos pensamentos dos companheiros que, apesar de ainda contráriados, amaciaram suas expressões.
O monarca olhou para sua filha, um leve sorriso em seu rosto, e deu um aceno de cabeça, concordando com sua fala pois entendia as intenções da garota, mentalmente a elogiando por sua habilidade de apaziguar as tensões de ambos os lados.
—Ainda assim, também devo reconhecer que Lucet também não está em sua melhor forma, o que balanceia um pouco as coisas — ela continuou —ele está sem um de seus braços e com um corpo completamente diferente do que possuía antes de entrar em coma. Mal fazem dois dias que ele acordou deste longo sono de quase três anos e, apesar de ter recebido o melhor tratamento possível e ter um melhoramento exponêncial do seu corpo graças aos recursos utilizados pela guardiã… — ela falou, dando um breve sorriso para Kaella, que a respondeu com um sorriso próprio — Ele está praticamente destreinado e ainda assim conseguiu derrotar quatro dos nossos e empatar comigo, o que, considerando tudo isso me leva a concluir que sim, ele é digno.
Lucet não sabia exatamente porque, mas, no momento em que foi reconhecido pela garota, ele ficou surpreso ao se encontrar um pouco mais confiante e feliz consigo. Ter seus esforços e poder reconhecidos era uma sensação boa, mas, algo sobre como ela falava sobre ele o deixava… Animado.
O monarca se virou para questionar Lucet, e quando o fez, não pode deixar de reparar como ele olhava, ainda que tentasse ser o mais discreto possível, fixamente para Luna, sua expressão levemente vaga e, como Lucis pôde bem ver, mostrando facilmente sua curiosidade e interesse na garota. Vendo a oportunidade de trazer o garoto com ainda mais facilidade para seu lado, logo traçou alguns planos em sua mente e prontamente, com um sorriso ainda mais satisfeito que antes, questionou o garoto:
— Diga-me agora, Lucet — ele falou, atraindo a atenção do garoto para si — O que pensa sobre este combate, acredita que pode confiar em meu povo na sua jornada?
Lucet ficou por alguns momentos encarando o monarca um pouco confuso, sua mente em branco pois havia temporariamente esquecido exatamente porque estava ali e oque estava fazendo. Após alguns suspiros lentos e pesados enquanto organizava seus pensamentos, o olhar afiado de Lucet retornou e, após dar um último chacoalho e retirar a imagem da garota de cabelo prateado e olhos violetas da sua cabeça, ele respondeu com uma expressão séria:
— Apesar das condições pelas quais este evento surgiu, “Vossa Majestade” — ele disse com um tanto de desdém — Eu devo admitir que certamente comandas uma poderosa força e que certamente posso acreditar na potencia de seu povo, e em sua competência — Ao dizer isso, seus olhos levemente se viraram para a direção de Luna — E que sua linhagem certamente é uma que vale à pena ter como aliados.
Kaella, notando o comportamento de Lucet e o sorriso triunfal de Lucis, logo notou do que se tratava parte da resposta de seu filho e suspirou, pensando de quais maneiras ela poderia conversar sobre isso com ele depois. O monarca, por outro lado, ficou extremamente satisfeito com a resposta e os gestos do garoto e prontamente anúnciou:
— Excelente! — ele disse com uma voz satisfeita, amplificando-a para que todos ouvissem — Vejo que todos os lados, tal como eu, concordam que esta criança é digna de ser uma aliada, portanto, assim o será, e por tal, eu espero que ele seja tratado com o mesmo respeito que qualquer um de nossos outros aliados, independente de seu status sanguineo, afinal, não somos retrógrados ao ponto de ser preconceituosos por causa disso, correto? Com isso dito, eu declaro este combate terminado e esta aliança, oficial.
Após este anúncio, o povo começou a dispersar e, em questão de minutos, as arquibancadas estavam vazias, deixando apenas os guardas, o monarca e sua rainha, Kaella, Lucet e os combatentes. Lucet e Kaella estavam prestes a se retirar, havendo já virado e começado a andar em direção à saída quando um dos membros da esquadra, o meio sangue mascarado, vocalizou a insatisfação do grupo:
— Você apenas venceu por sorte de não nos enfrentar em equipe, meio sangue, sua vitória foi vazia.
Lucet, porém, não se deu o trabalho de virar e apenas respondeu:
— Claro, tão vazia quanto sua coragem de acreditar que este combate foi qualquer coisa além de uma grande piada. Se quer lutar ganhar tanto assim, porque não fica forte o bastante para me derrotar com sua própria força ao invés de chorar por não ter seus amiguinhos do seu lado, meio sangue?
O grupo que observava avidamente a oportunidade de atacar Lucet no momento em que ele resolvesse revidar, ficou em silêncio, atônitos. Eles sabiam que o companheiro mascarado deles era um meio sangue, o problema foi que esta resposta fora não apenas para ele, mas servia perfeitamente para qualquer um que não fosse a capitã. Incapazes de responder, o grupo não pôde fazer nada além de observar o par, mãe e filho, irem embora e desaparecerem da arena sem lhes dar qualquer atenção adicional.
Lucis, vendo as expressões conflitantes do grupo suspirou e se virou com sua rainha para ir embora, pensando que seria melhor deixar que eles discutissem entre si o que fazer, afinal, nem todas as derrotas servem como derrocadas, pois como um os melhores metais, a pressão de um rival serviria para os fortalecer.
Após sair do portal da arena e retornar para o quarto onde Lucet havia dormido até a noite anterior, o garoto capotou de bruço na cama, suspirando enquanto sentia as inúmeras dores em seu corpo.
— Droga — ele reclamou — Eu sei que ele tinha que me colocar para lutar, mas não dava para esperar um pouco.
Kaella estava prestes a responder, quando de repente, ela ouviu a porta ser aberta, se lembrando imediatamente que não tivera tempo de erguer as barreiras e rápidamente se aprontou para atacar o intruso, mas, quando viu a aparência diminuta, ainda que parruda, do mesmo, relaxou e até sorriu, quase rindo, especialmente quando ouviu sua voz enérgica e um tanto rude zombar:
— Bah! — ele dissera— Então o pirralho que treinei com tanto esmero na forja está reclamando de alguns ossos trincados e combates em sequência? Vejo que o sono te deixou mole, pequeno corvo.