O Relicário - Capítulo 5
Sozinha naquele campo verde, Yumina se deitou na zona Norte e aproveitou para absorver um pouco da brisa do ambiente. Ela olhava o céu azul salpicado de amontoados de algodão, onde nenhum arranha-céu, prédio, helicóptero, ou avião manchava o que estava acima dela.
A grama lhe pinicava caso se mexesse demais, porém, lhe era prazeroso a tranquilidade da área, tirando-lhe a atenção sobre o incômodo. Os passarinhos cantavam e voavam graciosamente.
As folhas farfalhavam e caíam suavemente no chão, onde insetos as colhiam para se alimentarem. As cigarras fixadas nos troncos das árvores cantavam.
A consciência da jovem dizia a si mesma:
“Sempre sonhei com um lugar assim… parece que finalmente cheguei no paraíso. Me sinto um viajante de volta em casa. Realmente tenho uma sensação muito familiar aqui. Se isso tudo for um sonho, não quero acordar.”
Mas então veio a pergunta:
“Eles me falam um monte de coisa estranha, mas mesmo assim, algo em mim diz pra ficar. E agora? Nem sei se Arnold me deixaria ir caso eu recusasse morar nessa mansão. Ainda por cima, é possível ele ter conhecido meus pais. Também há a chance de ele apenas inventar essa história por querer me manter aqui. O pior é que tá conseguindo… o que eu faço?… O que eu faço?… Porcaria! Não faço ideia!”
Olhando para o relicário segurado em sua mão, continuou:
“Esse momento é de longe o mais complicado onde já me meti. Devo ouvi-los? Sua conversa não tem desvios ou gaguejos. Por mim, eles estão falando a verdade… Nossa! Me sinto ainda mais estranha só de afirmar que essa história bizarra é real.”
Avaliando os riscos, prosseguiu:
“Então, vejamos meus ganhos e perdas com cada uma das opções disponíveis: se eu voltar, posso voltar aos meus estudos, me formar na faculdade, arranjar um emprego e viver uma vida pacata e monótona. Agora, se eu ficar, vou morar junta de gente desconhecida, terei de me adaptar a um lugar cem por cento novo, poderei descobrir coisas até então inéditas e impensadas e também poderei conhecer, talvez, meus pais. Mas, como eles já comentaram, vou ter de lutar e há a possibilidade de eu morrer…”
A indecisa jovem voltou seu olhar à esquerda e viu formigas guerreando com outras de espécie diferente. Elas se juntavam e arrancavam os membros de seus inimigos. Umas ainda tinha a cabeça dos fracos como troféu. Vários soldados matavam e outros mais morriam. O campo de batalha deles rapidamente se enchia com os cadáveres de seus companheiros de seis patas.
Logo por cima do exército de criaturinhas, veio uma borboleta, a qual os demais insetos também. Era curiosa, pois tinha um brilho bem diferente. Ela era azul no centro e preta nas bordas, embora se olhasse contra a luz, o inseto refletiria ainda as cores amarelo e verde. Ela soltava um pó semelhante a glitter violeta. Ela era única e especial.
Após olhar por um tempinho, Yumina se levantou e prosseguiu. Ela retornou à horta. Chegando lá, ouviu duas vozes. Uma de Cecília e a outra de Lily. A garota se escondeu atrás da parede para ouvir a conversa:
— Yumina parece tão legal, né, Lily? Tomara que ela seja nossa amiga logo!
— Também espero. Além de bonita, parece ter uma personalidade boa. Mas é melhor não forçar uma amizade. Ela pode ficar com medo da gente.
Enquanto colhia um tomate, a loira continuou:
— Se ela vai ficar conosco pra lutar contra ele, nossa colega não pode ter medo dos próprios parceiros. Compreende?
— Pode deixar! Vou me empenhar ao máximo pra que ela seja nossa amiga o mais rápido possível!
