Os Contos de Anima - Capítulo 112
No horizonte, era possível enxergar uma luz distinta das estrelas acima, um ponto dourado que se afastava cada vez mais, seu brilho enfraquecendo e piscando até, eventualmente, desaparecer por completo. Mesmo com o olho do tirano ativo em sua máxima capacidade, não haviam dados que pudesse extrair do guerreiro formidável que avistara.
O motivo exato dessa dificuldade informacional era complexo de apontar, afinal, mesmo com em face a Maximillian, alguém consideravelmente mais poderoso que ele mesmo, Lucet ainda era capaz de adquirir informações sobre. O combatente luminoso que salvara a vida de Sophia, entretanto, era uma entidade misteriosa em qual seu poder ocular parecia não funcionar.
A frustração máxima, entretanto, vinha do resgate da oponente. Ela havia despertado um poder similar ao que deveria ser o talento da vida, todavia, era uma versão perigosa que não funcionava tal qual a sua própria.
Se por um lado existia a versão que o jovem corvo utilizava com grande efeito, compartilhando sua vitalidade e a incinerando para produzir efeitos destrutivos, havia, em contrapartida, a demonstrada pela garota. Uma energia violenta que não apenas gastava a vitalidade do usuário mas também roubava a força vital de seus arredores para produzir uma força similar.
Ainda irritadiço, Lucet desvencilhou mais correntes de si, devolvendo mais vinte guerreiros para o campo de batalha para que a missão fosse concluída com mais velocidade. A cada corrente adicional que saia de si, o garoto sentia a pressão aumentar em seu corpo, ao ponto que, por um tempo considerável, teve que se contentar em tolerar a dor enquanto estava completamente paralisado.
Neste período, Draco foi um aliado valioso, projetando toda sua estatura considerável para o proteger, suas escamas rubras reluzindo ocasionalmente com a luz das estrelas. Com o retorno dos vinte guerreiros, não demorou muito para que as tropas humanas fossem totalmente dizimadas e, ao fim de mais uma hora de combate, um aglomerado de luzes vermelhas foi vista serpenteando de volta para o corpo do rapaz que finalmente pode respirar com tranquilidade.
— Droga… — Lucet repousou a prótese mecânica, o membro metálico depositando a mão no bolso antes de ter seu brilho extraído, qualquer lustro vital desaparecendo — Quem era aquele cara? Já é a segunda vez que aparece, mas sua identidade continua um mistério — O garoto então recordou o domo protetivo que o combatente invocou em volta de Sophia — E como foi que ele fez aquilo?
De acordo com Faerthalux, os métodos de Puritas não passavam de imitações grotescas do poder que a entidade comandava. A utilização da igreja era bruta, valendo-se de quantia ao invés de qualidade, sacrificando vidas como se fossem nada para satisfazer os comandos sádicos da pontifícia.
Isso então trazia o questionamento sobre como exatamente aquele guerreiro era capaz de executar um construto tão sólido e, mais importante que isso, sem qualquer auxílio. Em suas aparições no campo de batalha, o guerreiro estava sempre sozinho e não parecia necessitar de qualquer ajuda externa para executar suas técnicas formidáveis.
— Esse cara é um perigo… — Um murmúrio escapou por entre os dentes de Lucet, uma crescente irritação injetada em suas palavras — Se eu quiser derrotar a pontifícia, terei que dar um jeito nele primeiro.
Chegando ao fim do combate, Lucet retraiu suas defesas, preservando qualquer resquício de energia que ainda possuía e, ao fazê-lo, a lâmina dourada de vinco negro e fio avermelhado retornou ao seu formato original de garra. O jovem depositou o armamento na bainha e, sentindo o corpo um tanto lento e exaurido dos esforços, passou um braço sobre o pescoço de Draco.
— Obrigado pela ajuda, grandalhão — Um sorriso gentil brotando no rosto virado para o solo enquanto respirava lentamente, Lucet murmurou, transmitindo uma onda de gratidão através da conexão emocional — Sem você, eu não teria sobrevivido essa noite.
A criatura mostrou os dentes, soltando um rosnado baixo, como se estivesse imitando a feição e trejeitos do rapaz em uma tentativa estranha de riso.
