Os Contos de Anima - Capítulo 106
Do momento em que recebera o presente e subsequente contrato com o descendente de Dracul, Lucet tivera poucas, porém certamente chocantes interações com a criatura. Na primeira vez que o viu, o recém-nascido sequer era capaz de se manter em pé por muito tempo e mesmo assim, demonstrou um poder extraordinário para algo tão jovem, sendo capaz de desfazer seus fios de mana com um único disparo de energia.
Na segunda vez que interagiu com o pequeno, o garoto estava prestes a receber e consumir um elixir, uma poção de ingredientes escassos e produção tão complexa que é difícil dizer que existem mais de cem unidades deste produto em toda Anima, ainda assim, no instante em que fora oferecido o tônico, a criatura não hesitou em saltar para fora de seu selo e, por falta de palavra melhor, surrupiar o liquido antes de o engolir por inteiro e retornar para sua dimensão particular e prontamente dormir.
Um tempo considerável passou depois deste evento e, com exceção da energia que Lucet diariamente provia para a fera afim de acelerar seu desenvolvimento e a leve sensação de peso em seu braço, não havia qualquer sinal de que ela sequer estava viva, quanto mais consciente o suficiente para agir.
Foi difícil resistir a sensação de triunfo que rapidamente escalou o cérebro do meio-sangue. Se com apenas um dia de vida, sem qualquer nutrição, a fera já era capaz de partir uma rede de fios de mana, então após um mês de alimentação composta por Aura da Fé & Mana somado aos efeitos supostamente lendários do elixir, o poder que a fera agora carregava tinha de ser avassalador.
Por alguma razão, a besta rejeitara as tentativas de lhe oferecer a energia sanguínea do talento da vida, aparentemente, por ser uma energia exclusiva dos filhos do pó, não era algo apropriado que fosse servir a outras raças como alimento. Kaella ofereceu a explicação de que, com exceção dos humanos e meio-sangues que fossem seus descendentes, a energia do talento era algo extremamente destrutivo e antagonista a qualquer linhagem que não essa.
Lucet subitamente transferiu a garra estendida para sua mão mecânica, aproximando-a do peito e reassumindo a postura defensiva. Em seguida, atirou a mão para frente, segurando com uma parte dos dedos metálicos o braço de suas vestes, puxando a manga para trás e revelando por completo o símbolo reluzente.
O garoto já conseguia ouvir os rosnados da fera ansiosa por combate, traços de sua energia única fluindo pelo braço do jovem, fazendo-o aquecer rapidamente, gotículas de suor se formando na região. O corvo lentamente abriu sua mão, enviando circulando sua mana na região com mais intensidade.
Reluzindo, o selo que inicialmente demonstrava apenas uma garra de um total de quatro em sua formação, agora radiava duas garras, o que implicava que neste um mês de constante alimentação e inatividade, a criatura fora capaz de receber nutrientes o bastante para avançar para o segundo nível de seu crescimento.
Era um tanto estranho o fato da criatura não ter saído por si só, afinal, já havia demonstrado essa capacidade antes, porém, inteligente como era, Lucet facilmente concluiu que devido ao seu crescimento, a passagem do selo se tornara pequena demais para que Draco pudesse passar por ela, trazendo a necessidade de que a mesma fosse expandida com mana, tornando-a um genuíno portal de invocação, possibilitando a interação da fera com Anima e, devido ao seu status de Pseudo-Natividade devido a ligação sanguínea com o meio-sangue, a certeza de que não haverá restrições em seu poder uma vez que apareça fisicamente.
Uma formação cinzenta subitamente se manifestou em frente a palma de Lucet, suas linhas, formas e símbolos inscritos no próprio ar, rapidamente crescendo enquanto quantidades cada vez maiores do poder arcano eram injetadas nela. O corvo conseguia sentir o sangue fluir mais rápido em suas veias enquanto todo seu corpo aquecia.
