O Relicário - Capítulo 4
A primeira parada foi a horta, localizada nos fundos da mansão. Cecília explicava como a maioria dos legumes e verduras comidos eram cultivados ali. Não era uma colossal plantação, mas o suficiente para eles consumirem seus frutos no dia-a-dia sem falta. Alface, cenouras, tomates e outros ingredientes naturais cresciam ali, sob os cuidados dos moradores.
Enquanto a loba falava, sua atenção foi gradualmente desviada por um morango enorme, o qual crescia formosamente. Mesmo tendo acabado de comer, ela ainda tinha espaço para uma dentada no fruto vermelho. Ela babava descaradamente, até Yumina a fazer retornar ao assunto principal.
Após contar sobre as rotinas de cuidado com a horta, a garota híbrida pegou uma batata deformada e brincou:
— Ela não parece a cara da Lily quando tá nervosa? Dá quase pra ouvir a voz estridente!
Sakurai mordeu os lábios, segurando o riso, enquanto Lily, ao invés de bater nela de novo, apenas pegou uma uva e respondeu:
— Se parece sim. Assim como você tem a aparência dessa uva. Tão pequenininha…
O contra-ataque deixou a moça baixinha sem ideias e somente lhe restou mostrar a língua para Lily. Enquanto isso, o jovem da magia de gelo se encontrava a um passo de explodir de tanto se conter. Para ele, era muito hilário ver Cecília perder nos próprios joguinhos. A recém-chegada admirava a amizade deles, notando a semelhança com uma família brincalhona, bem unida e, de certa forma, despreocupada.
Em seguida, eles prosseguiram para a zona norte do campo de treinamento. O foco não era aquele lugar. Na verdade, a intenção era facilitar a visão da floresta mística que cercava a residência.
Quem contou sobre a área foi Sakurai. De acordo com o mesmo, a floresta servia de campo de caça, ambiente para treinamento especial e esconderijo contra o suposto vilão. Além disso, a mata oferecia um ambiente de contemplação da natureza nas horas vagas.
A mata densa cobria majoritariamente a luz. Tal propriedade permitia uma temperatura mais agradável aos humanos e animais da região. De fato, era muito mais fresco ali do que qualquer cidade conhecida por Yumina.
No galho de uma árvore, um quati se deliciava com um coquinho. Ele tinha pelagem marrom e focinho avantajado. Este ainda possuía uma cauda anelada bem felpuda. Ele era bem fofo, contudo, se ameaçado, sua selvageria representava um risco.
Nas raízes de outra árvore, um tatu-bola vivia atento aos acontecimentos ao seu redor, pronto para se enfiar mais a fundo no seu esconderijo e ficar protegido contra seus predadores.
Após olhar melhor a vegetação, Yumina viu de novo o javali de mais cedo e pediu informações referentes ao animal. Cecília se voluntariou e resumiu.
Segundo suas informações, aquele animal se chamava “javali elemental da terra”, capaz de manipular o solo a seu favor. Seu poder não era grande coisa e servia principalmente de mecanismo de defesa contra predadores e ajuda em problemas simples, como o deslocamento de pedras para abrir passagem.
Cecília ainda acrescentou ser rígida a carne dele, mas que absorvia bem os temperos, por isso, tal proteína era deliciosa. No entanto, se fazia necessário cuidado, pois alguns deles acabam implantando em si mesmos terra, no intuito de desinteressar inimigos.
Uma dúvida pertinente veio à cabeça da convidada e ela foi logo a expondo:
— Com esse tanto de criaturas por aqui, eles não invadem muito o espaço de vocês?
— Quase nunca. — respondeu Lily sem dificuldades ou curvas na fala — A maioria, ou não tem interesse, ou não consegue entrar. A infiltração deles é bastante rara e os invasores são inofensivos a humanos. Uma preocupação acentuada com eles é desnecessária, embora não deva ser descartada. Aviso dado, evite deixar qualquer coisa aqui fora que desperte a atenção deles, como comida, senão ficará sem ela.
Finalizado o tour do exterior (levando em consideração quererem deixar o dragão por último), eles prosseguiram para o interior da mansão. Lá, o grupo alternava entre si as explicações, visando esclarecer onde ficava cada cômodo.
Em uma dessas apresentações, Yumina e os outros chegaram em um quarto vazio. Poeira e teia de aranha governavam o espaço. Ninguém usava o quarto, por isso, este não era devidamente limpo. Como se esqueceram de preparar o lugar, foi assegurado que a garota do relicário dormiria ali somente quando o cômodo estivesse apto a tal.
Com essa afirmação, veio junto a dúvida de onde a jovem se hospedaria. Rapidamente Cecília demonstrou interesse. Ela afirmou ter espaço o suficiente em seu quarto e sua nova amiga poderia ficar por lá pelo tempo preciso. Yumina aceitou.
Mais tarde, veio a última parte do passeio, no portão da mansão. O dragão de mais cedo permanecia ali. Ele parecia ainda maior de perto. Suas asas o envolviam, aquecendo-o e o calor o qual subia de cima dele distorcia o ar. A pele escamosa e escura, dura como aço, lembrava noites de lua nova, demonstrando imponência e mistério. A cauda dele era longa e tinha uma espécie de mini asinhas, como os estabilizadores horizontais dos aviões. As garras da criatura eram compridas e amoladas. Facilmente cortariam uma árvore de forma parecida a um tablete de manteiga sob o sol escaldante do meio-dia.
