O Relicário - Capítulo 6
Arnold deu uma bronca daquelas em Yumina assim que soube dos fatos. Não era para menos, ela tinha grande liberdade e simplesmente fez a única coisa advertida a não fazer. Ele não gritava nem ofendia, mas ia direto ao ponto, revelando os desfechos quais poderiam ter se sucedido naquela floresta. Sua fala calma, embora severa, pesava a consciência da moça.
A novata tinha assumido os riscos e já previa ser submetida a todo aquele sermão caso fosse descoberta, portanto ouvia todo o esporro em silêncio.
Depois de descarregar toda a apreensão sentida, o mestre concluiu enquanto suspirava e coçava sua cabeça na procura de aliviar o estresse:
— Bem, você está num mundo novo. É natural ter curiosidade e vontade de explorar. Vamos fazer assim: fingirei nada ter ocorrido, contanto que prometa não sair de novo sem alguém lhe acompanhar. Não quero te ver correndo o risco de se machucar sozinha novamente. Imagine se Sakurai, ou os outros, não chegarem a tempo da próxima vez.
De fato, se Sakurai não tivesse salvo a curiosa “aventureira”, ela estaria sendo gradualmente digerida pelo estômago da serpente naquela exata hora. A imprudência da garota do relicário quase determinou seu fim antes mesmo da história começar. A novata reconheceu ser a escolha mais segura e concordou em fazer o solicitado por Arnold. O velho então deu por encerrado o episódio do passeio arriscado de Yumina.
Assunto finalizado, todos voltaram a seus afazeres, exceto Cecília, pois quis ficar perto de sua amiguinha de cabelo azul. Ela fez um convite, o qual a lobinha mostraria coisas de interesse para a moça do relicário. A jovem quem recebeu a proposta não estava no melhor momento para sair com a híbrida, porém topou a ideia.
As duas se dirigiram a um lugar não mostrado no tour de antes. Um jardim florido de variadas cores. Ele era um moderado círculo, rodeado por pedrinhas para definir o espaço. As pedras eram esbranquiçadas e seu formato redondo. No entanto, elas ainda tinham deformações, impedindo-as de serem perfeitas bolinhas.
Crisântemos, hibiscos, orquídeas e um monte de outras espécies embelezavam o solo, cobrindo-o com suas esplêndidas e delicadas pétalas de tonalidades chamativas. Abelhas e borboletas faziam a festa no meio de tantas plantas sadias e cheias de néctar doce. Sempre quando um desses insetos saía, um outro vinha e continuava o serviço daquele que se retirou.
A mãe-natureza certamente deu uma atenção especial no espaço. O cheiro mesclado das flores em primeiro instante tinha forte intensidade, porém conforme o nariz adaptava-se, o aroma se tornava tão suave quanto a brisa do verão. Se aproximando de uma astromélia, disse Cecília:
— Esse é um de meus cantinhos pessoais. Aqui dá pra relaxar, enquanto cuido dessas belezinhas.
— Nunca vi nada assim! — Exclamou a visitante — É tão lindo!
— Meus amigos me ajudam, mas costumo passar mais tempo.
A lobinha cheirou a flor acariciada por ela e continuou em tom relaxado:
— Sabe, é sempre bom arrumar um lugar especial como este. Gosto de assistir a forma da qual os bichinhos são atraídos pelo cheiro delas. Abelhas, borboletas, joaninhas… sempre há um visitando minhas queridinhas.
Yumina então se lembrou do que fazia na escola abandonada. De certa maneira, existia uma semelhança. Tanto Michio como o jardim, eram maneiras de aliviar a mente. Será que Cecília cuidava das flores pelo mesmo motivo?
Após um silêncio, a menina de cabelo roxo disse sem olhar ao rosto de sua colega:
— Você estava espiando Lily e eu na horta, né?
Surpresa pela adivinhação da amiga, Yumina perguntou:
— Como… Como soube?
— Meu faro é aguçado em comparação a humanos. Não sei o quanto você ouviu, mas era verdade quando disse querer ser sua amiga logo. Você é importante para nós, mesmo sem esse treco no seu pescoço. Te trouxemos não só por ter poderes o relicário, mas porque você é daqui. Lily mandou não forçar a barra, mas queria te deixar ciente disso.
Cecília mantinha face calma e lábios sorridentes. Com carinho, ela conferia a saúde de suas plantinhas e verificava a existência de pragas. A região abaixo das unhas pontudas dela se enchiam de terra, mas tal detalhe não lhe apresentava incômodo algum.
A Garota do relicário se sentiu bem com o afeto recebido e como agradecimento, ajudou a moça de orelhas felpudas no jardim. Elas ficaram ali por meia hora, falando nomes de flores, espécies de animais e admirando a beleza delas.
O próximo ponto de visita foi uma árvore carregada de frutos roxos e tronco torto, localizada no vértice do muro. Ela tinha uns cinco metros de altura e sua folhagem possuía cor alaranjada. As frutas se assemelhavam, em formato, a um mamão pequeno. Cecília pegou uma usando magia e ofereceu a Yumina:
— Tome! Prove e me diga o que acha.