Foi então que Draco tomou uma ação inesperada e, com um rugido, esticou o pescoço e passou a cabeça por debaixo do tronco do garoto, erguendo seu corpo e o jogando para cima de suas costas. Lucet soltou um breve grito de susto antes de colidir com a criada, seu fôlego sendo empurrado para fora do corpo com a batida.
— E-espera! Draco! O que está fazendo?
A fera apenas rosnou baixo, soltando uma espécie de tosse que Lucet rapidamente compreendeu ser uma tentativa de gargalhada. Sem qualquer resposta, Draco balançou o corpo, forçando o garoto a se ajustar sobre si antes de estender os braços, abrindo as asas e apoiando-se sob as patas traseiras e a cauda antes de rugir, o ar vibrando perante o desafio ao próprio céu.
— Eu consigo andar sozinho! — Protestando os movimentos do parceiro, Lucet tentou descer, contudo, a posição precária o faria cair se tentasse — Me coloca no chão!
O chão sacudiu com os passos da fera enquanto Draco avançava pela planície, ganhando velocidade enquanto batia as asas, gerando força e ocasionalmente dando pulos que ameaçavam alçá-lo ao ar. A essa altura, os protestos de Lucet eram praticamente direcionados a uma parede, os esforços da criatura gerando sons como os de tempestades e trovões distantes.
De repente, a besta ergueu as asas em um esforço máximo e, por um instante, cessou qualquer movimento, curvando as pernas. O fôlego travou na garganta do garoto, o coração praticamente parado entre um batimento e outro, suor frio escorrendo pela testa enquanto uma pedra parecia afundar seu estômago.
“Ah não…”
O chão trincou, fragmentos flutuando diante de uma pressão invisível exercida pela fera e, no instante seguinte, terra, grama e pedaços de rocha explodiram para todos os lados quando Draco bateu as asas, suas poderosas pernas esticando feito molas. A visão de Lucet se tornou um borrão enquanto a paisagem do céu estrelado se distorceu em um vórtice negro, a imensa pressão do vento ameaçando arremessar o corpo do jovem para fora.
— D-dracoooooo….!
Um grito desesperado se espalhou pela planície enquanto uma massa vermelha disparava em direção ao domo celeste feito um cometa, cada batida de asa ressoando feito a explosão de um trovão. Em questão de segundos, a planície se assemelhava a um grande borrão, o ar se tornando cada vez mais frio.
Quando a fera decidiu parar em meio ao ar, as asas batendo ao seu lado, Lucet teve que se esforçar para conter um calafrio e prontamente começou a circular o pouco restante da sua mana para aquecer o corpo. Enquanto leves plumas de névoa surgiam ao seu redor, o corvo deu um tapa atrás da cabeça do companheiro com sua mão metálica que fora forçado a ativar no último instante para não cair.
— Será que você quer me explicar porque é que você me trouxe a centenas de metros do chão com essa pressa toda!?
As emoções da criatura, com o tempo, foram se tornando mais complexas e as mensagens que era capaz de comunicar através do laço emocional se tornavam mais especificas e detalhadas e, neste momento, Draco inclusive foi capaz de transmitir uma imagem do que desejava. Era o cenário de si mesmo, batendo as asas em meio a um espaço vazio.
Aparentemente, tudo que a fera ambicionava era ter um voo fora do espaço vazio em que habitava quando fora de Anima. A dimensão externa era um lugar reconfortante para se descansar e, ao mesmo tempo, um campo de batalha quando necessário treinar.
O selo de contrato marcado no braço do corvo era um símbolo de seu local seguro na dimensão, um espaço exclusivo para repousar, mas, isso não implicava que ele não tinha vontade de voar em cantos mais seguros que uma tempestade extradimensional, por mais forte que ficasse ao fazê-lo com regularidade.
Um sorriso cresceu no rosto do jovem combatente ao entender o desejo de seu companheiro e, por isso, transmitiu as coordenadas de Alta Lustra para Draco. Respirando fundo, Lucet segurou firme no pescoço da fera e se deixou levar, resistindo a aceleração enquanto sentia o vento soprar ao seu redor, as asas batendo em um ritmo confortável que ajudava a cortar a pressão do ar.
— Vamos para casa, grandão — Um sussurro escapou por entre os lábios do garoto, seus olhos fechando enquanto deitava a cabeça na nuca do companheiro — Estou exausto da luta, mas, pelo menos, o Rubro já era — Suspirando, o meio-sangue suprimiu um bocejo — E essa guerra está longe de acabar.
