Os Contos de Anima - Capítulo 104
Originalmente, o segundo movimento da jornada ofensiva descrita no manual de técnicas que Lucet recebera da divindade luminosa era executado da seguinte maneira: Após acumular uma quantia massiva de aura, comprimi-la em um punho de sua escolha e então, utilizando um soco em direção ao solo, uma onda omnidirecional de chamas brancas era liberada, varrendo as proximidades de qualquer forma de vida que não tivesse uma quantia significativa de energia protetora instantaneamente.
A diferença deste para o movimento que o precedia era simples, o primeiro era especifico para um alvo, enquanto este era atacava indiscriminadamente. Se por um lado o primeiro oferecia alcance e controle, um ataque furtivo quase inevitável, o segundo era um impacto bombástico com um dano em área indomável. Seu nome sendo “Impacto Solar” devido a quantidade absurda de luz liberada nesta explosão.
Entretanto, esta não era a versão original.
Anteriormente, Faerthalux apontara que Lucet já havia demonstrado sinais de proficiência na fusão de suas energias, utilizando-as para complementar e multiplicar suas capacidades ofensivas a novos patamares, entretanto, o garoto na época apenas fora capaz de realizar as aplicações mais básicas desta capacidade, tornando os equipamentos luminosos em versões mais sólidas de si, aumentando sua durabilidade.
Depois disso, o garoto não levou muito desta questão a mente devido a urgência de suas missões e outras problemáticas mais relevantes, porém, uma vez que se deparou com o novo poder de Blodren e recuperou seu braço no formato da prótese metálica, o corvo decidiu que era hora de reaprender a utilizar o máximo de suas capacidades, e isso o trouxe a conclusão que deveria experimentar as possibilidades de seus poderes, e agora, era hora de observar o resultado do seu treinamento.
Os soldados inimigos quedaram silentes por um instante, seus músculos tensionados com tanta força e apreensão que não era difícil identifica-los como estátuas. Lucet, graças ao olho do tirano, podia observar o estado físico e psicológico de seus oponentes, por tal, naquele breve instante em que o mundo parecia ter sido congelado no tempo, o meio-sangue não pode evitar sentir uma mensura de dó pelo que estava prestes a acontecer.
Os joelhos dos homens tremiam, incertos e inseguros. Seus braços agarravam-se aos escudos e espadas como se fosse a coisa mais preciosa do mundo e seus pulmões trabalhavam arduamente para puxar cada centímetro de oxigênio que fossem capazes. Corações, dezenas de milhares de massas pulsantes, laborando por sua sobrevivência. Sim, o corvo não era capaz de ignorar tantas vidas sendo perdidas neste conflito.
Lucet, com exceção de alguns pequenos animais para se alimentar, nunca matara nenhum ser consciente. A única situação onde isso ocorrera foi quando lutou desesperadamente contra Alexander, o maníaco paladino da congregação, mas, na ocasião, ele desmaiara e entrara em um coma por quase três anos após o feito, portanto, isso não pesava nem um pouco em sua consciência.
Neste momento, todavia, o jovem se encontrava lutando contra e matando milhares de outras vidas que, em situações diferentes, poderiam ter sido a sua própria, e isto o incomodava um pouco. Talvez há quem diga que isso deveria ser considerado uma atrocidade e que ele deveria ser marcado como criminoso, porém, tal é a natureza do conflito bélico que se encontrava.
Esta era uma guerra, e em uma situação como esta, para nada serviria a pena senão como distração e perca de foco. Reforçando sua determinação, o jovem recordou do porque estava ali, correndo tamanho risco, contra o que e quem exatamente estava lutando. Porquanto durasse a existência de Puritas, ele e tudo que amava estava em risco, portanto, não poderia hesitar.
Como se liberto de uma areia movediça, o mundo voltou ao seu fluxo natural, correndo veloz para recuperar o tempo perdido. O grande flash de luz que havia sido injetado no solo anteriormente então revelou o porquê exatamente era uma versão revisada, fazendo jus ao nome que recebera.
Ainda que estivessem sob a luz das estrelas e um céu noturno, um grande clarão inundou a visão das tropas de Concordia. Desta vez, porém, este não emanava dos céus, mas do solo. Os soldados, seus olhos cobertos por braços e mãos para proteger a visão, ouviam a terra abaixo de si estalar, rachaduras estrondosas como o estourar de gravetos secos em brasa ecoando repetidamente enquanto as fraturas geológicas expandiam.
Irrompendo do solo, raios de luz dourada e lustros sombrios decoravam a vasta planície com formatos irregulares, relâmpagos sobrenaturais prenunciando a devastação que estava por vir. Quem pudesse olhar naquela direção neste momento, a avistasse de uma distância segura aos olhos, enxergaria um domo radiante em volta de Lucet, suas cores não tão distintas quanto a aura da fé nem carregadas de treva como a mana das sombras, decoradas com uma perceptível tinge do elemento terra.
O resultado disto foi o céu noturno acima, afastado por essa poderosa luz levemente alaranjada e carregada de pontos negros, um crepúsculo de estrelas reversas. Um terrível anúncio da destruição que ocorreu logo a seguir.
De repente, todo pedaço de solo coberto por estas terríveis luzes começou a tremer. Não, tremer seria um termo gentil para tal feito, a realidade era que o solo subitamente se rebelou contra todo aquele que estivesse sobre si, chacoalhando e revirando, pulsos cada vez mais fortes de atividade geológica desequilibrando os soldados humanos, trazendo uma rápida e infalível dose de terror a eles.