“Que sensação estranha” ele não pode deixar de pensar “Então é assim que o Líder se sente quando usa a invocação?” Divagando, sua mente alcançou uma memória antiga, do dia em que Elysium foi destruída. A destruição certamente fora catastrófica, mas uma das coisas que marcaram o dia certamente fora a invocação de Dracul. O pensamento de como tudo fora severamente mais intenso para Maximillian, entretanto, durou apenas um momento e logo, o garoto respirou fundo e declamou:
— Veni! Frater Draco!
O mundo pareceu se silenciar. O eco do comando de Lucet viajou ininterrupto por todo o campo de batalha, como se ele estivesse ali sozinho. Neste instante, não haviam gritos de dor, o barulho da colisão de metais, das botas pisando no chão arruinado ou de carne sendo dilacerada por lâminas. Tudo parecia haver cessado sua atividade diante do que estava por vir.
Zunindo, o ar tremeu, luzes e eventualmente arcos elétricos se manifestando em frente e ao redor do círculo. Naquele espaço em frente a mão do garoto, o próprio espaço se esforçava para permanecer intacto enquanto algo insistia em tentar rompê-lo. Completamente focado em prover energia e nas sensações do emergir da fera, o meio-sangue não notou, porém, algo diferente começou ressoar pelas vastas planícies.
Primeiro, começou com um baque leve, tal qual alguém a gentilmente bater os dedos contra a porta para anunciar sua entrada, em seguida, o som aumentou para algo similar a alguém dando murros enfurecidos contra a dita estrutura, logo evoluindo para um estrondo de um ser freneticamente intuindo arrombar a mesma.
O ar congregava em frente a estrutura arcana, aglomerando tal qual uma parede, espessa e turva, trêmula diante dos esforços incansáveis da criatura que tentava rompê-lo. Lucet agora suava por todo o corpo, o selo em seu braço ardia feito brasa, irradiando uma luz vermelha e cinza, uma pressão palpável afetando todos em seu alcance.
Para os demais, era como se uma grande rocha estivesse pressionando seus corpos, os imobilizando, quanto mais perto estivesse daquela estrutura arcana em frente a Lucet, mais potente era a supressão física. Para o garoto, era mais como se a dita cuja estivesse pairando logo acima de sua cabeça, fazendo-lhe tensionar o corpo involuntariamente.
De repente, o corvo sentiu algo completamente inédito. Por uma fração de segundo, ele pode distinguir a sensação única de estar sendo observado por não apenas um, mas três espectadores aparentemente ávidos em observar suas ações. O meio-sangue sentiu seu ombro arder enquanto seu peito aquecia no mesmo ritmo, uma mão em um, cinco pontadas no outro.
Mesmo sem olhar, ele sabia que caso removesse suas roupas agora, marcas estaria brilhando com uma luz sanguínea e outra cinzenta respectivamente. O jovem não pode evitar se sentir um pouco inseguro, mas logo, a terceira sensação logo lhe aqueceu os pensamentos, o pondo em um estado mais relaxado e fácil de focar. Seu ombro ardeu um tanto mais enquanto seu peito aqueceu na mesma intensidade, porém, a terceira sensação passou por todo o seu corpo, sobrepujando as demais, como se as repreendendo, e então, as três desapareceram.
No instante seguinte, entretanto, o garoto sentiu uma quarta sensação, muito mais frágil que as anteriores, quase imperceptível, mas distintamente familiar. Era como se a criatura que tentava romper o espaço o estivesse observando de algum lugar distante e inalcançável, esta também logo se foi.
“Existem ainda mais olhos me observando do que eu imaginava” Lucet pensou, um pequeno e desconcertado sorriso surgindo em sua boca, um suspiro leve lhe escapando os lábios “Ah droga, parece que vou ter que me esforçar ainda mais pra impressioná-los”.
Girando os ombros, Lucet liberou um pouco da tensão em seu físico e então rugiu, rompendo o silêncio e assustando os membros da congregação mais próximos a si.
