Os Contos de Anima - Capítulo 107
Muitos nomes ainda seriam atribuídos a esta fera no futuro. Desde coisas simples como “A Fortaleza Vermelha” até algumas mais agressivas feito “O Massacre”. Talvez, quando comparado seus feitos com os de seu parceiro, Draco, ainda incompleto neste momento de primeira aparição bélica, não fossem tão impressionantes, mas, uma vez que viesse este tempo, suas conquistas certamente não poderiam ser ignoradas.
Neste tempo, ele seria encontrado em vários lugares. Por vezes, seria avistado sobrevoando e caçando grandes bestas aéreas que viajavam pelos céus da grande selva que serve como casa dos Faeram, já em outras ocasiões, não era difícil observar sua estrutura massiva mergulhar nos mares tempestuosos em que habitam os Durza em busca de presas marítimas.
O local, porém, onde era mais fácil de encontra-lo era sem dúvidas o centro de Anima, sua estrutura corpulenta e invicta descansando sobre raízes colossais da casa daquele que ascendeu a posição suprema de Monarca, sua alcunha sendo Meia-Noite, um ser que mudou o destino do mundo.
Estudiosos tentariam descobrir as origens da besta temida tal qual uma calamidade ambulante, especulando sobre os limites de sua habilidade e a total extensão de seu catastrófico poderio, mas, este é um assunto bem mais longo e complexo que seria melhor estudado em longos e enfadonhos livros grossos de centenas de páginas, algo que não cabe ao momento que surgira, afinal, diante de um futuro grandioso, é necessário ter um início no mínimo interessante.
A explosão sonora se propagou por toda a planície, tão alta e horrenda que era como se um canhão carregado de relâmpagos houvesse disparado, emitindo o som de uma atemorizante trovoada que parecia prenunciar o famigerado e profetizado fim dos tempos pregado pela “santa” igreja.
Por alguns breves momentos, o combate cessou por completo. Sejam homens ou guerreiros rubros, nenhum único musculo era movido ali que não fossem os da fera. Nem mesmo Lucet poderia ter previsto um estrondo tão poderoso que rompera todo o fluxo do conflito. Nesta breve ruptura temporal, o meio-sangue não pode evitar de pensar o quão bom era ser aliado desta catástrofe sonora, fato que foi logo recebido por uma pequena onda de emoções ambos orgulhosas e zombeteiras advindas da fera conectada a si.
Suas narinas, fendas negras entre as placas escarlates de sua grande face, logo acima de sua bocarra cheia de dentes, mexiam-se de forma quase que preguiçosa, inspirando vagarosamente após o rugido apenas para exalar breves plumas de fumo denso carregadas de um forte aroma de enxofre.
Em ritmo similar, sua boca, um lar de dezenas de lâminas brancas que aparentavam ser capazes de perfurar aço, atraía grandes goles de ar, seu físico tal qual um maquinário silencioso, transmitindo uma distinta sensação de perigo a qualquer que estivesse próximo.
As três grandes luzes focaram sua atenção aos oponentes que agora se viam paralisados, seja por medo ou pura tensão em preparo de algo pior que o rugido. Sophia, ferida como estava, não apresentava qualquer risco iminente para Draco, por tal, a fera escolheu ignorá-la e priorizar aquele que, após alguns instantes recuperou seus movimentos e direcionou toda sua pressão assassina e agressividade em sua direção.
— O que foi, Rubro? — Lucet deu voz as emoções que Draco transmitia, sua tonalidade ambos zombeteira e levemente violenta, soando como um rosnado e um riso ao mesmo tempo — Ficou com medo? Onde estava aquela sua determinação toda?
Como se para pontuar o desdém, Draco, sua calda feito uma serpente, balançou o membro agilmente antes de golpeá-lo contra o solo, causando ascender de uma pequena nuvem de poeira logo dispersa pela brisa da noite. O impacto ecoou como o partir de cascalho ou o romper de galhos, fazendo o oponente reagir inconscientemente e erguer sua guarda.
Lucet não conseguiu conter um breve riso. Havia consumido muito de sua mana e aura, e o uso do talento da vida já estava expandido ao limite, ainda assim, ele se sentia até seguro uma vez que seu companheiro surgira no campo de batalha.
O garoto sentiu as correntes se esticarem um pouco mais, facilmente concluindo que os oponentes agora estavam batendo em retirada, forçando seus soldados rubros a persegui-los, aumentando a distância entre eles e seu mestre, bem como a crescente tensão no corpo do rapaz que agora realmente se encontrava em uma posição deveras vulnerável.
As três energias ainda fluíam por seu corpo, mantendo sua armadura, armamento e reforço físico da melhor maneira que era capaz. Para qualquer um com olhos mais atentos, Lucet era um alvo relativamente fácil devido a suas restrições, mas, com a presença da grande fera, isso equilibrava as coisas e, algo que era essencial para suas próximas ações, seu oponente não estava em condições mentais para identificar sua fraqueza atual.
Atualmente, o meio-sangue conseguia apenas se mover. Seus membros pareciam ser feitos de chumbo, pesados e doloridos, seus reflexos, força e agilidade severamente prejudicados. Dar alguns passos em uma velocidade casual seria o máximo do que poderia fazer e, impondo aos seus movimentos uma forçosa leveza, ele fez exatamente isso. Um passo de cada vez, deliberado, calculado, erguendo lentamente seus braços para cima e apoiando sua lâmina sobre seu ombro, o garoto adotou a feição mais arrogante que pôde e continuou a falar:
— Vamos lá, Corvo! — ele ergueu o tom da sua voz, preenchendo-a com desdém e decorando seu rosto com um sorriso triunfal — Onde está toda aquela sua vontade? — ele deu mais um passo a frente, seu corpo tremendo brevemente com o esforço, algo que o garoto agilmente disfarçou com um riso curto e um balançar da cabeça — Achei que fosse definitivamente me matar, não é?