Expelindo todo esse ar de intimidação, não chega a ser surpresa Yumina ter sentido medo. Sakurai foi o primeiro a notar e para tentar acalmá-la, pôs a mão no ombro dela e deu um sorriso. Ele pediu que ela relaxasse, pois prometia não deixar ninguém a machucar. A intenção dele foi boa, mas Cecília já veio cortando o momento heroico dele, pela enésima vez:
— Sakurai? Você não perde tempo pra xavecar a menina! Se continuar assim, ela vai se sentir desconfortável com você.
— Deixa de ser chata, mergulhadora de aquário! — Esbravejou Sakurai vermelho e com uma veia elevada.
Bravo, o dragão abriu os olhos amarelos. Foi possível assistir sua pupila ajustando-se sob a luz. Com a ponta de uma das garras, ele deu uma cutucada no traseiro dos dois quem discutiam. Apesar de não machucar, tal espetada doía e foi o bastante para silenciar o alvoroço. Embora contendo sua raiva, o ser cuspidor de fogo falou:
— Será possível que vocês dois não podem ficar quietos um pouco? Parecem dois bebês mimados!
Yumina sentiu seus pés enfraquecendo e tremeu ao ouvir o ser mitológico falar e, apontando o dedo a ele, ela perguntou, mesmo sabendo a resposta:
— E-e-ele fala?!?
— Claro! – Respondeu a criatura indignada com tamanha pergunta óbvia a ele — Todos os dragões falam. Até parece que nunca viu um… espere! Agora entendi. Você é Yumina. A tal criança, cujo velho Arnold me alertou sobre a vinda.
— Pois bem, Yumina. — Interveio Lily — esse é o Dragão da Escuridão. Ele é um dos Dragões da Trindade Ancestral. Mais tarde, converse com o Arnold sobre a história toda e ele irá te resumir. Essa “boca de lareira” conta a história de maneira muito polarizada.
— Feito as apresentações, alego ser um prazer conhecer-lhe, pequena Yumina. — Respondeu o dragão educadamente e formalmente.
A novata ainda não tinha digerido a ideia de ter um bicho daqueles ali e ainda por cima falante, mas ela juntou coragem e saudou a criatura. Quase não se podia entender as falas de Yumina, porque seu gaguejo tornava as frases incompreensíveis. O coração dela palpitava de nervosismo e isso só complicava a comunicação. Percebendo a inquietação dela, o dragão fez questão de tranquilizá-la:
— Minha cara, não precisa ter medo de mim. Fiz um contrato com Arnold para proteger essa mansão e vocês, em caso de invasão. O mínimo a fazer é NÃO te machucar.
Mesmo aliviado o clima, ainda era assustador ver um ser enorme com uma bocarra cheia de dentes, cujo poder flamejante facilmente transformaria suas vítimas em churrasco. Seja lá o tamanho da equipe de aventureiros, certamente nenhum sobreviveria, salvo fosse esta a vontade dele.
Insistindo em querer se apresentar à principiante, ele começou a contar sua história, mas conforme Lily já tinha advertido.
— Eu era considerado uma divindade e os seres vivos se curvavam a mim. Eu governava a noite de maneira justa e todos viviam em harmonia. Mas, obviamente, aquele exibido e narcisista do Dragão da Luz veio pregando um monte de chatice sem lógica, falando que eu era um ser horroroso e traria a perdição ao mundo. Por culpa daquele pateta exibido, perdi um monte de coisas valiosas… é um saco ser obrigado a aturar tamanho insuportável…
Ao reparar no fato do dragão passar a somente resmungar, o grupo se afastou de fininho, deixando-o sozinho. Ele mencionava coisas de sua vida das quais eles não faziam ideia do que eram e provavelmente teriam acontecido há muitos séculos, comentando eventos dos quais (com exceção de Yumina, claro) o grupo dizia nem se lembrar de tão velhos serem.
Afastados do “senhor” da escuridão, Yumina pediu para ouvir uma elucidação da parte de quando a fera contou ter feito um contrato. A explicação, segundo Sakurai, foi a seguinte:
— Depois de sua “viagem”, Arnold procurou uma forma de se proteger e esconder-se. Ele se mudou pro meio dessa floresta e depois de um tempo procurando, achou aquele “bafo de fumaça”. Conhecendo seus poderes, Arnold fez um contrato, onde ele nos protegeria e guardaria a mansão. Nosso mestre não aprofundou muito nos detalhes, por isso só sabemos dessa fatia do bolo.
A curiosidade de Yumina se fazia grande, mas não havia muito a ser feito, porque o mestre não estava por perto para lhe esclarecer mais sobre o passado. Portanto, ela passou a encarar o animal lendário que servia como cão de guarda.
A forma do animal lendário podia representar o medo e o perigo, mas ainda assim era majestoso. Ele exalava tanto sabedoria milenar, quanto superioridade, embora estivesse sendo um esquisito se queixando sozinho. Ela o observava e pensava no tanto de histórias vividas e assistidas por ele. Ele poderia ter conhecimentos seculares, talvez até milenares! Tudo isso contido nas memórias do grande Dragão da Escuridão.
Tendo terminado essa viagem de reconhecimento, os anfitriões deram a liberdade de sua convidada dar uma volta por dentro do território da casa. Como o inimigo não sabia onde ela estava e, mesmo tendo conhecimento, não a poderia fazer mal, pois tinham um “monstro” guardando o lugar, era possível tal permissão. E assim ela seguiu de volta para o campo de treinamento, enquanto os outros realizavam seus afazeres atrasados.
Estando ela em um momento de privacidade, Yumina podia organizar suas ideias e decidir se ficaria, ou voltaria pra casa. Todavia, seu lado curioso e investigativo certamente falou mais alto, rendendo-lhe uma experiência pouco agradável.