Os Contos de Anima - Capítulo 108
Por um tempo incontável, tudo que Sophia enxergava era trevas. Não as frias e hostis do plano das sombras, mas algo imensamente mais confortável e acolhedor. Não era incomum que alguém exausto encontrasse descanso na inconsciência, afinal, uma vez lá, não haviam cobranças ou problemas. Neste espaço onde nem mesmo os sonhos ousavam pisar e tudo era indistinto, ali era onde se encontrava o verdadeiro relaxar dos pensamentos, afinal, eles também não tinham poder aqui.
Talvez uma palavra melhor para esta condição seria… Fugaz. Aqui, suas preocupações eram irrelevantes e qualquer fragmento mental de seus questionamentos anteriores era algo distante e inacessível. Porquanto a escuridão tomasse seu pensar, conflitos se tornavam irrisórios e, enquanto permanecesse neste local, a garota estava tranquilamente a salvo do mundo exterior.
Seu corpo flutuava, perdido em um mar de inexistência, partilhando desta sensação enquanto tentava se encontrar em meio ao vazio. Era simplesmente impossível intuir qualquer nível de concentração ou percepção nesta aparentemente infindável treva, tão difícil que até mesmo recordar sua própria identidade, sua sensação de ser ou algo mais simples como seu nome, mostrava-se um luxo que não pertencia a esta jovem.
Mas, este estado ilusório não estava fadado a durar. De algum lugar, um ponto não identificado deste vácuo, uma sensação invadiu o que supostamente deveria ser uma zona inviolável. No início, esta emoção não passava de uma simples pressão, algo que anunciasse sua presença e afirmasse sua influência nos acontecimentos, porém, logo em seguida este cresceu, explosivamente.
O que deveria ser uma condição intangível e inalcançável rapidamente se tornou mais sólido. Em uma velocidade assustadora, as sensações retornaram feito onda, atropelando qualquer inconsistência com seu imparável peso de realidade. Primeiro, o calor retornou, ela conseguia sentir o pulsar do coração em seu peito, vagarosamente bombeando sangue ao redor do seu corpo, aquecendo lentamente suas extremidades e distribuindo a sensação vital.
Em seguida, sua audição voltou a enviar sinais ao seu cérebro, o som de relâmpagos, explosões e rachaduras ecoando aparentemente distantes, mas ao mesmo tempo distintamente próximas. Estes estímulos foram logo acompanhados pelo retorno sensorial de seu tato que rapidamente tratou de afugentar o calor que crescia por dentro, combatendo-o com o frio advindo de uma brisa serena, daquelas inconfundivelmente pertencentes ao período noturno, fazendo com que os pelos do seu corpo se erguessem e um calafrio lhe subisse a espinha, seus dentes involuntariamente batendo por um momento antes que recobrasse o controle de suas funções.
Olfato então ressurgiu, trazendo consigo uma quantia tremenda de aromas, alguns severamente mais distintos e sobressalentes. Dentre os cheiros suaves da noite e da grama coberta por orvalho presentes no campo de batalha, também existia uma irritante quantia de pó, bem como o fedor de sangue e óleo impregnado no ar, logo acompanhado pelo odor que trazia a sua mente a imagem de rocha aquecida.
Foi assim que sua mente recobrou, ainda que de maneira um tanto desconfortável, a seriedade da situação que se encontrava. Informações, inicialmente desconexas, surgiram feito torrente, causando-lhe momentânea confusão bem como uma leve onda de náusea, que a lembrou que tinha órgãos, logo devolvendo sua sensação peristáltica, trazendo a mente um relatório breve de danos e um imparável e dolorido arder acompanhado de pontadas em diversas partes do corpo.
O físico então denunciou não apenas o estrago a sua integridade, como também a exaustão que ali habitava. Sophia relembrou o peso que o mundo exercia, a gravidade em si puxando-a mais próxima do solo, sua estrutura desgastada apresentando dificuldades nas coisas mais básicas, especialmente em respirar já que, mesmo que não partidas, haviam trincas em suas costelas e, se o verdadeiro senhor não tivesse piedade com seu fracasso atual, até mesmo sua coluna as teria.
