Os Contos de Anima - Capítulo 105
Se as peças metálicas que compunham a prótese mecânica que substituía o braço perdido de Lucet fossem capazes, elas agora estariam estalando com a incrível força que o garoto exercia em todo o seu corpo. Tal como a corda de um arco, o corvo estava completamente tensionado, pronto para disparar em qualquer direção possível uma vez que avistasse os oponentes. Desta vez, não os permitiria a chance de sobreviverem.
Uma névoa cinzenta ainda rodeava seu corpo, revestindo a armadura criada através do uso da aura. A lâmina em suas mãos era uma combinação ainda mais extraordinária de poderes, aura para torná-la em seu novo formato, mana para revestir sua resistência e facilitar sua manipulação e chamas compostas pelo talento da vida ao redor do armamento, estas extremamente eficazes em desmantelar propriedades físicas alheias.
Subitamente, Lucet ouviu um tossir mais alto que os demais, acompanhado de um som molhado atingindo algum canto do solo revirado.
— Sinceramente rapaz — a voz masculina continuou, com alguma dificuldade — É uma verdadeira pena que um talento como o seu não possa ser melhor aproveitado.
O meio-sangue tornou seu corpo na direção da voz, prestes a declarar algo, mas, antes mesmo que pudesse pronunciar uma palavra que fosse, um clarão luminoso surgiu entre as pedras, rasgando o ar em sua direção. Lucet rapidamente torceu o corpo para o lado e para baixo, flexionando os joelhos para rebaixar sua postura e desviar de uma flecha dourada que alvejava seu crânio.
Tentando revidar o quando antes, o corvo manteve os olhos cravados na direção do ataque, carregando e comprimindo um punhado de chamas rubras, a joia de sua prótese apontada para o local de onde surgira a ofensiva, porém, antes que pudesse executar seu contra-ataque, seu corpo tensionou instintivamente e suas pernas relaxaram por completo, deixando que suas costas colidissem contra o solo.
Uma fração de segundo depois uma lança penetrou o espaço onde seu torso estava previamente, contudo, o movimento não se restringiu a isso pois a oponente rapidamente acumulou mana em seus braços ao ponto de fazer o ar distorcer ao redor dos membros devido a propriedade especial de seu contrato e então, forçou a ponta do armamento para baixo a fim de realizar um corte.
Reagindo, felizmente, mais rápido, Lucet trouxe seu próprio equipamento rápido o bastante e bloqueou o ataque. Devido a sua força física muito superior à de um humano comum, o garoto não precisou de qualquer esforço ou auxilio para sobrepujar a ofensiva inimiga, lançando o armamento do oponente para o alto antes de mirar a aglomeração de chamas rubras na direção onde detectara presença da atacante.
As chamas aumentaram em vigor, uma rajada de energia escarlate prestes a ser disparada em um ataque que seria fatal a tal distância, mas, antes que pudesse disparar, o corvo detectou mais um raio dourado atravessando o espaço em sua direção, forçando-o a tornar seu ataque na direção do mesmo, deixando seu braço mecânico cair e então disparar a rajada sanguínea.
Mais uma explosão dourada e escarlate ocorreu, soprando pó e grama para os ares enquanto sentira a onda de choque atingir seu corpo devido a proximidade. Por um instante, Lucet sentiu a ponta de algo que julgou ser uma bota encostar em suas costelas e, ao olhar para o chão, entendeu que o impacto havia desequilibrado sua oponente.
Impressões de bota sobre a terra não foram capazes de ser mascaradas apropriadamente devido a abrupta natureza da colisão e, portanto, acabaram por serem reveladas diante da acuidade visual do olho do tirano.
O garoto não perdeu um instante sequer. Seu braço mecânico estava do lado correto para tal, portando, flexionou o braço e seguindo seus instintos, agarrou na direção de onde deveria estar a perna da oponente. Uma vez que os sensores da palma informaram que havia encostado em algo, Lucet cerrou os dedos metálicos, infundindo as pontas dos mesmos com as chamas rubras, facilmente ultrapassando as defesas mágicas e as físicas, rasgando tecido e atingindo carne.
Normalmente, o mero toque das chamas causaria uma dor excruciante que traria a garota aos joelhos instantaneamente, porém, antes mesmo que o corpo de Sophia tivesse a chance de processar a dor que estava lhe invadindo, logo se viu mudando de perspectiva abruptamente, o mundo se tornando um borrão aos seus olhos antes de colidir com o solo de costas, rachando pedra e erguendo terra.
Não fossem as proteções mágicas instaladas em seus equipamentos, bem como seu próprio fluxo arcano reforçando sua retaguarda, este impacto por si só já teria força o suficiente para partir-lhe uma dúzia de costelas, isso se não a deixasse paralisada ao ter sua coluna destruída com o impacto ou o crânio fragmentado.
Um grito tentou sair de seus pulmões, mas o máximo que fora capaz de produzir era um trêmulo gargarejo mudo, o ar sendo expulsado antes mesmo que pudesse sentir a dor esmagadora do impacto ou a eletrizante agonia que traziam as chamas escarlates. Ela sentiu sua garganta aquecer, liquido fervente subindo em direção a boca apenas para no momento seguinte ser expelido em uma tosse violenta.
