O Relicário - Capítulo 8
Yumina estava sozinha, no vazio. Ela olhava ao redor e não conseguia encontrar nada, pois uma densa névoa atrapalhava a visão. A perdida moça cruzava seus braços na procura de aquecer-se naquele lugar gelado. Ela caminhava lentamente, torcendo não tropeçar e quanto mais andava, menos tinha certeza se não estava andando em círculos. Tudo era igual, não haviam imagens de referência para se localizar, o lugar de agora era idêntico ao de dois minutos atrás.
O silêncio emudecia todo o ambiente. A recruta futilmente chamava por seus novos amigos, entretanto, sua voz sequer retornava eco. Ela, às vezes, tinha a impressão de ouvir vozes, sussurros, por dentro da névoa, contudo, a mesma deduzia serem frutos de sua própria imaginação, pois ao parar e prestar mais atenção, os sons cessavam.
Depois de tanto procurar, Yumina finalmente viu uma silhueta próxima de onde ela mesma estava. A sombra se tratava de uma espada fincada no chão. Ela pensou em se aproximar do objeto, mas outra sombra se formou ao lado da arma, começando pelos pés. Era uma mulher de cabelo longo e mesma altura da garota do relicário. Junto da desconhecida, as vozes ouvidas anteriormente sussurravam atrás dela. Eram muitas. Não se tinha como compreender tantas falas ao mesmo tempo.
O clima frio piorou, pois, um vento congelante passou pelas costas da novata e seu corpo então se contraiu ainda mais. Ela perguntou à figura misteriosa quem ela era. Este questionamento fez com que os sinistros murmúrios parassem. A falta de sons piorou o clima, porque a quietude deixou tudo mais tenso e aflitivo. Na sequência, a sombra feminina, ainda muda, pôs a mão direita no cabo da espada e após um intenso calafrio sentido pela novata, a recruta acordou.
A garota do relicário suava bastante e o coração palpitava. Amedrontada com o pesadelo, ela se indagava o motivo de um sonho tão macabro e confuso, enquanto olhava a joia em sua mão.
Ao finalmente despertar completamente e recuperar a calma, ela percebeu que todos os eventos acontecidos no dia anterior não eram parte de um sonho. Ela realmente foi mandada a outro mundo e estava no quarto de Cecília, que, por sinal, não estava ali.
Yumina olhava em volta, procurando pela garota lobo no cômodo, quando foi surpreendida pela mesma. Cecília saltou pra cima da cama e caiu na barriga da recruta, tirando bruscamente todo o ar dos pulmões dela. Com entusiasmo, a lobinha a cumprimentou:
— Bom dia, Yumina!
— *Cof* Bom dia.
— Desculpe pela esmagada… eu queria impressionar.
— Tudo— *Cof* bem. Isso te garanto que conseguiu…
Dando continuidade a manhã, as duas se levantaram e foram se arrumar. Elas escovaram os dentes, arrumaram o cabelo e trocaram de roupa, coisas básicas. A menina de cabelo azul pegou uma vestimenta emprestada com Lily, por ter a altura mais aproximada. Era uma blusa azul Royal com babados, feita inteiramente em algodão de alta qualidade e uma saia branca, curta e modesta. A peça não tinha muito destaque, pois se tratava de uma roupa casual. Lembrando do conselho de Arnold, antes de saírem, a nova integrante do grupo deixou a pedra mágica ao lado da boneca com marcas de queimadura.
Ao abrirem a porta, elas viram a cavaleira se dirigindo à sala de jantar. A lobinha, arteira como era, foi logo atrás, de mansinho, querendo aprontar alguma travessura, no entanto, seu alvo já estava ciente do ataque. Fingindo não saber de nada, Lily esperou a hora certa e, quando a híbrida chegou perto o suficiente, agarrou a orelha da garota da magia de planta e foi puxando-a com força.
Conforme Cecília suplicava clemência, Lily olhou para trás e cumprimentou a novata. Ainda desacostumada, Yumina apenas acenou de volta.
O café da manhã foi produto de Sakurai. O rapaz preparou uma pequena variedade de coisas. Tudo tinha um sabor refrescante e suave. Mais uma vez, Cecília quase cedia à tentação de comer tudo de uma vez.