O interior do colhido era escuro, quase preto, e a semente tão grande quanto a de um pêssego. Ela sentiu na primeira mordida um azedo, mas em seguida veio o doce do fruto. O gosto, na verdade, era exageradamente adocicado, lembrando algodão doce. Conforme mastigava, se percebia a textura semelhante à de um jambo. Ao perceber a reação positiva da colega, a lobinha comentou:
— Se chama açucarada. Nem preciso explicar por que. Apenas tome cuidado pra não comer demais, senão você pode ter problemas de barriga…
— E por acaso já teve esse “problema”? — Questionou a menina do relicário.
— C-claro que não! — respondeu ela de imediato olhando para os lados — Eu nunca iria comer tantas de uma vez e ficar com piriri!
Apesar de ter percebido a mentira, Yumina preferiu não aborrecer a jovem de baixa estatura. Ao invés disso, ela sugeriu seguirem a outro lugar.
Deixando o exuberante tronco tortuoso por ali, elas foram até o portão da mansão. Cecília afirmou não ter problema sair, pois estava acompanhando-a e por isso prosseguiram até o lado de fora. Não é de duvidar a portadora da joia mágica ter ficado arisca em sair, no entanto a híbrida insistia irritantemente e a novata perdeu a paciência, chegando a esquecer por um instante a enrascada de mais cedo.
Já distantes o suficiente, ambas subiram numa árvore escolhida pela loba. Para ser mais preciso, Cecília escalou usando suas garras, já a moça de cabelo azul foi auxiliada pela outra por magia. As folhas bloqueavam parcialmente os raios do sol, cujos rastros desenhavam o ar. A jovem de orelhas especiais esperava ansiosa por algo e isso gerava mais curiosidade na acompanhante.
Após minutos, o Javali elemental da terra de mais cedo apareceu mais uma vez. A exótica humana logo perguntou se era aquele o animal que tinha atacado sua amiga. Yumina examinou-o e concluiu ser sim ele. A híbrida falou para seguirem-no e o fizeram. Para isso, as duas desceram e a loba ia orientando por onde deviam passar.
Não muito longe dali a jovem do relicário viu o javali se tratar na verdade de a javali. Ela era uma mãe de dois filhotes, cujas energias tinham de sobra. Os pequenos brincavam correndo em torno da protetora deles, levitando e depois jogando pequenas bolinhas de terra do tamanho de azeitonas um no outro. Olhando os animais, a baixinha da magia de plantas contou:
— Estou vigiando eles há semanas. Quando ela te atacou mais cedo, provavelmente foi porque achou que você iria comê-la. Pensei ter sido ela o motivo do alvoroço de antes, aí achei ser legal apresentá-los.
Estando elas ainda ali, o tempo correu e a tarde começou a chegar. O sol repousava sobre as íngremes montanhas e os feixes de luz restantes já se desprendiam dos pastos. As nuvens brancas se alaranjavam gradativamente e algumas corujas já se manifestavam, cantando entre as árvores e acima delas. A javalina, qual as meninas espiavam, chamou suas crias e partiram para se refugiar do sereno frio. Reparando na hora, Yumina e Cecília também partiram.
Chegando no portão, as duas gargalhavam ao contar histórias do cotidiano. O Dragão, como sempre, se encontrava deitado em frente ao portão. Por incrível ante pareça, estava acordado. A criatura parecia de bom humor, pois deixara escapar uma levantada do lábio esquerdo.
Após contarem tudo a ele, o lorde da escuridão avisou-as para entrarem, porque o resto dos residentes as aguardava.
— Yumina — chamou Cecília alegremente — nosso passeio foi divertido. Quero fazer isso mais vezes.
A recém chegada viu naqueles olhos verdes a inocência de uma pura criança, cujo desejo é apenas se divertir com quem gosta. Isso fez com que a portadora do relicário pensasse de novo sobre sua decisão de ficar ou retornar, pois seu coração sentia a necessidade de proteger, pelo que fosse preciso, tal menina alegre e despretensiosa. Ainda divagando na dúvida, ela respondeu:
— Também espero…
E então, as duas jovenzinhas entraram em casa, enquanto as primeiras estrelas reluziam sobre o céu agora escurecido.
Após a entrada das garotas de volta na mansão, o dragão sentiu uma presença diferente dentro da floresta. Ele parecia saber exatamente onde estava e o que, ou quem, era. Embora não fosse viável enxergar o alvo no meio de tanto mato, ele olhava fixamente no mesmo ponto. Parecendo decepcionado, o réptil alado perguntou ao vento:
— Até quando vai ser assim?
Não se conhecia do que se tratava uma questão tão abrangente, porém a resposta caminhava a passos curtos na direção de todos os moradores da mansão. Junto dela, viriam problemas e soluções preparados pelo destino. “Como eles reagirão?” outra pergunta feita pelo dragão e impossível de ser esclarecida no presente, mas repleta de sentido quando os fatos forem revelados no devido tempo.