— Vamos, Draco! — ele comandou, sua voz imperiosa e sua face repleta de ânimo — Saia logo daí que ainda quero voltar a tempo de comer a janta! Se acha que vai ficar só de boa dentro do selo, pense duas vezes, aquela poção vai te custar caro!
Diferente de sua voz, a frase era completamente sem sentido para os oponentes, e ainda mais sem sentido para grande maioria de seus aliados. Lucet, entretanto, tinha total certeza que alguns nervos de um certo monarca agora doíam e um certo Gnoma de uma terra sob a montanha estava rolando no chão, gargalhando até que lhe doessem os lados.
Uma distinta emoção de indignação, esta carregada de ambos raiva e riso, lhe alcançou a mente, como se o receptor da acusação protestasse. O poder arcano brilhou com ainda mais intensidade ao redor do corpo do garoto, acumulando e fluindo em direção ao selo, os estrondos de golpes ressoando uma vez mais no espaço e então, a massa turva de ar aglomerado começou a romper.
Primeiro, um mísero e quase indetectável rachar após um dos tantos ataques contra o espaço, porém, um que facilmente se expandiu no segundo e nas ofensivas subsequentes até que, no sexto ataque, o espaço se mostrava tão rachado que era como se Lucet estivesse segurando uma placa de vidro a sua frente.
Um último baque, estrondoso e ressoando como uma centena de placas vítreas sendo estilhaçadas ao mesmo tempo irrompeu em frente ao garoto. A massa turva repleta de rachaduras explodiu, fragmentos espaciais quedando ao solo, causando pequenas nuvens de poeira bem como estilhaços de rocha a se erguerem do chão, seu peso anômalo relativo ao seu aparente tamanho.
A passagem que se abrira era escura, tão completamente sombria que se mostrava ainda mais negra que a dimensão da senhora da noite. Era um vazio tão absoluto que era difícil de se tentar observar sem sentir alguma náusea. Relâmpagos corriam soltos, o ar zunia e o espaço tentava se reparar, atraindo massa atrás de massa de ar em direção ao vácuo, porém, o esforço foi em vão.
Foi então que um trio de luzes surgiu em meio ao vazio. A primeira, abaixo e a esquerda era dourado avermelhada, tal qual o olho do garoto que havia iniciado todo o processo, a segunda, do lado oposto, era de um verde profundo e doentio, trazendo a qualquer que o visse a sensação de observar uma miríade de criaturas venenosa. A última luz, acima e no meio das outras duas era completamente branca, transmitindo a distinta sensação de ser capaz de enxergar através de tudo e todos, como se nada estivesse fora de seu alcance.
O espaço tremeu e rachou ainda mais enquanto a abertura vazia se expandia, forçosamente alargada. Subitamente, uma garra quase tão negra quanto o espaço de onde surgira, a pele ao qual estava acoplada uma fortaleza de escamas vermelhas agarrou a borda estilhaçada do vácuo. Estranhamente, esta garra era única e estava conectada a uma junta angular ao invés de uma estrutura mais similar a uma mão.
Logo, uma segunda garra surgiu no lado diretamente oposto a primeira, afixando-se ao espaço antes de lentamente exercer força e aproximar as luzes da saída. Conforme o trio colorido se aproximava, mais da estrutura das garras era revelada. Ao invés do usual mão e braço esperados, o que surgiu foi uma grande aglomeração de escamas que eventualmente se revelaram ser asas, protegidas por fileira após fileira de losangos escarlates enquanto a parte inferior era esbranquiça e mais flexível.
Em seguida, garras negras surgiram uma vez mais na borda inferior do estilhaço espacial, agora na forma de dois trios de garras que davam indícios da existência de uma quarta logo atrás da estrutura que se mostrou funcionar como pés da criatura. Logo, uma forma pontuda apareceu, similar a um diamante, mas vermelha e com duas fendas que esporadicamente fumegavam, liberando pequenas plumas sombrias e sanguinolentas.