Isto, contudo, foi apenas o início. Em seguida, o brilho crepuscular inundou as rachaduras e as agitou ainda mais, como se relâmpagos astrais corressem por aquele solo e, no instante seguinte, tudo voou pelos ares. Toda aquela energia acumulada causou uma erupção rochosa que resultou em centenas ou até milhares espinhos rasgarem a grama e a terra mole, surgindo como lanças que, caso não diretamente perfurassem os soldados, os arremessavam em direção aos céus.
O domo então explodiu no mesmo instante, liberando uma sonora e imponente onda de choque que desequilibrou qualquer um que não fora pego no terrível ataque do jovem corvo.
E então, o silêncio pairou sobre o campo, a sombra da morte e o aroma de seus efeitos facilmente se propagando em meio a uma chuva de corpos, entranhas, sangue e metal que despencaram dos céus. Ainda era possível se ouvir os gritos dos soldados que por algum milagre sobreviveram o arremesso à escuridão celeste, apenas para colapsar em direção ao solo que os aguardava com uma morte certa e inevitavelmente dolorosa.
O sangue sequer havia parado de escorrer das pontas das incontáveis “lanças” quando o luzir dourado e negro pulsou uma última vez, porém, deste pulsar nada sucedeu. Este fora apenas um último comando do jovem corvo para tentar recuperar uma parcela da energia gasta nesta técnica.
A luz prontamente recuou, retirando das ferozes pontas de rocha seu luzir sobrenatural e desfazendo o domo radiante. Assim, em questão de segundos, Lucet gastou metade de todas as suas reservas de ambos aura e mana. Seu corpo ardia, seus músculos protestando pelo imenso esforço que acabaram de exercer, um que exigiria descanso o quanto antes pois o garoto não seria capaz de manter sua estrutura em boas condições por muito mais tempo que isso.
Devagar, o jovem endireitou suas costas e, com uma tinge de azul sobre o mundo que fazia o rio de sangue que ensopava a terra parecer tinta, observou com o olho do tirano, rapidamente adquirindo informações sobre a eficácia de seu ataque.
Inicialmente, com seu ataque surpresa, Lucet fora capaz de derrotar um quinto, ou cinco mil soldados, das forças inimigas. Agora, com este movimento e a grandiosa ajuda das tropas de Concordia que não hesitaram em enviar quinze mil soldados para matar um único oponente, o garoto realizou um feito que muitos generais distintos ou guerreiros lendários nos anais da história de Anima foram capazes de fazer.
Utilizando a técnica revisada, o meio-sangue fora capaz de eliminar por volta de doze mil soldados, seja por perfuração, impacto ou esmagamento quando as rochas eventualmente desmoronaram por não estarem mais energizadas com aura e mana. Além disso, os sobreviventes dificilmente estavam em condições de combate, assim, podendo dizer que com um único ataque, o jovem destruíra três quartos da das tropas que restavam após o ataque surpresa inicial.
Ainda que um longo relato, o combate real fora veloz e decisivo, em questão de quinze minutos desde o desferir da primeira crescente sanguínea, Lucet demolira com apenas seus cem guerreiros rubros quatro legiões, e agora, precisava terminar o serviço. Respirando fundo, o garoto ergueu seus olhos uma vez mais, acumulando um bocado de flâmulas sangrentas sobre a joia de sua prótese e, assim que avistara o sinal luminoso que pairava nos céus, disparou contra ele.
Como um relâmpago escarlate, seu ataque cruzou o ar e imediatamente aniquilou o símbolo. Suspirando, o garoto relaxou minimamente, voltando sua atenção para os sinais enviados pelas centenas de correntes vermelhas conectadas ao seu corpo. Estranhamente, com exceção do uso do talento da vida, nada era capaz de afetar estes construtos vitais.
Foi então que, enquanto prestava a atenção no sucesso de seus companheiros, recebendo diversas mensagens que afirmavam a eliminação dos arqueiros e a destruição dos armamentos santos que Lucet sentiu seu corpo tensionar, um frio se apossando de sua espinha enquanto seus reflexos agiam mais rápido que a mente, torcendo seu tronco para a esquerda e girando seu ombro, sinais violentos compelindo a prótese mecânica a se mover e rasgar o pescoço de seu atacante, porém, este escapou no último instante, preservando sua vida por um triz.
A garra, agora lâmina dourada de vinco negro coberta por chamas rubras, não hesitou em buscar a vida seu oponente que rapidamente buscou escapar na direção de uma sombra entre os tantos escombros minerais próximos. Com um salto, Lucet facilmente galgou a distância entre ele e o oponente, porém, antes que o armamento alcançasse seu alvo, o jovem prontamente ergueu a prótese mecânica, instantaneamente carregando um punhado de chamas antes de girar o corpo e disparar uma rajada escarlate.
Uma explosão alva rubra irrompeu a menos de um metro de distância de Lucet, a onda de choque resultante não o derrubando apenas pelo fato de que o meio-sangue agiu rápido e utilizou seu armamento para estabilizar-se ao finca-lo na terra.
–– Ora ora — Disse então uma voz masculina, um tanto aerada e carregando uma distinta tosse acoplada a uma obvia dificuldade respiratória — Parece que o Kaella não perdeu a mão em ensinar seu precioso filho.
— Não acha que isso é crédito demais para aquela porca herege, mestre? — Uma voz mais suave e familiar logo respondeu do lado oposto a primeira.
O meio-sangue firmou os dedos em volta do cabo ósseo da garra enquanto seus olhos reluziam com ira.
— Desta vez vocês não escapam — ele rosnou — Especialmente você, Sophia.