— Não acabou de me ouvir?!? – levantou brevemente a voz — Não pressione a menina! Deixe-a se acomodar no seu tempo. Agora, mudando de assunto, me ajuda a pegar as cenouras. Mais tarde vou fazer bolinhos fritos de cenoura.
Cecília comemorou por saber do prato da noite. Ela colhia as hortaliças cantarolando e sem esforços demasiados, pois utilizava sua magia para remover cada uma das cenouras. Elas saíam do chão empurradas por uma raiz criada por Cecília. A planta mágica criada pela híbrida penetrava suavemente o solo sob as cenouras e erguia-as sem complicações.
Por um momento de distração, a lobinha descuidou-se e arrancou mais do que precisavam. Lily não ficou nem um pouco satisfeita com isso e a fez replantar as em excesso com as próprias mãos.
Yumina deu um sorrisinho enquanto se afastava da área de plantio e seguiu até a parte da frente da mansão. Lá ela viu um coelho da cor da fumaça. Ele tinha olhos bem escuros, os quais refletiam a luz do sol sutilmente. Sua beleza atraiu-a e a levou até o portão.
O animal felpudo foi pulando até o lado de fora e ela se sentiu motivada a se aproximar mais do fofo coelho.
Aproveitando o adormecimento não surpreendente do dragão, ela se esgueirou lentamente e seguiu rumo ao lado de fora pelo próprio portão “vigiado” pela criatura alada.
Ela tomou um pouco de distância em meio a trilha larga, porém isso não foi uma sábia decisão. Um javali elemental da terra se sentiu ameaçado e a perseguiu pela estrada, bufando e grunhindo furioso. Para fugir, a descuidada recruta foi no meio da parte densa da floresta, pois ela se encontrava distante demais do portão, impedindo uma corrida direta até o mesmo.
Depois de se esconder no meio de um arbusto, o animal a deixou em paz, mas acabou ela percebendo estar perdida.
Após uns doze minutos andando em círculos, a jovem do relicário tropeçou num emaranhado de plantas e se estatelou no chão. Ao levantar a cabeça, se deparou com uma enorme serpente, feliz com o lanche recém adquirido. A criatura lembrava uma sucuri gigante, cuja tal olhava fixamente para sua fresca vítima. O animal tinha coloração bem camuflada. Alguém despreparado feito Yumina não a veria, a menos que ela se mexesse.
A novata tentou fugir lentamente, mas a fera a apanhou pelo tornozelo. Mesmo tentando se soltar, a cobra não a largava e já a enrolava mais, permitindo que ela sentisse desagradavelmente a gelada pele da esguia serpente.
A serpente tinha muita força. A força da novata era vergonhosamente inferior à dela. O pé de Yumina foi o primeiro a sentir o poder da cobra, pois lentamente a circulação do sangue diminuía e ele ficou dormente. Sem demora a sucuri tinha incapacitado a fuga de Yumina e o corpo dela doía com o aperto causado pelo bicho.
O medo estampava a cara de Yumina e o animal já estava perto de saborear seu rosto. Ela fechou seus olhos e apenas aguardava seu fim, esperando ter uma morte indolor. De repente, a cobra parou seu ataque.
Abrindo um de seus olhos, ela notou seu fim trágico ter sido interrompido por Sakurai. Ele pegou a sucuri pelo pescoço e congelou a cabeça no instante quando iria devorar a jovem. O herói largou-a ao lado e foi revistando a amedrontada menina.
— Você está bem? — falou Sakurai examinando se ela tinha febre ou algum outro sintoma. — Sente algo? Quantos dedos tenho aqui?
Yumina travou seu corpo, em razão da experiência de quase ir pro beleléu, e mal respondia. Ela se esforçava para explicar tudo, mas só saíam gaguejos e sílabas tremidas. Seu amigo, mostrando empatia, mudou a abordagem:
— Ela te assustou muito, né? Não precisa mais ficar com medo, eu estou aqui, ok? Enquanto estiver conosco, você vai ficar bem. Consegue se levantar?