Vibrando, relâmpagos disparando para todos os lados, a dimensão parecia protestar esta vinda, mas Lucet era capaz de distinguir devido a retroalimentação emocional que recebia da criatura a todo instante que era apenas devido ao esforço de ultrapassar as barreiras dimensionais. Nenhuma restrição estava sendo imposta a ele.
Os segundos pareciam se arrastar, as partes da fera surgindo com algum esforço, e mesmo assim, ninguém era capaz de se mover diante de uma presença tão potente quanto esta. O focinho então apareceu, mostrando fileiras de dentes do tamanho de lâminas para cartas, porém infinitamente mais resistentes. A cabeça da fera então rasgou o véu sombrio e se revelou por completo, as três luzes se extinguindo momentaneamente enquanto suas múltiplas camadas de pálpebras se fechavam e abriam repetidamente, as fendas entre elas alternando de tamanho para se ajustar a luminosidade.
Um pescoço longo então surgiu, logo acompanhado de um tronco largo e resiliente que demonstrava milhares de escamas variando entre os tons de vermelho sangue e cor de pele enquanto ia dos ombros ao abdômen. As asas avançaram e tocaram o solo, se apoiando sobre a junta das garras enquanto as pernas saíam e demonstrava sua musculatura e grande força, impulsionando toda a estrutura da fera a frente.
Um pequeno estrondo ecoou enquanto o solo demonstrou algumas rachaduras ao ser impacto pelo peso da fera. Sua estrutura sendo demonstrada por completo quando sua calda, flexível feito serpente saiu dos confins do vazio. No instante em que a criatura retirou sua última escama de dentro da escuridão, esta atraiu para si todos os fragmentos de espaço e massa gasosa que haviam sido arruinados, rapidamente se reconstruindo tal qual um quebra-cabeças.
Ainda com a prótese levantada, Lucet não conseguiu evitar se sentir maravilhado pela vista da criatura que outrora era tão diminuta que cabia no topo da sua cabeça e lhe puxava os cabelos para interagir. Se tentasse isso agora, provavelmente ia acabar com uma fratura no dito crânio e sem qualquer resquício de estrutura capilar que não estivesse impregnado de sangue e matéria cerebral cinzenta sobre si.
O crescimento de Draco fora tal que agora ele não tinha mais o tamanho de um gato ou cachorro diminuto, mas sim o tamanho de um leão adulto, porém dezenas de vezes mais feroz e perigoso que a besta coberta por pelos. Sorrindo enquanto o brilho do selo diminuía até retornar ao seu estado original, o meio-sangue permitiu que seu braço pendesse solto ao seu lado enquanto mantinha o braço mecânico erguido e empunhando a lâmina que reluzia com a combinação de seus poderes.
Lucet sentiu seu corpo aquecer levemente quando Draco, sua cabeça tão grande que o tamanho era quase equivalente ao tronco do garoto, o observou com seus três grandes orbes coloridos, um grande carinho sendo transmitido por sua conexão emocional, bem como gratidão. Esta, entretanto, durou pouco pois a fera virou sua atenção para o oponente, sua pele retraindo enquanto demonstrava suas presas, o brilho perigoso em seus olhos irradiando poder na penumbra noturna.
Grande ira fluiu para Lucet enquanto a fera expunha sua postura mais confiante, peito aberto e prontamente inflando ao passo que a o vento assoviava. Draco abriu sua bocarra, essa capaz de abocanhar um crânio humano sem qualquer dificuldade e então, seus olhos bestiais cravados na figura do lacaio de Puritas e sua aprendiz, rugiu, liberando um som horrendo capaz de romper os tímpanos de qualquer tolo que não os reforçasse com alguma energia externa, elicitando uma destruição ainda maior do solo a sua frente, criando fissuras com seu poder sonoro violento.