Omega Hero - Capítulo 6
Sangue e lágrimas formavam o abismo que separava Chyou e Ichiro, mesmo naquela curta distância. Mesmo que o fogo da lava incandescente estreitasse seus caminhos, recobrindo o gramado de cinzas.
Entretanto, toda aquela dor eclipsando qualquer esperança de perdão entre pai e filho. Toda aquela mágoa que, como uma multidão de lembranças, poluía com veneno o riacho do amor natural, tudo isso poderia ser resumido em apenas poucas palavras.
Sangue e lágrimas!
— Seu fedelho ignorante! Ao menos faz ideia do quão torturante é a vida de um mutante?
Recusando o nojo daquele preconceito espinhoso, preso em sua garganta desde sempre, Chyou gritou, salivando.
— Temos tempo, pode rosnar sua história triste! — Ichiro engasgou, envergonhado. Depois, pensou — “Desculpe, Capitão, não é nada pessoal!”
Ichiro sorriu, disfarçando o desconforto de atuar como um crápula. No entanto, ver Chyou contendo aquele líquido borbulhante dos infernos, tendo a mão esquerda em brasas, lhe trouxe um certo alívio.
— Somos muito temidos por causa desse poder que você vê. Desde cedo, temos que participar das aulas em salas isoladas das outras crianças. Intrusos nos vigiam ao praticarmos nossa cultura nos templos, nosso kung-fu. Moramos em bairros sitiados, uma prisão muda, para sermos facilmente identificados em caso de obtermos poderes. Me diga toda essa segregação, esse ódio, acredita mesmo que é só por causa dos nossos genes?
Mágoa, tristeza, desespero, desesperança, condescendência, todos esses sentimentos poderiam ser facilmente lidos na face de Chyou durante aquele duro discurso.
Contudo, Ichiro fez questão de negar-lhe qualquer tentativa de afeto. Pelo contrário, com os olhos vazios botou mais lenha naquele coração incandescente.
— É claro que não! Mas você supõe que esse tratamento especial seja porque deduzem que vocês sejam futuros criminosos, não é mesmo?
— Sim, a política desse país fede… — Quanto mais Chyou falava com o coração palpitando e a voz embargada, mais a lava recuava para perto de si.
— …Então me diga, você ter se tornado aquilo que diziam de você, um criminoso, ajudou em que os outros mutantes?
— Foda-se, não quero saber!
— Ah, então eu cutuquei uma ferida…? — Ichiro viu um corvo pousar no travessão rente ao gol — Posso ir bem mais fundo, se desejar…
A maré de fogo ígnea que antes chegava quase a tocar a trave de futebol atrás do pai, enegrecendo suas bases, agora havia recuado para perto do montinho artilheiro.
Vendo a ave grasnar seu canto roto, Ichiro foi possuído por uma ideia genial: percebe ser o coração do pai, mesmo de longe, o mecanismo que controlava a pulsação da lava. “Afinal, aquilo ainda é sangue, sangue em brasas!”. Pensou.
— Você não sabe de nada! — Tomando um silêncio nefasto para si, Chyou rangeu os dentes.
— Não sei? Vai dizer, então, que não teve oportunidades, por isso se tornou esse verme? Que aceitou um caminho traçado para você como inevitável, na frente daquele outro homem brilhante ali — apontou para Lee — que vencendo o destino se tornou um capitão?
— Eu sou seu pai…
— Antes não ter nascido, do que ter um verme asqueroso como pai! Ou melhor, por que não pude ser filho de Hikaru igual Yoko?
— Cale a boca… Agora quer ser filho daquela bichinha…
— …Mas tive que ser filho justo de um ator de meia tigela como você, que só sabe enganar jovens ingênuas… como minha mãe!
— Eu disse para calar a boca, fedelho…
— Atenção! Lutem!
Chyou correu com tudo em direção ao filho. Quando Ichiro congelou o corpo prestes a vencer a luta, seu pai traçou um ardil invisível. Jogou um pouco de sangue em brasas em Ichiro.
Fugindo da lava que se multiplicava ao entrar em contato com o poder Ômega, Ichiro caiu de costas para o chão. Seu pai ajoelhou-se em cima dele, e começou a espancá-lo desferindo nele todo seu ódio.
— Então… vai me matar, como matou… minha… mãe?