Embora houvesse somente uns arranhões, o susto foi tanto que ela não conseguia se manter em pé direito e ele reparou isso no momento o qual ela tentou se erguer e suas pernas fraquejaram. Foi aí quando ele teve uma ideia digna de um cavalheiro: colocá-la nas costas e carregá-la. A jovem do relicário abraçou o usuário de magia pelo pescoço e retornaram aonde ela sequer deveria ter saído sozinha.
Agarrada em seu herói, a recém salva pôde reparar melhor nele. O olhar dele parecia ser de alguém disperso e amável. O cabelo liso de Sakurai tinha um cheiro bom, assim como o rapaz em si. Era difícil retratar com exatidão a qual aroma se assemelhava. O corpo dele era rígido, revelando um passado de treinos, mas ele não era musculoso. cortando a avaliação feita por ela mesma, Yumina agradeceu:
— Me desculpa… e obrigada. Achei que fosse morrer…
— Não precisa se desculpar. Eu faria o mesmo no seu lugar, afinal, por que confiar na gente se nem nos conhece? Mas, confiando você ou não, vamos cuidar do seu bem-estar. Caso não acredite nas minhas palavras, não te culpo. Vou deixar o tempo te mostrar.
— Mas… — Falou ela abraçando-o mais forte
— Sem “mas”. — Interrompeu ele rigidamente — Você pisou na bola, é um fato. No entanto, faz um mísero dia que está aqui. Se tivesse acreditado logo de cara, aí sim eu teria te chamado de doida.
— Ok… Mas espera! Como soube que saí se você não estava por perto na hora?
— O dragão me contou. Ele te viu. Só não entendi o motivo dele não ter feito nada.
Após um silêncio, ambos notaram aquela situação, de um homem carregar uma mulher, ser constrangedora no ponto de vista deles e suas faces já se avermelharam. Para quebrar o gelo, a carregada explicou os acontecimentos desde quando saiu, até se encontrar com ele.
Ao chegarem no portão, o Dragão da Escuridão os aguardava. Ele parecia tranquilo e perguntou descaradamente:
— Como foi o passeio, criança?
— Por que não a impediu? — interveio Sakurai bravo — É perigoso pessoas sem o mínimo preparo físico saírem sem um acompanhante. Ela poderia ter se machucado gravemente!
— Ela está bem, não é mesmo? Além do mais, te avisei do acontecido! É bom ela sair para ver como é este lugar! Filhotes não podem simplesmente ficar dentro da caixinha pra sempre, ou você imagina poder tomar todos os ataques pra si? Ela necessita ser independente!
— Até ela aprender a se defender, estou disposto a apanhar sim! Ela tem de saber se cuidar, mas não assim! Depois vou falar com o Arnold pra se entender contigo!
— Bah! — bufou o ser — que seja.
Enquanto se afastavam, o dragão se ajeitava com a ideia de aproveitar o sono novamente e, olhando pelo canto dos olhos, levantou os lábios quase imperceptivelmente num sorriso minúsculo.
Entrando em casa, Cecília estava na sala e se espantou ao ver Yumina. O jovem herói contou a história toda e a lobinha já foi acudi-la. Sakurai colocou-a sobre o sofá e sua colega híbrida inseriu suas mãos sobre os ferimentos dela e a curou de maneira semelhante a feita em seu amigo “cérebro de iglu” no episódio do boneco de treino. Conforme a curava, ela questionou:
— Pra quê você saiu assim?
— Não esperava um javali correr atrás de mim. — Se justificou Yumina — Eu só ia na frente de casa.
— Mesmo assim, entrar numa área desprotegida assim é muito arriscado. Por favor, não me assuste assim de novo.
Yumina, ouvindo os avisos de seus amigos, divagava na lembrança do quão prestativo e heroico Sakurai foi naquela hora e como eles realmente pareciam se importar com ela. Por fim, concluiu:
— Acho que será interessante ficar por aqui…