O Relicário - Capítulo 3
Ao chegarem no campo, a primeira coisa feita foi uma explicação por parte de Sakurai sobre cada área. Foram falas breves, pois não se tinha como estender muita coisa naquilo.
No Sul, havia alvos voltados a treinar precisão de projéteis mágicos. Os materiais de treino eram feitos de madeira e se viam num estado pra lá de usados, apresentando trincos e cortes. Mal podia-se ver que tais objetos eram pintados de azul e vermelho, porque a tinta já não se mostrava tão aparente e colorida.
No Leste, bonecos de palha destinados a combate frontal preenchiam a zona. Eles eram mais novos que os alvos do Sul. Os tornozelos deles e os pulsos eram amarrados por um pequeno barbante, impedindo o boneco de se desfazer. Cecília, bem-humorada, aproveitou seu tempo sem fazer nada e desenhou rostos naqueles corpos de palha. Cada um tinha uma careta especialmente feita pela artista.
Ao Norte, uma área aberta destinados às lutas simuladas entre eles. O campo era todo coberto em grama gostosa de pisar. Este lugar não possuía nada além do já dito gramado.
Antes de começarem suas demonstrações, Arnold interveio com uma pergunta almejada desde cedo:
— Gostaria de saber: Quem de vocês deixou um prato, junto de um garfo do lado de nossa convidada quando ela chegou?
Cecília, ao ouvir o questionamento, suou frio até se encharcar como se tivesse acabado de sair de uma cachoeira. Ela virava e revirava seus olhos para os lados e gaguejava, fingindo não saber da procedência da pergunta. A mentira estava escancarada na cara de Cecília e Arnold a encarou até ela confessar.
Segundo a lobinha, ela estava muito ansiosa em ver como era a jovem recém-chegada e, como não tinha ninguém por perto, entrou escondida no quarto. Ela comia uma salada de frutas e esqueceu o talher e o prato em cima da escrivaninha por puro descuido.
Ela não mantinha contato visual durante sua confissão e contava os fatos com voz amena. Ela mantinha suas mãos por detrás de si e rabiscava o chão por meio de seus pés.
Após um suspiro, o mestre avisou que resolveria isso depois.
Findado o ponto, a primeira a se apresentar foi Cecília, por ter sido a dona da ideia e a mais enérgica. Tudo foi feito na zona Norte.
Ela sacou seu grimório, o qual passou a levitar à sua frente. Do livro, saiu uma rosa belíssima de cor exuberante e de dentro desta planta, surgiu uma semente bem grande. Ela agarrou essa última e espremeu-a.
A semente se esfarelou e seu pó espalhou pelo chão. Feito isso, saiu do solo diversas plantas menores, cujas tais, em sua maioria, eram flores. Por baixo de Cecília, uma raiz apareceu e a ergueu, sendo possível perceber um botão na ponta da raiz. Quando o botão desabrochou, a mesma rosa do começo surgiu, no entanto, a atual era bem maior e a menina híbrida se viu sentada sobre o estame amarelo da flor.
Yumina ficou maravilhada e cobriu a menina de elogios. Cecília, sem dúvida, se encheu de orgulho ao ouvir cada um deles. O peito dela estufava e seu nariz empinava à medida que as palavras adentravam os ouvidos da garota de estatura baixa. Tamanho comportamento chegava a irritar Sakurai, pois era obrigado a ouvir a mocinha se exibindo e contando vantagem.
O segundo foi Sakurai. Seu show foi curto e aconteceu no Sul. Ao passo que ele se preparava, deu para ver um bafo gelado saindo de sua boca e a feição do rapaz se mostrando focada.
Inicialmente, ele fez aparecer pequenas pontas de gelo e os disparou em três alvos à sua frente. Mesmo não tendo acertado todos no exato centro, ainda conseguiu atingi-los. Parecendo ser o fim da exibição, ele passou a criar mais daquelas pedrinhas gélidas e foi atirando-as frequentemente.
Após alguns ataques, Yumina percebeu que além de infligir um pequeno dano, os objetos atingidos estavam se enrijecendo e fragilizando-se a partir dos lugares por onde eram perfurados.
Por fim, cada um dos utensílios usados no treino congelou por completo. Sakurai acabou com os três alvos criando armas com magia em suas mãos, quebrando o primeiro ao usar uma marreta, o segundo cortou brandindo uma espada e o terceiro o destruiu revestindo seu punho com gelo.
Assim como fez com a última, a novata o elogiou bastante e olhava fixamente nele. O garoto de cabelos brancos automaticamente ficou vermelho. Ele sorria lisonjeado e afirmava que seus feitos não eram nada de interessante, mas Yumina negou:
— Está brincando? Nunca soube da existência de magia e vocês estão me mostrando isso neste exato momento! Você é incrível e suas habilidades me deixaram de queixo caído!
Sakurai ficou em silêncio, pois não sabia como responde-la. Portanto, ele apenas murmurou um “obrigado” e deu espaço à próxima a se apresentar.