Ichiro exagerou bastante. Seja pelo decaimento Ômega, seja pelas mãos do pai estalarem feito carvão quente, os golpes eram mais barulhentos que potentes, causando em Ichiro apenas umas pequenas contusões.
Seja como for, Chyou recuou. Fora inundado pelo desespero. Sua respiração sofreu uma pausa. O corpo estava dormente, os olhos virados para cima, para o vazio. Ao mesmo tempo que sofria o pesado julgo de ter perdido muito sangue, era vítima da própria consciência.
— O que estou fazendo? — Refém das próprias lembranças, Chyou quase desmaiou.
Ω
Como a maioria das tragédias, tudo começou fruto de uma grande burrice.
No Noroeste da cidade, perto da área limite entre o rico setor de mansões do Norte e os becos perigosos do Oeste, dois homens muito ricos e poderosos realizavam uma aposta estúpida.
O distrito noroeste é conhecido como a “Zona Morta”. Seguindo o clichê, tudo lá compunha o triste roteiro para uma favela adaptada num local abandonado. Terrenos baldios, casas e prédios com limo e paredes quebradas, o lugar servia, principalmente, como morada para gente pobre e desmazelada.
Perto de um prédio metade demolido, usado por drogados, virando pela direita da praça Taka, havia um terreno baldio cujos fundos terminavam numa enorme cloaca usada como latrina e cemitério de indigentes.
Ali, polido em concreto escovado, ficava a imponente Arena dos Gladiadores.
Perto da entrada, havia um luxuoso bar onde os ricaços degustavam o gosto de um uísque caríssimo, envelhecido com o cheiro imundo de fezes e morte.
Vendo a podridão humana em seu berço, a nata de Nova Tóquio se deliciava apostando pequenas fortunas num duelo ilegal (e mortal) entre lutadores com poderes.
— Que tal jogarmos como homens, fedelho dos Tanaka. Ou devo dizer, fedelha?
O velho Fugatsu pigarreou durante um trago mais forte no charuto importado. Sujou de fumaça os grossos bigodes semelhantes a duas taturanas.
— O que propõe a velha raposa dos Fugatsu?
Hikaru vestia-se como uma gueixa. Falou com a voz doce, escondendo suas palavras por um leque feminino. O leque também impedia que toda aquela imensa quantidade de pó em seu rosto, sujasse sua bela yukata.
— A pedra ou nada?
— A fábrica ou nada?
— Gostei da sua petulância, garota. Fechado, espero que, por ser marinheira de primeira viagem, depois não vá chorar no colo do papai!
Naquela aposta contra o experiente duelista, o jovem herdeiro dos Tanaka havia perdido, de forma inconsequente, a jóia mais preciosa do seu pai, o diamante gigante Coração Duplo.
Nesse ponto escondido pelo destino, o trago da burrice embebedou a tragédia particular de Chyou. Seu amigo japonês Kaito Hidetaka, a quem devia favores (e dinheiro) convenceu-o a entrar num golpe que seria uma total barbada.
Na festa de aniversário de 18 anos da filha do velho Fugatsu, Chyou se apresentaria junto com a companhia do Dojo da Águia, levando consigo além dos atores, uma trupe de ladrões para roubar o precioso tesouro perdido dos Tanaka.
Chyou seria a escolha perfeita, pois além de ser um dos poucos atores chineses que sabiam interpretar o teatro No, era também um grande artista marcial e um mutante, apesar de o mesmo não apreciar a última denominação.
No dia do roubo, enquanto procurava pelo banheiro dos atores, Chyou deu de frente com um enorme labirinto. Perdido nos jardins de pinho da vultosa mansão, conhece, sem querer, a bela e triste aniversariante.
Chyou ficou admirado pois, enquanto a encantadora Sasaki Fugatsu cantava uma canção alegre, seus olhos se condoíam em lágrimas.
Ao apresentar-se como um dos atores, naquela mesma noite, ao passearem juntos pelos jardins aromáticos, banhados pela luz do luar; os dois jovens se apaixonaram perdidamente um pelo outro.
Apesar de ser a única herdeira dos Fugatsu, Sasaki não gostava dos negócios do pai e desejava ser uma cantora. Chyou a convence a fugir no meio da peça, e por isso, o roubo dá errado.
Estranhamente, o maior diamante do mundo também desapareceu no meio do tumultuoso incidente.
Naquela noite, o segundo homem mais rico do Japão perdera as duas metades do seu inescrupuloso coração. Jurando vingança, no entanto, o velho não sabia dizer qual das duas joias considerava mais preciosa.