Lucet observou através do olho do tirano a face do inimigo se contorcer em uma careta raivosa, seus dentes rangendo enquanto seus dedos apertavam em volta do cabo de seu armamento. Ele notou o tensionar da perna e breve mover do joelho para o lado, Rubro iria atacar em uma fração de segundo e, do jeito que estava, ele não teria a menor chance de se defender, contudo, era exatamente isso que ele estava esperando.
Sua percepção visual funcionando aos limites graças ao seu olho bestial, o garoto enviou o alerta através de sua conexão com a fera. Mesmo diante do mundo azulado e desacelerado e com a certeza da execução de seu planejamento, o meio-sangue não pode evitar de temer o resultado dessa aposta. Se Draco não fosse rápido o bastante, ele seria morto em um único golpe.
O torso do corvo começou a se torcer enquanto quantias cada vez maiores de mana eram injetadas no movimento que ele estava prestes a desferir. Diante de uma ameaça tamanha, Rubro não tinha grandes chances de escapar com vida, mas, ele tinha alguém a proteger, e talvez por isso, potência imprevista surgiu na estrutura do guerreiro de puritas, seus movimentos tão velozes que quase atingiam uma velocidade “normal” diante da visão imperiosa do olho do tirano.
“Merda!” Lucet exclamou mentalmente enquanto tentava forçar seus músculos a obedecerem. Ele sentia o ardor de seu físico protestando contra o movimento súbito, porém, agora dificilmente era hora de pensar em dor ou consequências, ele tinha de bloquear esse golpe, Draco não ia conseguir atacar rápido o suficiente!
Ondas de ira e indignação, bem como um certo grau de temor inundaram a consciência do garoto através de sua conexão com a fera. O tempo e seu corpo pareciam se arrastar enquanto lentamente puxava a lâmina para baixo, utilizando cada fibra de seu ser e gota de energia que podia para acelerar o processo. Lucet sabia que não ia conseguir bloquear o golpe, mas se ao menos conseguisse alterar sua trajetória…
Erguendo-se em um movimento abrupto, Rubro saltou na direção do garoto, sua lâmina rente ao braço, rasgando o ar diagonalmente no que certamente seria um corte na garganta de seu oponente. Talvez, com alguma sorte, o armamento teria força o suficiente para decapitá-lo, sim, isso seria o suficiente para aplacar a ira que sentia, bem como eliminar uma ameaça para a santa igreja.
Os segundos e suas frações eram pontuados pelos batimentos velozes do coração do jovem corvo que martelava contra sua caixa torácica, desesperadamente enviando sangue e força para toda célula disponível, a sobrevivência estava em jogo. Lucet pode ouvir um passo atingir o solo com grande força, rachando a rocha abaixo enquanto o inimigo, seu corpo reluzindo com mana sombria, avançava a uma velocidade que, até mesmo diante do efeito azulado do olho do tirano, era considerada veloz.
Seus movimentos se tornando borrões diante da percepção sobrenatural do garoto, este deveria ser o golpe mais letal que já desferira em toda sua carreira, pensou o guerreiro de Puritas. Em sua mente, ele já podia enxergar carne e osso sendo dilacerados, rasgados em um golpe preciso e imparável. De fato, ele já conseguia saborear sua vitória bem como avistar o crânio da jovem ameaça separando-se do resto da estrutura.
Cada um de seus ossos, cada fibra de seus músculos, cada ligamento e junção, cada gota de mana em seu corpo unidos em um golpe assassino que lhe traria a vitória. Depois disso, a fera seria automaticamente expulsa para sua dimensão natal, o que o protegeria de sua retaliação, bem como salvaguardaria a vida de Sophia que estava desacordada logo atrás de si.
Tudo era perfeito em sua cabeça. A vitória era inevitável, afinal, como poderia uma criança arrogante bloquear seu golpe de força máxima bem como a maior velocidade que já exercera em toda sua vida? Sim, talvez nunca mais fosse capaz de lutar novamente devido ao dano que esse movimento estava causando ao seu corpo, mas, tendo em vista que teria cumprido sua missão com louvor, isso não o preocupava tanto, afinal, depois de uma vida de servidão e combates, talvez fosse esse o momento de se aposentar, e de que melhor maneira que com o golpe mais poderoso que já realizara?
O ar não era capaz de desacelerar o ataque nem por um instante sequer, tamanha era a energia imbuída no ataque e no próprio armamento que ele brevemente se mostrara capaz romper a barreira sonora, deixando um rastro anelado de vácuo do em seu caminho enquanto executava este golpe que era centenas de vezes superior à velocidade do som.
Lucet exercia cada fração de poder que era capaz, mas ele sabia que não seria capaz de nem mesmo alterar a trajetória do armamento e nisso, ele sentiu um grande desespero sombrear e confundir seus pensamentos. Memórias do seu curto porém impressionante período de vida inundando sua mente, mas, infelizmente para o corvo, o destino não era tão gentil e, com um derradeiro clarão esmeralda, tudo ficou escuro.