Arnold, levantando os lábios, falou:
— Você cozinha muito bem, rapaz.
— Muito obrigado. Quis caprichar para dar as boas-vindas a Yumina.
— Isso é nobre de sua parte! Continua assim e vai ser um marido de mão cheia.
— Arnold! — expressou Sakurai constrangido — Até o senhor vai começar com essas gracinhas?
— Está bem ha-ha, desculpe, só quis parecer menos sem graça.
Ao mesmo passo de tal evento, a novata olhava para o jovem, em silêncio, pensando em como o garoto de pele clara e feição gentil foi heroico ao defendê-la do animal rastejante no dia anterior. Além disso, divagava na lembrança do modo como ele enfrentou o dragão, mesmo sendo menor e sabendo que, no final das contas, quem estava errada era ela mesma.
Distraída demais, ela não percebeu o quanto encarava seu amigo, até ser interrompida pelo próprio ao cruzarem olhares e se envergonharem. Após o ocorrido, o mestre perguntou:
— Yumina, está animada para ver sua cidade natal?
— Pra ser sincera, sim. Quero ver o quão diferente este mundo é do meu antigo.
— Vai ser divertido! — encorajou Lily — se ficou impressionada só de ver as orelhas da pouca-sombra ali, vai surtar quando a gente chegar.
— Ei! — reclamou Cecília de boca cheia.
Antes da mesa virar uma zona, Arnold foi cortando a discussão e passou os pedidos:
— Vocês vão comprar as hortaliças que não pudemos plantar, sementes com alguns mercadores e outras coisas que listei nesse papel.
Yumina questionou como eles poderiam trazer tantos produtos e Lily explicou de boa vontade:
— Os mercadores vão providenciar a entrega. Não esquenta! Nosso trabalho é encomendar.
— Falando em encomenda, — prosseguiu Arnold — Yumina está precisando usar roupas emprestadas, portanto, aproveitem para comprar roupas novas.
Lily demonstrou euforia instantaneamente quando aquelas palavras chegaram em suas orelhas. Seu coração acelerou e a hiperatividade se mostrou forte, remexendo os dedos dos pés.
Os olhos dela reluziam ansiedade e imaginação, assim como os de um artista ao encontrar a paisagem perfeita para sua inspiração. Aquele olhar em chamas podia até ser por algo bom, mas não deixava de ser um tanto tenebroso conforme ela não desprendia sua obsessão faminta por vestir, despir e vestir de novo sobre Yumina. Sakurai foi quem apaziguou a situação, sendo ele quem acalmou Lily.
— Voltando ao assunto — continuou o idoso — tenho mais um recado: lembrem-se que estão procurando pelo relicário. Não falem sobre a joia ou dos poderes dela. Se nosso inimigo souber o que está acontecendo, deixará de ser seguro sair de casa.
Sabendo dos riscos, a garota da joia mágica sentiu medo. Medo de estragar tudo. Medo de ser descoberta. Medo de morrer…, mas ela respirou fundo, olhou na direção de sua parceira e aceitou correr este risco. De repente, alguém tocou sua mão e ao olhar para o lado, viu Cecília, a qual dizia:
— Vai ficar tudo bem.
— Isso mesmo — completou Sakurai — eles não ficam interrogando os outros na rua. Você apenas precisa não chamar atenção.
Escutar algo assim já foi o suficiente para tranquilizar a jovem, agora com vontade de ir à Diamond, cidade perto de onde a equipe morava e próximo destino deles. Aquele clima levemente tenso foi rapidamente quebrado por Cecília, que, com cotoveladas, forçou a barra, mais uma vez, de seu amigo geladinho.
— Pois é, né? Aí no fim, a Yuminazinha vai te carregar e vocês vão se beijar numa cena romântica, né? Escrevam minhas palavras: vai ser numa festa à tarde!
Sem ser surpresa, os dois passaram a discutir (de novo…), mas não durou muito. Arnold já estava farto daquela briguinha insuportável. Ele podia até parecer calmo, mas sua fúria já transpassava sua face serena. Respirando profundamente, ele disse:
— Os dois andam bastante eufóricos, não é mesmo? Por sorte, vocês não têm muitos afazeres hoje e vão ter um treinamento especial comigo!