Por mais veloz que Draco pudesse ser em combate, esperar que ele executasse a mesma velocidade em voo era surreal, mas, mesmo com isso em mente, o jovem não esperava que o companheiro fosse cruzar a distância entre a planície na fronteira de Barda e a capital de Lumina em meras quatro horas.
Quando finalmente se ergueu, Lucet encontrou a alguma distância a frente as miríades luminosas de Alta Lustra, a capital extraordinariamente arcana dos alfae. Não demorou muito para que sinais de aviso para que diminuíssem a velocidade, bem como comunicados de alerta para forasteiros fossem emitidos em alto em bom tom.
Com uma guerra declarada abertamente contra Puritas, e indiretamente contra todo o território humano, não era estranho que medidas de segurança mais estritas fossem aplicadas. Qualquer viajante poderia ser uma ameaça, portanto, tais medidas eram compreensíveis, mas, o jovem não conseguiu impedir que uma certa tinge de irritação viesse aos pensamentos.
O monarca estava ciente do seu retorno, certamente teria avisado a guarda da capital que estaria chegando, não? Em uma demonstração das técnicas impressionantes dos alfae, com um leve toque dos gnoma, um agrupamento de dez guarda se destacou das grandes muralhas cristalinas que circundavam a cidade, flutuando em pedaços lapidados de cristal reluzente inscritos com runas escuras que contrastavam diretamente com o equipamento.
— Alto, forasteiro! — O alfae mais à frente do grupo, suas feições maioritariamente cobertas pela armadura, exceto pelo seu rabo de cavalo em cor de madeira, comandou — Declare sua identidade ou enfrente o poder da guarda real.
A fera diminuiu sua velocidade e Lucet se endireitou nas costas de Draco.
— Acredito que já me conhecem, não? — Lucet abriu um sorriso cansado, erguendo o braço metálico e acenando com a prótese — Minha mãe ou Lucis já devem ter avisado que estaria voltando, portanto — ele então recolheu o braço e firmou novamente um aperto gentil nas costas do companheiro — Poderiam abrir caminho? Estamos exaustos da viagem.
Por um momento, os guardas discutiram entre si a identidade do jovem e, como esperado, não demorou muito para que o agrupamento se dividisse em dois, abrindo caminho para que Draco voasse em direção ao palácio real. Ao passar pelos guardas, Lucet reparou que os olhares dos guerreiros carregavam certa incredulidade e reverência, tanto que eles até mesmo curvaram os corpos minimamente em saudação ao seu retorno.
“O que é que foi isso hein? ”
O garoto não conseguiu evitar o surgir de questionamentos na cabeça, por mais cansado que estivesse, especialmente com a cena a seguir.
Enquanto sobrevoava a capital, suas fortes luzes quase ofuscantes em meio a madrugada onde o céu ainda estava escuro, o corpo identificou uma movimentação estranha nas ruas, casas, prédios e até nas praças espalhadas pela metrópole. Por onde passava, podia ver os olhares se virando em sua direção, acompanhando avidamente cada um dos seus movimentos.
Uma suspeita desconfortável começou a se manifestar nas profundezas da mente e, quando finalmente chegou ao palácio, essa suspeita foi rapidamente confirmada. Ao aterrissar no espaço designado pela guarda, Draco optou por retornado a sua dimensão e descansar, esfregando o focinho contra o peito do jovem antes de desaparecer em um lampejo, a sensação de peso retornando para o braço de Lucet.
O clima no palácio era quase sufocante. Por onde quer que andasse, os olhares das dezenas de alfae, sejam guardas, serviçais ou até mesmo crianças que encontrava, todos sem exceção olhavam para ele como uma espécie de fera ou algo alienígena que mal podiam crer ser real.
Chegou ao ponto de que, em determinado momento, o jovem se enfezou e liberou um pouco da aura opressiva do talento da vida, energizando a prótese ao encarar um guarda particularmente expressivo próximo ao salão real.
— Qual é a dos olhares hein!? — A voz do corvo ecoou feito um trovão no corredor.
Antes que o combatente tivesse a oportunidade de retrucar, rapidamente arrumando sua expressão incrédula, uma segunda voz igualmente potente o respondeu.
— Entre, Lucet, temos muito o que conversar.