Lily seguiu ao Leste do campo de treinamento. Para executar a performance, a loira pediu à garota de cabelos roxos que buscasse uma espada, pois a cavaleira não encontrava a sua desde cedo.
Após conseguir o solicitado, ela primeiramente imbuiu a arma em chamas e em seguida deu uma investida contra os bonecos. A espada emanava calor feito uma fornalha. A loira empunhava seu objeto cortante com imparável força.
Lily fez vários golpes em cada um deles. Os pobres bonecos queimavam nos lugares dos cortes e lentamente as chamas tomavam conta do resto do corpo. O cheiro das cinzas de palha aos poucos era sentido por Cecília, a qual puxou sua camisa até a região do nariz, visando diminuir o cheiro particularmente desagradável para ela.
Em Grand Finale, ela acertou um gancho em um dos bonecos, e ele viajou metros acima. Foi um momento épico. Algumas peças do até então saco de pancadas voaram para tudo quanto era lado, largando no caminho um rastro de fumaça. Curiosamente, Lily se queixava de seu punho estar dolorido no final.
Não deu nem tempo que Yumina pudesse expressar seu fascínio pelos feitos da colega. A cabeça voadora e fumegante da ferramenta de treino caiu bem em cima de Sakurai, derrubando-o. Foi um golpe certeiro bem no meio da testa do rapaz.
O rosto já torrado do boneco dava dó e este terminou de se desfazer quando bateu com tudo na cabeça do homem de cabelo branco. Para Surpresa de Yumina, a cabeça do corpo de palha, na verdade, era uma pedra envolta por uma fina camada de feno e cobertos por um saco de pano.
A novata tomou um baita susto, mas parecia a única a reagir assim e ficou se questionando, preocupadíssima se a vítima estava bem. Cecília ficou olhando para seu amigo e, rindo, gritou:
— Habilidade especial acionada: alvo vivo! Hahaha
Yumina, sem entender nada, ficou de olhos arregalados e ainda mais mexida quando o rapaz da magia de gelo se levantou e simplesmente tirou a poeira e as cinzas do corpo. Sem sacar nada, a recruta questionou o que acabara de acontecer e aquele quem se reergueu respondeu:
— Relaxe! Acontece muito.
E Cecília completou:
— Esse cérebro de picolé aí, por algum motivo, sempre é atingido, mesmo não sendo de propósito.
— Agora, — continuou Sakurai se virando para Cecília — POR QUE você colocou uma pedra dentro da cabeça do boneco?!?
— Eu não tinha palha suficiente pra encher o saco, aí achei que seria mais fácil preencher espaço com essa pedra que encontrei. — Justificou-se a híbrida arrependida pela péssima ideia.
A caloura olhou rumo a Arnold em busca de explicações, mas ele apenas levantou as mãos com aquela cara de “também não sei por quê isso acontece”.
Enquanto Yumina boiava, Cecília curava os ralados de seu amigo por meio de uma magia a qual grudava pétalas de flores coloridas sobre as feridas. Os ferimentos desapareciam por completo quando a magia da lobinha terminava sua ação e desaparecia do corpo dele. Lily pedia várias vezes desculpas. O velho mago pôs a mão no ombro da confusa principiante e pontuou:
— Se decidir ficar conosco, adianto a você: isso é normal. De vez em quando acontece algo desse tipo. Também não entendo.
Ele prosseguiu:
— Mas eles são bons meninos. Chamei cada um pessoal e individualmente para se aliarem a mim, e eles aceitaram de livre e espontânea vontade. Cuido deles o máximo possível. Essas crianças querem apenas garantir que todos possam viver felizes e em paz. Apesar de às vezes me irritarem, fazerem travessuras e se meterem em confusões, não poderia desejar pupilos melhores. Se optar por não voltar ao outro mundo, saiba: ficaremos felizes em tê-la como parte da nossa curiosa família.
Yumina pôde sentir a legitimidade das palavras do senhor e ficou pensativa, ao passo no qual olhava para os três, cuja risada se era ouvida. Era como se fossem mesmo todos de um mesmo tronco. A alegria deles era contagiosa, chegando até a roubar um sorriso de Yumina.
“Talvez este seja o meu lugar…” pensou a recruta “Aqui parece ser um paraíso em comparação a aquela cidade horrorosa. Talvez… o que o Arnold disse seja verdade e eu possa viver de maneira mais feliz aqui… Ainda não posso assumir nada, mas… Esse lugar me traz uma sensação diferente. Não ruim, mas familiar…”
Naquele momento sua linha de raciocínio foi interrompida pelo vozerio de Lily. Sakurai e Cecília brigavam por conta da pedra na cabeça do boneco. O rapaz dava cascudos na baixinha e ela revidava lançando pólen no rosto dele.
Devido a ignorância daqueles dois, cada um ganhou um belo de um galo na cabeça pela segunda vez graças a usuária de magia de fogo. A cavaleira deu uma cacetada aplicando tanta força em cada um que a cara deles afundou no chão. Simultaneamente ao ocorrido, o mestre pôs a mão no rosto e suspirou, já Yumina, concluiu suando frio:
“É melhor eu não irritar Lily.”