Dois anos depois da fuga nasceu o primeiro filho do casal. Na época, Ichiro foi batizado com o mesmo nome do pai. Apesar da pobreza cruel — pois o casal vivia atolado em dívidas — Sasaki nunca reclamou e sempre sorria ao cantar num pequeno bar.
Chyou, no entanto, queria dar uma vida melhor para ambos. Pensou em virar militar, porém desistiu e rasgou a ficha de inscrição. Tinha um medo profundo de revelar ter poderes, sendo um mutante.
Quando Ichiro completou 2 anos, Chyou procura Kaito pois o garoto vivia doente e o casal não tinha condições de pagar por seu tratamento médico. O lance seria um furto de cargas simulado, contratado pelo próprio proprietário.
Inesperadamente, a polícia já sabia do golpe do seguro e todos vão presos. Confessando o roubo anterior para aliviar a pena, o ex-amigo de Chyou sela seu destino. Sasaki descobre pela polícia toda a trama do golpe do seu aniversário da pior forma possível.
No final, Chyou foi condenado a 10 longos anos de prisão sem direito à liberdade condicional. Pegou a pena mais severa entre todos os comparsas, apontado injustamente pela polícia como mentor da quadrilha.
Na cadeia, Chyou descobre a dura verdade. Ao tentar matá-lo, um preso revela que tudo não passara de uma armação. Ao tirá-lo da jogada, o velho Fugatsu controlaria o futuro da filha, sua única herdeira.
Na verdade, o escroque havia encomendado a morte de todos do grupo. Chyou só sobrevive ao atentado graças ao seu poder e ao desejo incomensurável por vingança, que, agora, inflama seu peito feito lava.
Na primeira e última visita de Sasaki a ele na prisão, Chyou também descobre que ela estava grávida, mas, para encobrir sua vergonha, se casaria com o rapaz que havia perdido o diamante.
Ela pediu, com os olhos em lágrimas, que ele nunca mais a procurasse, ou aos filhos.
Chyou, em fúria, percebe o golpe do velho canalha. Uniria, numa dupla vergonha, as duas famílias mais ricas do Japão sobre sua única mão manipuladora. Chyou planeja, com passos meticulosos e incandescentes, o caminho do ódio que iria trilhar dali por diante.
Dez anos mais tarde, quase desiste de vingar-se ao ouvir Sasaki cantando no mesmo jardim onde, antes, se apaixonaram. Porém, seu ódio presente vence o amor antigo!
Num pico de fúria, após haver eliminado dezenas de seguranças, Chyou fecha os olhos enquanto vai assassinar o cretino. No último segundo, Sasaki se mete na frente do pai e Chyou a mata, varando seu peito com os dedos em chamas.
Suas últimas palavras para ele foram “Leve a voz do meu amor com você, para sempre!”. Ela morre tendo na face a amargura do passado e dor presente do sangue borbulhante misturado às lágrimas.
Ω
Chyou verdadeiramente desejou que tivesse visto sua vida passar pelos seus olhos, e que aquela dura e rápida lembrança fosse a voz de Sasaki decretando sua sentença de morte.
Acordou sentindo o frio congelante de cada palavra de Ichiro.
— Eu sei que você foi apenas o carrasco! Quem realmente a matou… quem decretou, bem antes, a sentença de morte dela foi aquele velho egocêntrico…
— Se sabe disso tudo, não acha que o crápula merece pagar pelos seus crimes?
— É claro que merece! — Ichiro agarrou os pulsos de Chyou, tentando se desvencilhar — Mas não se pega uma velha raposa com uma isca para caçar coelhos…
— O que, que está aconteceeeend…. — Nagashi que acompanhava a luta nas linhas laterais fugindo do calor escaldante, caiu suspirando, como se algo lhe consumisse por dentro.
— Não, meu filho, nisso você errou. Veja bem… — O corvo pousado no travessão, voou pressentindo o perigo — Você verá e se impressionará com o seu velho… Vou lhe mostrar… como minha isca pode pescar até mesmo uma grande baleia!
A ave ancestral, sem o menor traquejo, bateu suas asas negras como a noite lutando contra o vento. De súbito, quando já alcançava um segundo degrau por cima das lavas, seu corpo se incendiou, consumindo do corvo até a última pena.
Ω Ω Ω