Ela se sentia excepcionalmente pesada e até mesmo controlar as pontas dos dedos se mostrava uma tarefa considerável, porém, conforme passavam os segundos, ela recuperava um pouco de suas forças, acumulando-a lentamente para que pudesse eventualmente abrir os olhos e se levantar, mas, antes que pudesse fazer isso, uma sensação curiosa que identificara naquilo que logo se lembrou ser a última vez que confrontara o maldito herege meio-sangue e ser salva por seu mestre.
Ira e sangue, calor incontrolável bem como energia aparentemente ilimitada. Sophia detectava uma espécie de sentido alternativo, algo que escapa das suas habilidades mágicas e dos cinco usuais. A sensação especifica era de familiaridade e pertencimento, como se estivesse desenterrando das profundezas do seu corpo algo que sempre deveria ser seu, seu e de todo filho do pó que caminhasse sobre Anima, mas que ninguém entrara em contato previamente.
Empoderada por esta energia, a garota logo direcionou seus esforços para abrir os olhos, ela sentia que havia algo próximo a si, bem como, conforme suas memórias se tornavam mais claras, um perigo iminente. Ela estava no campo de batalha, em dupla com seu mestre, a jovem deveria emboscar o maldito meio-sangue e matá-lo, algo que não deveria ser muito difícil considerando a habilidade de ambos.
Infelizmente, sua ambição para exterminar este mal a levou ao descuido e, em seu ataque decisivo, falhou e foi rapidamente subjugada pelo corvo. Se ainda estava viva, seu mestre deveria estar por perto, ainda lutando com Lucet para protege-la deste verme. Assim, ela sentiu o calor do sangue correndo em suas veias crescer ainda mais, enchendo-a de poder fervente que logo escalou por sua espinha, aquecendo as estruturas e aliviando sua dor até que alcançou os orbes visuais em seu rosto que lentamente se abriram.
Tudo ainda estava muito escuro, mesmo após desvencilhar-se da treva da inconsciência. O céu noturno permanecia impassível e inalterado, tranquilo diante do combate que ocorria logo abaixo de si. A brisa que fluía por entre as rochas e gramados acariciava sua pele gentilmente, trazendo-lhe arrepios enquanto o aroma de sangue estava rico no ar, pungente e inevitável mesmo que respirasse pela boca.
Tamanha era a morte espalhada neste local que o fluido da vida corria feito um rio, penetrando as rachaduras e ensopando o solo com a distinta coloração escarlate. Ela quase conseguia sentir o sabor de todos aqueles corpos dilacerados e armamentos metálicos e oleosos estilhaçados. Ela se virou brevemente, sua visão ainda turva e seus sentidos um tanto confusos, tentando conter o impulso de regurgitar.
Foi então que palavras começaram a lhe alcançar. Ela ouviu o tornar de corpos, passos e então uma tensão cresceu. Zombaria alta e descarada era direcionada ao seu mestre, um tom tão despreocupado que qualquer um que ouvisse poderia distinguir a certeza de vitória contida naquela voz. Ela tinha de se virar! Isso não podia ficar assim! Tinha de agir e precisava fazer isso agora!
Torcendo o corpo, Sophia então apoiou-se sobre o braço esquerdo, direcionando esta estranha energia de forma instintiva para conseguir mover seu físico enfraquecido, lentamente se erguendo até que pudesse locomover os joelhos, aproximando-os do tronco antes de finalmente plantar as duas mãos no solo e empurrar, endireitando suas costas com grande esforço.
Foi neste momento, entretanto, que ouviu o solo se partir com um passo pesado e, movimentando o poder fervente dentro de si com o máximo de velocidade que era capaz, a jovem corvo virou-se a tempo de ver seu mestre avançando em tremenda velocidade contra o herege meio-sangue. Sua velocidade era tamanha que os olhos da jovem apenas captaram um borrão enegrecido pela noite após o som.