Tendo resolvido o assunto, a loira se ajoelhou em frente a novata e a seu mestre e se desculpou formalmente por seu comportamento violento. Em seguida, ela se virou a seus amigos, expressando o mesmo olhar furioso de antes e eles se dirigiram imediatamente aonde ela estava e agiram como ela, mas o medo ante que Lily batesse neles novamente era facilmente notado em suas vozes.
Tendo finalmente acabado esse empecilho, Arnold tentou amenizar sua vergonha e sugeriu a convidada tentar usar magia também.
— O que? Eu não consigo fazer isso. Nem sei como funciona!
— Sei disso. — Explicou o velho — Vou lhe auxiliar. Passarei um pouquinho de magia de mim para você. Assim, você vai poder usar uma magia qualquer aceita por teu corpo. Quem treina iniciantes como você usa essa técnica, permitindo o professor e o aprendiz descobrirem qual magia o usuário tem compatibilidade. Apenas relaxe. Você não vai sentir nada. Quando terminar o procedimento, irei explicar o resto.
Ele segurou a mão da garota e fez o prometido. Um pequeno claro migrava do braço dele para o dela.
Tendo cumprido o primeiro requisito proposto por Arnold, ele solicitou que ela se concentrasse e dissesse em sua mente a frase: “mirabile magica specialis verba”. Quando ela fez isso, o relicário reagiu com um brilho violeta e dele saiu um veloz feixe azul claro, tal qual fluiu em volta de todo o corpo dela até chegar em sua mão.
Em seguida, um grande amontoado de descargas elétricas e bolhas d’água irrompeu de sua mão, atingindo tudo ao redor. A caloura não entendia direito o porquê de estar saindo tanto poder de seus dedos. Por conta do medo, ela fechou os olhos virando o rosto contra a luz forte emitida.
A intensidade das fagulhas aumentava a cada segundo e Yumina passou a chacoalhar a mão na esperança de parar o fenômeno, mas obteve o efeito contrário.
Os demais que assistiam a cena, frequentemente eram forçados a se desviar dos resquícios de magia violentamente liberados.
Finalmente, a joia cessou seu brilho incomum, e o caos mágico se acabou, provavelmente pelo esgotamento da reserva temporária de magia. Pequenos buracos se formaram em volta de Yumina e plantas foram queimadas. Ela se via apavorada e sua respiração ofegante comprovava.
Arnold correu em direção a ela e perguntava se estava bem. Outra pessoa também foi até ela, Sakurai.
O medo de ter se ferido a novata não era mistério e, ao mesmo tempo, o velho raciocinava na procura de compreender o motivo dela ter liberado tanta magia, embora recebida tão pouca.
O outro investigava preocupado por algum ferimento nela. Ele se aproximou de seu rosto mais um pouco, mantendo os olhos vidrados nela e perguntou:
— Você se machucou? Está tudo bem? Consegue me ouvir e ver normalmente?
A recruta ainda se acalmava. Quando caiu a ficha do quão perto seu colega se localizava, ela corou e respondeu estar bem. Naquela hora, o “cabeça de iglu” percebeu o que tinha feito e seu rosto se equiparou ao dela em vergonha. Aliviando a tensão, Lily chamou a atenção de seu companheiro, mandando-o parar de pressioná-la e Cecília expressou seu otimismo, de seu próprio jeito:
— Ao menos a gente sabe que a habilidade dela é soltar choquinho e água! Agora, por favor, Yumina, aprenda a usar e, de preferência, não mire na gente.
A piada melhorou a atmosfera, entretanto, Arnold analisava profundamente:
“Eu esperava um destaque por conta da joia, mas isso foi além de minhas expectativas… é melhor tomar cuidado com essa coisa. Quanto poder a pedra tem? Precisamos fazer mais testes. Vendo tudo isso, é compreensível a razão dele tanto querer essa peça… o relicário tem um forte risco de machucar sua própria portadora… precisamos ensiná-la a dominar a joia antes que isso a mate…”
A loira percebeu o foco dele, encurtou a distância entre ambos e indagou-o:
— Está tudo bem? O senhor está parecendo a Cecília quando tenta jogar xadrez.
— Lily. — Falou ele — Fique de olho aberto em Yumina. Alguém pode tentar machucá-la se souber do relicário. Não deixe de vigiar, mas tome cuidado.
Ela notou a cisma de seu professor e acenou com a cabeça positivamente. Ele finalizou:
— Agora, volte aos seus amigos. Divirtam-se. Na verdade, deem uma voltinha em volta de casa e apresentem os arredores para a nova companheira.
Mais uma vez a cavaleira, sorrindo dessa vez, concordou.
Após Lily realizar o convite, a novata aceitou e foram eles dar uma caminhada por volta da mansão, permitindo Yumina ter melhor familiaridade com o ambiente onde ela se inseriu.