Só de ouvir, dava para ver ser um castigo daqueles. Os brigões engoliram seco, arrependidos pelo que fizeram, tomados pelo medo da punição. A aura do professor era pesada e revelava legítima raiva. Não querendo se encrencarem mais, permaneceram eles em total silêncio pelo resto do café da manhã.
Mais tarde, todos estavam em frente ao portão, onde as duas jovens seguiriam rumo a cidade. O dragão aconselhou tomarem cuidado com comportamentos suspeitos e Arnold se despedia com um sorriso pleno e calmo, desejando boa viagem.
Em contrapartida, Sakurai e Cecília se encontravam preocupados pelos eventos seguintes. Em suas cabeças ecoava a frase “vamos morrer”. Até a cavaleira ficou aflita, rezando que o mestre pegasse leve. Yumina, vendo Lily em tal estado, se viu também apreensiva pelo futuro da dupla de criançonas. E assim partiram as duas, lentamente se afastando de sua casa e de quem conheciam.
A estrada qual levava a Diamond era toda em terra, contendo pequenos buracos e pedras. Por algumas partes se podiam encontrar estes maiores e bichos dóceis, mas pouco atrapalhavam a passagem de veículos.
As árvores de troncos grossos e folhas coloridas entre verde e amarelo bloqueavam parte da luz solar, dando um ambiente fresco para caminhar. Vez ou outra, os ventos sopravam e o ar parecia se renovar.
Aquela viagem era longa. Não se podia enxergar o final da trilha. As curvas bloqueavam a visão do fim da floresta, dando a impressão do trajeto ser ainda maior. Pelo menos, isso permitiu uma conversa mais longa entre as duas moças, permitindo a novata conhecer mais sobre a cavaleira.
O cheiro do perfume de girassol com glicínias sobre ela usado acariciava as narinas de Yumina. O caminhar da loira mostrava que, embora lutasse e tivesse cara de durona, ainda era uma dama. O cabelo bem tratado voava com as vindas ocasionais da brisa. Aquela formosura encantava a menina do relicário. O momento silencioso de contemplação era brevemente cessado pelo canto das aves ao redor e dos animais terrestres que povoavam a região. Lily, puxando conversa fora, indagou:
— De onde você veio é muito diferente daqui?
— É sim. As cidades tomaram conta da natureza. Elas derrubaram as florestas, mataram os animais e poluíram o mundo. Os bichos restantes lutam para sobreviver com os restos. Ambientes preservados são escassos e espécies beiram a extinção.
— Parece que não tá muito legal por lá.
— Não mesmo. As pessoas não se importam com nada, salvo se interferir na sua imagem social ou no seu salário. Quem não tem algo “atualizado” é excluído, passando a ser um ninguém.
— Pelo menos, agora você tem alguém com quem pode conversar. Estamos juntos pro futuro e, se quiser alguém para desabafar, conte comigo.
Apesar de serem palavras simples de alguém quem mal conhecia, a garota se sentiu melhor pela resposta acolhedora ganha e agradeceu.
Andando mais pouco, foi a vez da outra jovem perguntar à Lily:
— Qual a relação entre Sakurai e Cecília? O tempo todo parecem estar discutindo, mas estão sempre juntos. Parecem até irmãos.
— Também não entendo direito. Uma noite, Arnold e Sakurai trouxeram ela. Sakurai estava com uma queimadura enorme nas costas e carregava Cecília nos braços. Ela estava toda suja e machucada. Uns dias mais tarde, já tinham virado amigos íntimos. Já tentei perguntar e nunca explicam direito. O máximo que deu pra saber, foi de um incêndio naquela mesma noite. De qualquer forma, aquela baixinha é uma boa menina que gosta de atenção. Não sei o que aconteceu pra tanto mistério, mas agora, Cecília é da família.
Yumina se sentiu receosa por não saber a origem da amiguinha, mas, ver a consideração da cavaleira por sua companheira lhe deu mais confiança.
Caminhando mais um pouco, elas chegaram ao fim da floresta. A luz do sol ficou mais presente e agora, estando mais fácil de olhar em volta, Lily sorriu e apontou à sua frente, dizendo:
— Chegamos. Seja bem-vinda a Diamond!