Devido ao posicionamento arrogante de seu inimigo, entretanto, a garota pode deduzir rapidamente que o atacante era seu mestre e este movimento era um que seria fatal e impossível de bloquear ou evadir. A vitória estava certa! Uma grande ameaça seria eliminada! Sophia já praticamente sorria com a esta conquista da santa igreja, no fim, contudo, esta era uma batalha garantida, afinal, o verdadeiro senhor jamais deixarei seus fiéis serem derrotados.
A vida, todavia, jamais era tão simples. Um súbito clarão verde alumiou todo o espaço, fazendo com que a garota erguesse uma mão para proteger-se da luz repentina, mantendo, porém, frestas entre seus dedos para observar a inevitável derrota de seu odioso inimigo. Foi então que o inicio do desespero caiu sobre a mente da jovem como o cerrar de cortinas em uma peça particularmente desagradável.
O borrão enegrecido foi atingido em cheio pelo raio esmeralda, cessando completamente todos os seus movimentos instantaneamente, revelando a figura de Rubro, seu querido mestre, subitamente inerte tal qual uma estátua. Os olhos de Sophia buscaram a afirmação de seu professor, a certeza da vitória que ela já celebrava enquanto um sorriso radiante pendia em seu rosto, porém, o que ela encontrou ali foi o mais profundo terror.
No último instante que restara, olhos repletos de angustia, ira, remorso e uma miríade de emoções confusas giraram na direção da jovem, focando seus últimos instantes na sua preciosa aprendiz. Não houve nenhum discurso grandioso nem despedidas repletas de lágrimas e sentimentos galopantes como se esperaria de um fim trágico em um conto de fadas.
Não, o que havia naqueles olhos era apenas uma palavra: “Corra”. Sophia não conseguia compreender o porquê daquele aviso inicialmente, mas logo, a sequência de eventos a seguir explicou a sentença. A jovem assistiu atônita enquanto algumas luzes, similares a chamas, só que coloridas com tinges de sangue, viajaram na direção do meio-sangue, sendo puxadas até ele por correntes que eram recolhidas para dentro de si, totalizando cinco delas.
— Ufa, essa foi por pouco — a garota ouviu Lucet comentar, grande alívio em sua voz — Um instante mais tarde e eu seria decapitado.
Um breve riso escapou dos lábios agora formados em um sorriso confiante do rapaz enquanto ele olhava para trás, agradecendo a fera de escamas rubras atrás de si, seu olho esmeralda radiando crescentes quantias de perigo e poder.
— Mas, com você ao meu lado, essa tava no papo — o garoto continuou, seus movimentos mais leves que previamente, trazendo sua lâmina na altura do peito de seu oponente — Contudo, você podia ter me avisado que tinha um raio de paralisia.
Um grunhido insatisfeito escapou dos lábios escamosos da besta.
— Okay, okay — Lucet riu — Não vou desperdiçar a oportunidade, sei que não temos muito tempo, então, vamos acabar com isso.
O garoto então olhou no rosto de seu oponente, solenidade e firmeza se apossando de sua expressão.
— Você é formidável, Rubro — o jovem comentou — É uma pena que esta do lado errado.
Sem hesitar, o meio-sangue avançou e, em um movimento preciso, flexionou seus joelhos levemente antes de firmar o aperto de seus dedos em volta do cabo ósseo. Em um instante, inspirou fundo e, baixando seu armamento para mirar no coração do oponente, aplicou força na ponta de seus pés, direcionando uma quantia significativa das chamas rubras para a lâmina de vinco negro e fio dourado.
Não houve sequer o som da perfuração. A arma passou pelo corpo do inimigo como se estivesse atravessando um véu de água e, no instante seguinte, liberou seu terrível poder, reduzindo em uma fração de segundos o corvo de Puritas a cinzas.