Aproveitando o estado fragilizado de sua oponente, Lucet firmou seus dedos em volta do cabo ósseo de sua lâmina e girou seu corpo para a direita, mirando um ataque no estômago da garota, mas, antes que a lâmina fosse capaz de realizar seu intuito, uma flecha, desta vez comum, reforçada minimamente com uma aura negra que parecia imitar o fumo escuro das chamas, colidiu contra seu armamento, desvencilhando-o de sua mão.
Por um instante, o garoto considerou utilizar sua mão livre para continuar sua ofensiva contra Sophia, entretanto, facilmente desistiu da ideia quando uma segunda flecha igualmente reforçada cruzou o espaço silenciosamente em sua direção, forçando-o a largar a perna da garota e rolar para o lado para alcançar sua lâmina e, no momento que o fez, fincar a lâmina no solo atrás de suas costas para bloquear o ataque.
Um tom metálico ecoou no ar por alguns instantes após o impacto, este som ditou o tempo necessário para o segundo oponente surgir às pressas, sua respiração pesada e trabalhada enquanto corria levemente a passos arrastados, suas costas curvadas. Em uma mão, carregava um arco trabalhado em madeira e ouro enquanto sua outra mão segurava seu peito, um lustro negro fluindo em seus dedos, aparentemente suprimindo algo.
Foi então que, enquanto o homem se aproximava da garota, Lucet compreendeu mais um dos efeitos do talento da vida. Blodren havia lhe explicado que, independente do quão distante estivesse os traços do seu sangue, os mesmos ainda lhe pertenciam. Quando o corvo de Puritas se aproximou, o garoto pode identificar a presença de traços do seu poder na forma de vestígios que ainda praguejavam a ferida do inimigo.
Instintivamente, Lucet sabia que caso assim desejasse, conseguiria controlar estes fragmentos, contudo, não seria capaz de fazer um grande estrago sem extingui-los e perder esta armadilha, portanto, tinha de usar essa oportunidade efetivamente, afinal, o máximo que conseguiria fazer seria atrasá-lo um pouco.
O garoto então rolou uma vez mais para o lado, apoiando-se no braço mecânico antes de executar um impulso, encolher as pernas e então se apoiar na ponta dos pés, erguendo-se rapidamente, agarrando o cabo ósseo com firmeza, seus joelhos levemente flexionados, sua costa inclinada para frente e seus ombros relaxados, prontos para qualquer movimento súbito que necessitassem executar.
Nos instantes em que demorou para se erguer, o homem chegou perto o suficiente para alcançar a garota, aparentemente priorizando a saúde da jovem acima da sua própria ou da morte de seu oponente, porém, o que ele disse a seguir explanou suas motivações.
— Você ficou muito forte — ele disse com alguma dificuldade, agachando-se para estabilizar o corpo convulsivo de sua aprendiz — Tão poderoso que nas condições atuais não sou capaz de lidar com você sem desistir da minha vida.
As costas do homem então tremeram enquanto ele arqueou para frente, incapaz de conter uma forte tosse que durou por alguns momentos, porém, logo recobrou o controle de seu corpo e poder, e seguiu dizendo, a aura feito fumo negro crescendo ao redor do seu corpo, seus olhos luzindo com perigo e determinação mórbida.
— Portanto, a não ser que queira garantir um duplo suicídio sem qualquer propósito, sugiro que ao menos me permita recuar com minha aprendiz para que siga em paz com sua campanha de extermínio a estas tropas inúteis — Ele então ergueu seus olhos brevemente e cravou sua vista nos orbes heterocromáticos do garoto — Do contrário, te garanto, mesmo que eu morra, você não escapa daqui com vida.
Por um instante, o corpo de Lucet tensionou por completo, agindo em puro instinto defensivo, seu braço aproximando-se do peito, erguendo a lâmina diagonalmente em uma proteção aos seus órgãos vitais enquanto sua protomail se ajustava a frente, a joia vermelha luzindo com energia enquanto arcos de energia sanguínea passeavam pela prótese, sua expressão se tornando instantaneamente feroz enquanto toda a energia em seu corpo se movimentava com um único propósito, exterminar.
As mangas de sua blusa retesaram levemente com o súbito movimento e, com isso, o garoto notou com o canto do seu olho a ponta de um símbolo reluzindo, bem como uma onda emocional que havia sido supressa com o calor da batalha. Uma distinta fúria e indignação animalesca que ansiava por se manifestar e aniquilar seu alvo o quanto antes. Lucet não foi capaz de suprimir um sorriso largo que logo decorava seu rosto.
— Mas é ai que você se engana, Rubro — Um brilho radiou do olho bestial do jovem — Eu fiquei sim mais forte, mas, mesmo se sacrificando você não vai ser capaz de me matar.
— Sei que você não pode trazer seus soldados de volta a tempo de lhe auxiliar — o corvo retrucou — Uma batalha deste calibre não duraria mais que alguns segundos se o intuito fosse assassino, você sozinho não daria conta de me matar e sair vivo, sei que já perdeu muito de seu poder enquanto cuidava das tropas de concórdia.
Lucet chacoalhou o braço que continha o símbolo, fazendo com que a manga caísse um pouco mais e, mesmo através da manopla luminosa que protegia o membro, o luzir do sinal tinha um brilho distinto.
— Esse é o problema, Rubro — o garoto soltou um riso breve e confiante — Eu não estou sozinho.